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Pedro A. Batista Martins[1]

1. Capacidade; 2. Consenso.; 3. Intervenção de Terceiro no Processo Arbitral.

1. Capacidade

1. Capacidade para acordar cláusula compromissória traduz o poder e a legitimidade para a pessoa contrair e ser titular dos direitos e obrigações contidas na convenção.

2. A obrigação reflete o compromisso de a parte contratante se submeter ao rito arbitral quando do surgimento da controvérsia.

3. A titularidade de direitos implica na viabilidade jurídica de a pessoa poder exigir o cumprimento da regra convencional de arbitragem.

4. Destarte, a capacidade jurídica para contrair obrigações se alinha com a eficácia negativa da cláusula compromissória, enquanto a capacidade jurídica para ser titular de direitos se integra à eficácia positiva da convenção.

5. Com efeito, a cláusula compromissória firmada por pessoa capaz importará em sua vinculação à jurisdição arbitral.

6. