Pedro A. Batista Martins[1]

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Surpreendem-me ainda hoje as reações negativas quanto à inclusão de cláusula compromissória no estatuto de sociedade, muito embora, em 1850, o Código Comercial ter previsto, por interesse dos comerciantes – empresários de então –, a utilização da arbitragem para a solução dos conflitos interna corporis das sociedades.

Impressiona notar que, já naquela época, as controvérsias entre os sócios, e aquelas relativas à liquidação e partilha do patrimônio social, eram obrigatoriamente resolvidas fora do Poder Judiciário. Quanto às demais questões envolvendo os sócios e a sociedade, bem como seus administradores, caberia aos sócios estipular no contrato social a solução judicial ou arbitral.

Com efeito, já no século XIX, a arbitragem era o mecanismo indicado para a resolução das disputas societárias, posto a necessidade dos comerciantes de acesso a uma justiça especializada e a regras mais flexíveis.

Entretanto, também naquela época, o misoneísmo acabou por obstar a justa pretensão do segmento empresarial e inibir a inserção de cláusulas compromissórias nos contratos de sociedade, por força de leis emanadas em 1866 e 1867.

Incrivelmente, a resistência havida na segunda metade do século XIX, de certa forma, guarda relação com a hoje existente, nada obstante o transcurso de mais de 150 anos.

Os argumentos variam de frágeis receios a verdadeiras idiossincrasias. Os aspectos positivos dessa previsão ofuscam-se diante do desconhecido. As razões, ao fim e ao cabo, são recheadas de emulação.

O argumento técnico não sobrevive se posto à luz solar. Fala-se na autonomia da vontade e, consequentemente, na necessidade de manifestação expressa do acionista, de forma a introduzir, soberanamente, a arbitragem no estatuto social como instrumento de solução dos conflitos envolvendo os sócios, estes e a sociedade, e sócios e/ou sociedade e seus administradores.

O temor é tanto, que juristas chegam ao extremo de afirmar que, até mesmo no momento da aquisição de ações da sociedade que já contemple cláusula compromissória estatutária, a manifestação de vontade do novo acionista é imperativa, sob pena de a ele não se estenderem os efeitos dessa disposição.

Nessa toada, dito acionista estaria submetido a toda e qualquer regra estatutária, menos à convenção arbitral.

Ora, vamos e venhamos, a arbitragem não é esse monstro que se põe contra os interesses dos acionistas, e tampouco a autonomia da vontade tem o alcance que a ela pretende-se imprimir.

Quantos são os atos e reorganizações societárias que, muito embora legais, restam por impactar os minoritários sem que detenham qualquer possibilidade de contra elas se insurgirem, exceto – nas companhias com ações pulverizadas – se alienarem suas participações societárias, assim mesmo se as condições de mercado forem – como nem sempre são – economicamente adequadas? Os que militam nessa área bem sabem que várias são as práticas dessa espécie.

No entanto, a arbitragem é diferente, aduzem os refratários e pessimistas de prontidão. A arbitragem subtrai a análise de disputas societárias do Poder Judiciário. A arbitragem é custosa. A arbitragem depende do consentimento. Enfim, a arbitragem é um sistema que deve ser encarado com muita reticência, ressalvas e reservas quando posta sob foco no mundo das relações intrassociais.

Com todo respeito, muita reação e emulação, e pouca racionalidade e razoabilidade. A arbitragem societária nada tem de nefasta, e as exceções e relutâncias que sobre ela pesam são fruto de muita especulação e pouca prática.

Desviremos a lanterna. Que o foco se liberte da popa e se volte para a proa!

Primeiramente, o tão decantado princípio da autonomia da vontade, conquanto não se negue seja pressuposto do instituto arbitral, não tem de todo caráter absoluto. Assim fosse, terceiros que não se manifestaram efetivamente pela sujeição à cláusula compromissória jamais poderiam ser alcançados por seus efeitos, como ocorre nos casos de extensão dos efeitos desse pacto a não signatários.[2]

Mais ainda: se o consenso é a pedra angular da arbitragem, a inserção de cláusula dessa espécie nos estatutos sociais deveria depender, a rigor, de aprovação unânime, pois, caso contrário, o acionista dissidente – ao não concordar com a deliberação social – a ela não se sujeitaria, por força da imperatividade da autonomia da vontade, o que, não há dúvida, geraria verdadeiro caos.

Contudo, muito embora decantado como um dos cernes da questão por aqueles que lutam contra a aprovação majoritária de cláusula compromissória estatutária, na realidade o consenso perde-se como argumento técnico-jurídico ao nos depararmos com legislações que sujeitam a aprovação dessa matéria a quórum qualificado.[3] Mas por que quórum qualificado, e não, simplesmente, voto majoritário, se o princípio da autonomia privada não será efetivamente preservado, haja vista o restante da comunidade de sócios cuja divergência nenhuma importância terá, posto que contra ela não haverá remédio?

Se assim é, qual, então, o malefício em se manter o voto por maioria para a inserção de cláusula compromissória estatutária, como ocorre no curso ordinário das deliberações assembleares?

A outra solução seria a concessão do direito de recesso aos sócios dissidentes. No entanto, a par de em certas oportunidades ou circunstâncias contextuais permitir-se especular com o recesso, aprovando-se, por exemplo, a inclusão de arbitragem estatutária em momento não propício à retirada, fato é que esse instituto, adotado inicialmente na Itália (Código de Comércio de 1882) – ainda hoje objeto de críticas e restrições –, tem natureza eminentemente excepcional.

Sua utilização se faz sentir em deliberações que alteram a espinha dorsal ou a base fundamental da sociedade (v.g. modificação do objeto social) ou atentam contra direitos marcantes e estruturais do acionista (v.g. mudança nas preferências ou vantagens de uma ou mais classes de ações preferenciais; redução do dividendo obrigatório).

Em outros termos, somente em casos específicos e de extrema relevância é que o direito de recesso, por sua natureza restritiva e excepcional, deve ser admitido. Destarte, o recesso e o quórum qualificado (que lhe é pressuposto) são mecanismos de proteção societária que passam ao largo de deliberações salutares e benéficas para a empresa – como ocorre com a arbitragem –, pois com elas não se harmonizam.

Arbitragem estatutária e direito de recesso são institutos que não deveriam se interligar. A finalidade de um – arbitragem – não toca o objetivo do outro – recesso.

Impressiona equiparar os efeitos da deliberação que introduz cláusula compromissória em estatuto social com aqueles que resultam das marcantes situações que impõem quórum qualificado e direito de retirada. Mais lamentável é duplicar os obstáculos à introdução do pacto arbitral ao impor quórum especial de deliberação e, ainda assim, conceder ao dissidente o exercício do direito de recesso.

Dupla penalização a uma deliberação que busca introduzir instrumento dos mais consentâneos e úteis à vida da empresa e à sua função social.

No entanto, os recalcitrantes aduzem que a supressão da via judicial pela arbitragem impõe essa sistemática para tal aprovação.

Contrariamente, pode-se afirmar que o afastamento do Poder Judiciário da resolução das disputas societárias não importa na adoção de qualquer outro critério de aprovação que não o ordinariamente utilizado, isto é, votação por maioria, posto que deliberação da espécie alinha-se ao interesse da própria empresa, de seus sócios, colaboradores, credores, enfim, de terceiros com vínculo ou relação com a sociedade.

Não se está aqui a criticar o Judiciário, mas, sim, a demora na solução de conflitos societários, que restará por impactar, negativamente, o curso da atividade social. São diversos os recursos horizontais e verticais passíveis de utilização na esfera judicial, a par da criatividade – nem sempre benéfica – dos advogados, que resultam, salvo exceções, na perpetuação do conflito e que acabam por redundar em malefícios e inseguranças, sejam aos funcionários, aos acionistas, aos fundadores, aos administradores e executivos, e, não raro, à cotação das ações na bolsa ou, também, no caso das sociedades fechadas, ao seu efetivo valor de mercado.

Ademais, sabe-se que uma disputa entre sócios, ou entre estes e sociedade, gera perda de oportunidades irrecuperáveis e de nichos de mercado que acabam por ser conquistados e usufruídos pelos competidores, com reflexos no market share da empresa.

Ironicamente, hoje já não há lógica em se debater o “direito de acesso à justiça”, mas, sim, o que fazer para obter rapidamente a tão almejada justiça. O problema não é o acesso ao Judiciário, pois acessá-lo é fácil; o difícil, isso sim, é dele “se livrar”. O processo, como já dito, tornou-se, infelizmente – e não necessariamente por culpa específica do Judiciário em si –, a antevisão da eternidade.

Dizia Calamandrei que, desde os tempos de Justiniano, quando se conheciam os meios processuais para impedir que os litígios se tornassem poene immortales, o processo era imaginado como um organismo vivo, que nasce, cresce e, por fim, se extingue por morte natural com o julgado.[4] Atualmente, antes da morte do julgado verifica-se a morte de parte, patrono e juiz. Já dizia o velho provérbio chinês que, ao morrer, evite o inferno; e, em vida, os tribunais.

Hoje, mais do que nunca, tempo é dinheiro. A forte competição, aliada à globalização e à interconexão tecnológica, não autoriza que conflitos, notadamente aqueles que afetam as sociedades, demandem muito tempo para a sua solução. Entre perder tempo e deixar de ganhar dinheiro, o empresário certamente opta, sem muito pestanejar, pela última opção, pois dinheiro se ganha ou se recupera com novas oportunidades e planos estratégicos, enquanto, o tempo, esse, jamais.

Outro tema abordado por aqueles reticentes ou receosos na utilização da arbitragem para solucionar conflitos de índole societária diz com os custos envolvidos, o que prejudicaria parcela de investidores.

Essa circunstância, creio, é superável pela escolha de Câmara de Arbitragem com regimento de custas adequado e, eventualmente com valores escalonados. Nada que a criatividade e o bom senso não resolvam.

Nada obstante, cabe considerar até que ponto, na prática, os pequenos investidores se projetam em disputas societárias com a sociedade ou demais sócios. Mais ainda, o quão salutar será para esse acionista ou sócio pleitear judicialmente por anos a fio a solução de uma controvérsia cujo resultado final, por tardio, poderá perder sua utilidade e efetividade.

Há que se ponderar, da mesma forma, que as discussões societárias, ainda que na via judicial, pela complexidade que revestem, implicam custos com advogados e escritórios especializados, perícias e pareceres técnicos e jurídicos, que tornam as demandas naturalmente onerosas para as partes demandantes, partes essas que, ao que se tem notado, são normalmente sócios, ainda que minoritários, relevantes e sofisticados técnica e financeiramente.

Em outros termos, uma disputa societária é, pela sua própria dinâmica e especificidade, dispendiosa. Por essa razão, e a par do fato de o regimento de custas da Câmara indicada para administrar os conflitos entre sócios e entre estes e a sociedade poder fixar parâmetros de honorários e taxas razoáveis, não é, a meu ver, o alegado custo argumento de notável relevância para se coibir ou impor obstáculos à prática da arbitragem na solução das controvérsias originadas no seio das sociedades.

Ultrapassadas essas questões, frequentemente sustentadas pelos que não se conformam com o afastamento do Poder Judiciário nas demandas societárias, é de se ressaltar, como aspecto positivo, a importância da arbitragem como instrumento de melhoria na governança corporativa.

Com efeito, as empresas que adotam regras de boas práticas corporativas, com distribuição de responsabilidades entre os diferentes integrantes da organização, tais como gerentes, administradores e sócios, estruturação de regras transparentes e equitativas que aperfeiçoem e otimizem processos decisórios e relação com os investidores e sócios, com o monitoramento da performance e do atendimento aos objetivos empresariais, incorporam vantagens significativas ao seu ativo intangível.

Benefícios esses que valem não somente para aquelas empresas que atuam no mercado de capitais, bem como para as de menor porte, pois, ao fim e ao cabo, são regramentos voltados para a melhoria da eficiência na condução dos negócios sociais, que, por certo, permeiam o aperfeiçoamento da eficiência jurídica.

Eficiência jurídica essa que visa reduzir custos de transação e de oportunidade para a sociedade. E a arbitragem bem se presta a tal finalidade, pela ausência de instâncias recursais e vias procrastinatórias, tão comuns quanto, em sua maioria, indesejáveis na esfera judicial.

A indeterminação do prazo de existência da sociedade requer instrumentos contratuais que permitam um convívio confortável e palatável entre ela e seus acionistas, e estes entre si, de forma a manter eficiente e produtiva a relação, com reflexos extremamente positivos para o mercado, seus agentes e toda a comunidade que com a empresa se intercomunica. A coexistência saudável é, por certo, uma premissa de boa governança corporativa. De tal forma que a arbitragem, não há dúvidas, se inclui entre as regras das melhores práticas de governança corporativa.[5]

Conforme pontuado por Eduardo Silva da Silva,

O litígio e seu deslinde através do método clássico de resolução de controvérsias consistem em componente econômico a ser levado cada vez mais em conta nos levantamentos financeiros das empresas, não só pelos custos relacionados a advogados, assessorias jurídicas e valores a despender a título de condenação, mas também pelo trânsito de informações técnicas privilegiadas e pela demora na resolução de conflitos com a paralisação de projetos – fatores que oneram sobremaneira a atividade empresarial. Esses ônus são repassados ao custo de produção e encarecem o produto, bem ou serviço prestado, dificultando sua penetração em um mercado globalizado e competitivo. Litigar em um processo judicial enfraquece igualmente a empresa na sua capacidade de estabelecer vínculos, relações, consórcios, e empreitadas comuns com empresas congêneres. O processo judicial clássico foi concebido para atender às características de um direito essencialmente individualista, no qual a justiça e as instituições jurídicas são modeladas à finalidade essencial da proteção do direito subjetivo e no qual o relacionamento jurídico, como o econômico, tem essencialmente um caráter isolado e individual (liberal) e não um caráter continuativo e de grupo (multilateral).[6]

Enfim, os novos ventos da governança corporativa sinalizam para um conjunto mais eficiente das relações jurídicas societárias. Seja inter ou intrassocial. A manutenção das relações jurídicas e comerciais é matéria que não pode ser esquecida ou desprezada pela sociedade empresária.[7]

À luz dessa realidade, incompreensível que a cláusula compromissória estatutária, para sua validade, seja objeto de empecilhos legais impostos a deliberações impactantes para a sociedade e/ou sócios.

Fixar quórum qualificado para dita decisão assemblear parece-nos exagerado, haja vista não atender ao decantado princípio da autonomia da vontade e, mais, não ser tema que demande relevância da espécie. A arbitragem não é matéria que afete direito de certa categoria de acionista – tampouco a dita existência ou destino da sociedade – ou, menos ainda, que remexa certas entranhas do pacto social.

A vida da sociedade e o bem coletivo, ao contrário, são preservados pela utilização da arbitragem como instrumento de resolução célere, confidencial e especializada dos conflitos que envolvam a sociedade, seus sócios e administradores. A utilização de mecanismos eficientes e eficazes de solução de controvérsias societárias, pode-se dizer, insere-se dentre os deveres de cuidado e diligência impostos aos administradores.[8]

Excessivo, ademais, assegurar ao dissidente o exercício do direito de recesso, quando se sabe que cláusula compromissória estatutária não encerra um instrumento de pressão ou opressão ao minoritário. O direito de retirada, conquanto aparentemente atenda ao princípio da autonomia da vontade que o instituto da arbitragem encerra, na realidade resultará, para o dissidente, no acolhimento do velho ditado popular, “os incomodados que se mudem”.

Ora, o direito de recesso, pelas sua natureza e excepcionalidade, não deve ser acionado em deliberação cujo objeto coaduna-se com os interesses sociais e dos sócios. Sua razão de ser passa ao largo de deliberação assemblear que aprova cláusula compromissória estatutária.

O direito de retirada visa coibir abuso por parte da maioria e tem por fim evitar que direitos fundamentais imanentes à qualidade de acionista ou sócio – e, por isso, dele indissociáveis – sejam alterados ou suprimidos pela voz majoritária.

A substituição da jurisdição judicial pela arbitral para a análise e solução de controvérsia societária, desde que preservado o livre acesso e os pressupostos do devido processo legal, não viola ordem pública ou é matéria inderrogável pela assembleia geral e, menos ainda, qualifica-se como ato abusivo. Dessa forma, pode-se afiançar, insere-se na lista de direitos que podem ser modificados pelo voto majoritário.

A arbitragem amalga-se com o próprio interesse social e não atinge direitos patrimoniais ou políticos dos sócios. Preserva os interesses e, quiçá, a sobrevivência da sociedade e, consequentemente, o patrimônio dos minoritários.

A inserção de cláusula compromissória estatutária não gera obrigações novas aos titulares das ações ou quotas, ou alterações substanciais em direitos de sócio; enfim, não implica diminuição ou garantias dos acionistas ou quotistas. Muito menos atenta contra pilares relevantes do pacto social; seu efeito é, portanto, neutro, haja vista, inclusive, que a arbitragem é instituto contemplado em lei, cujo fim maior é cooperar com o Estado na administração e no acesso à justiça, e cujo processamento encerra todos os pressupostos do devido processo legal.

Destarte, não prejudica o direito de ação de qualquer acionista ou sócio, mas, tão somente, com a arbitragem, altera-se a jurisdição em que a demanda será apreciada e julgada, reitere-se, de conformidade com os princípios maiores da imparcialidade, ampla defesa, contraditório e livre convencimento.

Conforme assenta o ilustre jurista António Sampaio Caramelo,

É inquestionável que, quando os direitos que integram o status de sócio são alterados através de modificação estatutária regularmente deliberada, os sócios que não votaram a seu favor ficam vinculados por tal modificação. Ora, se o efeito da cláusula compromissória inserida nos estatutos é o de dar outra configuração à dimensão processual dos direitos dos sócios perante os outros sócios, a sociedade ou os titulares dos seus órgãos, bem como dos direitos daquela perante estes ou os sócios, há que concluir que o que vale para a modificação da dimensão material dos direitos dos sócios vale também para a da sua dimensão processual. (…) Por outro lado, sendo o efeito da cláusula compromissória supervenientemente inserida nos estatutos o de configurar o direito de acção inerente aos direitos subjectivos dos vários intervenientes na vida interna da sociedade, direcionando-o para a jurisdição arbitral, essa configuração não pode deixar de vincular todos os sócios, mesmo os que hajam votado contra essa alteração estatutária. Também aqui o princípio maioritário tem de prevalecer, como é regra nas sociedades comerciais.[9]

Já afirmava Vivante no século passado que o contrato de sociedade transforma interesses individuais e divididos dos sócios em interesse coletivo. Assim, e se é certo que a arbitragem vai ao encontro do interesse maior social, sem ferir direitos patrimoniais ou políticos dos sócios, penso que, ao não se admitir a introdução de cláusula compromissória estatutária por maioria de votos, por força de condições rigorosas para a aprovação dessa matéria, notadamente o direito de retirada, inverte-se a máxima dos contratos de sociedade bem posta pelo citado jurista italiano, subvertendo, quiçá, a natureza plurilateral desses pactos.

Não se pode perder de vista, também, a proeminência da arbitragem como instrumento eficiente na atração de investimentos.

Arbitragem e economia sempre andaram lado a lado, como atestam alguns dos fatos ocorridos no Brasil nas últimas décadas do século XX. A medida que o país vai consolidando a sua economia, e incrementando o comércio internacional, a arbitragem passa a ser elemento de debate na estruturação das transações com seus parceiros, haja vista sua importância na equação econômico-financeira das relações negociais.

A título de exemplo, nas décadas de 70 e em parte da de 80, quando se dá o chamado boom econômico brasileiro, as empresas estatais – aproveitando-se dos baixos juros no mercado internacional – contraem dívidas externas para fazer frente à implementação e desenvolvimento das várias atividades essenciais para o país, tais como infraestrutura, energia hídrica e nuclear, telecomunicações, e outras mais.

Já nessa época, os bancos financiadores pressionavam a União Federal – na qualidade de garantidora – para se submeter à cláusula compromissória estampada nos contratos de empréstimo.

As negociações eram sempre complexas e firmes, sobretudo pela relutância do país em aceitar o fórum arbitral e, consequentemente, abrir mão da jurisdição estatal.

A cada contrato de empréstimo concluído, a questão tornava-se mais sensível, dado que os advogados que representavam os bancos estrangeiros ressalvavam, em suas legal opinions, a ineficácia da cláusula compromissória contida no instrumento de financiamento.

A relutância da União Federal em aceitar a arbitragem conduzia os bancos credores a incrementar o spread – obviamente em desproveito das empresas estatais brasileiras –, dada a insegurança jurídica na eventualidade de conflito oriundo do contrato de empréstimo.

Essa circunstância demonstra a importância da arbitragem como elemento facilitador na captação de recursos, fato esse que não restou esquecido pelas autoridades brasileiras, como atesta a elaboração de 3 anteprojetos de lei dispondo sobre a arbitragem, ainda na década de 80, a pedido do Poder Executivo.

A arbitragem volta à tona, com mais vigor, na década seguinte – 1990 –, quando do programa de privatizações, cujo modelo proposto demandava a participação de um número razoável de players.

Essa demanda por competidores objetivava aumentar a concorrência e, naturalmente, o preço final pela outorga da concessão e permitir maior volume de investimento a ser aplicado no cumprimento das metas traçadas no edital de licitação. Resultava, também, da indispensável participação no certame de empresas com expertise e know-how peculiares ao segmento objeto da privatização.

É nesse momento, em que o Estado se vê forçado a dialogar com a comunidade externa, que se reforça a percepção da arbitragem como instrumento mitigador dos custos de transação e expressão da segurança jurídica, tão caros aos investidores, nacionais e estrangeiros.

Essa realidade mostra-se visível ao notarmos que, mesmo antes da edição da Lei nº 9307/1996 (Lei de Arbitragem brasileira), a Lei de Concessão e Permissão de Serviços Públicos, de 1995, insere a arbitragem dentre as cláusulas essenciais desses contratos.

Mais ainda, enquanto sub judice no Supremo Tribunal Federal decisão sobre a (in)constitucionalidade da Lei de Arbitragem brasileira, as Leis do Petróleo e de Telecomunicações também listaram a arbitragem dentre as disposições essenciais para a resolução dos conflitos relacionados à execução dos contratos originados dessas áreas de concessão.

À reboque da privatização, a arbitragem também era fator de relevância na redução dos custos inerentes ao feixe das diversas relações contratuais que se daria no âmbito das empresas consorciadas que operariam as atividades das estatais objeto das diversas privatizações.

Nesse contexto, o Estado não olvidou, e nem poderia, o valioso papel que a arbitragem exerce como facilitador na inversão de recursos – estrangeiros e nacionais – para aplicação em atividades produtivas.

Afinal, é sabido que, em diversos tipos de negócios, incorporam-se custos extras que encarecem a transação, por força do tempo do processo e da incerteza no adimplemento da obrigação ao seu término. É notório que os juros adotados em vários negócios bancários contemplam acréscimo percentual por força do chamado custo judicial.[10]

Com efeito, a arbitragem tem peso considerável na avaliação econômico-financeira dos negócios que os agentes irão entabular. Por certo, a existência de cláusula de arbitragem impacta positivamente os custos de transação, notadamente pela segurança jurídica que imprime aos acordos.

Daí a razão da inserção da arbitragem em grande parte dos contratos empresariais, como modalidade de resolução célere, confidencial e mesmo neutra, levada a cabo por pessoas com disponibilidade e experiência. Conflitos esses que surjam das relações intra e intersociais ajustadas, mormente naquelas de execução continuada.

De tudo o que foi exposto resulta a indagação feita no título deste breve texto: Cláusula arbitral estatutária e sua aprovação por voto majoritário: por que resistir?

Referências bibliográficas

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MIRANDA, Agostinho Pereira de; ABREU, Miguel Cancella de; COSTA E SILVA, Paula; PENA, Rui; MARTINS, Sofia (Coords.). Estudos de Direito da Arbitragem em homenagem a Mario Raposo. Lisboa: Editora Universidade Católica, 2015.

PINHEIRO, Armando Castelar. A justiça e o Brasil. Revista USP, n. 101, mar./ab./maio 2014,

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  1. Artigo ampliado, anteriormente publicado em MIRANDA, Agostinho Pereira de; ABREU, Miguel Cancella de; COSTA E SILVA, Paula; PENA, Rui; MARTINS, Sofia (Coords.). Estudos de Direito da Arbitragem em homenagem a Mario Raposo. Lisboa: Editora Universidade Católica, 2015. pp. 211-221; e, posteriormente, também aumentado, publicado em BAPTISTA, Luiz Olavo; VISCONTE, Debora; ALVES, Mariana Cattel Gomes (Orgs.). Estudos de Direito: uma homenagem ao Prof. Dr. José Carlos de Magalhães. São Paulo: Atelier Jurídico, 2018, pp.695-708.
  2. Nesses casos, esclareça-se que não deve a inclusão do terceiro pautar-se por uma assunção implícita ou tácita da cláusula compromissória, mas, antes, e para além disso, sua integração ao processo arbitral, mesmo contra a sua vontade, tem por presunção que seus atos, comportamentos e condutas implicam sua equiparação à parte do contrato.
  3. Como ocorre na Espanha (cf. art. 11 bis, da Lei n. 60/2003).
  4. Apud CRUZ E TUCCI, José Rogério. Tempo e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 15. Segundo o autor, o número considerável de processos a espera de julgamento assemelha-se à expectativa, para alguns crentes, da chegada do Messias. Na China do século VII, o Imperador Hangs Hsi expediu o seguinte decreto: “Ordeno que todos aqueles que se dirigirem aos tribunais sejam tratados sem nenhuma piedade, sem nenhuma consideração, de tal forma que se desgostem tanto da ideia do direito quanto se apavorem com a perspectiva de comparecerem perante um magistrado. Assim o desejo para evitar que os processos se multipliquem assombrosamente, o que ocorreria se inexistisse o temor de se ir aos tribunais. O que ocorreria se os homens concebessem a falsa ideia de que teriam à sua disposição uma justiça acessível e ágil. O que ocorreria se pensassem que os juízes são sérios e competentes. Se essa falsa ideia se formar, os litígios ocorrerão em número infinito e a metade da população será insuficiente para julgar os litígios da outra metade” (DER SPRENKEL, Sybille Van. Legal Institutions in Manchu China. Londres: Athlone Press. p. 77, conforme citado em ANDRIGHI, Fátima Nancy. Formas alternativas de solução de conflitos. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/internet_docs/ministros/Discursos/0001118/texto%20ministra%20seecionado-formas%20alternativas%20de%20solu%C3%A7%C3%A3o%20de%20conflitos.doc>. Acesso em: 3 set. 2014).
  5. MARTINS, Pedro A. Batista. Arbitragem no Direito Societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 116.
  6. SILVA, Eduardo Silva da. Arbitragem e Direito da Empresa. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 43-44.
  7. MARTINS, Pedro A. Batista. Arbitragem no Direito Societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012. p. 115. Consta estampada do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), em seu item 1.8, que, “Caso não seja possível uma negociação bem-sucedida entre as partes, os conflitos entre sócios e administradores e entre estes e a organização devem ser resolvidos, preferencialmente, por meio de mediação e, se não houver acordo, arbitragem. Recomenda-se a inclusão destes mecanismos no Estatuto/Contrato Social ou em compromisso a ser firmado entre as partes”. No estudo do Banco Mundial The State of Corporate Governance – Experience from Country Assessments, elaborado por Olivier Fremond e Mierta Capaul, em junho de 2002, a introdução de arbitragem para a resolução de conflitos integra as recomendações para atendimento aos princípios da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD) (p. 22) e a adoção pela Bolsa de Valores de São Paulo (Bovespa) desse mecanismo para todas as empresas listadas no Novo Mercado e no Nível 2 de Governança Corporativa foi objeto de elogios: “In 2001, BOVESPA, the São Paulo stock exchange, launched a new market segment, the Novo Mercado, which aspires to international standards of corporate governance. The Brazilian approach is innovative. (…) The companies listed on the Novo Mercado will be prohibited from issuing non voting shares (…) They will have to abide by US or international accounting standards (…) An arbitration panel has been created to settle shareholder disputes. As a result, some investment banks, such as Merrill Lynch, have put the Novo Mercado at the top of their rankings for minority shareholders rights and significantly above the main Brazilian board ranking” (p. 10).
  8. Atesta o King Code of Governance for South Africa, elaborado pelo Institute of Directors Southern Africa, instituição apoiada por várias entidades independentes do país, que: “International bodies such as the International Finance Corporation have started to recognise that alternative dispute resolution (ADR) clauses are needed in contracts. (…) It is accepted around the world that ADR is not a reflection on a judicial system of any country, but that it has become an important element of good governance. Directors should preserve business relationships. Consequently, when a dispute arises, in exercising their duty of care, they should endeavor to resolve it expeditiously, efficiently and effectively. (…) The board should adopt formal dispute resolution processes for internal and external disputes” (p. 13, 48).
  9. CARAMELO, António Sampaio. Arbitragem de Litígios Societários. Revista Internacional de Arbitragem e Conciliação, Lisboa, Almedina, ano IV, 2011, p. 38-39.
  10. Dados publicados em 2014 atestam que o Brasil ocupava, no mundo, o 101º lugar no ranking de eficiência do aparato legal em resolver litígios. Em 2000, pesquisa demonstrou que 91% dos empresários avaliavam como ruim a morosidade da justiça brasileira e, ainda, que uma melhora acentuada da performance do Poder Judiciário levaria a: (i) aumento de 18,5% no volume de negócios, (ii) alta de 13,7% nos investimentos, (iii) aumento de 12,3% na contratação de trabalhadores, (iv) 13,9% de aumento na proporção de atividades terceirizadas e (v) 13,7% mais negócios com o setor público (PINHEIRO, Armando Castelar. A justiça e o Brasil. Revista USP, n. 101, mar./ab./maio 2014, p. 146 e 154).Reportagem publicada em fevereiro de 2006 menciona que estudo do Banco Central estima que 20% da composição do spread bancário cobrado no Brasil correlaciona-se à taxa de inadimplência e, por conseguinte, à dificuldade dos credores recuperarem judicialmente os créditos devidos. Ademais, o mesmo estudo aponta que, quanto menor o crédito, mais difícil recuperá-lo. A execução judicial de R$ 500,00 demanda cinco anos e o credor nada recebe; a cobrança de R$ 50 mil resulta, em média, no ressarcimento de R$ 12 mil (JORNAL VALOR ECONÔMICO. Uma Justiça cada vez mais Abarrotada de Processos. Caderno Opinião, 20 fev. 2006, p. A8. Disponível em: <http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/457652>. Acesso em: 07 jun. 2017).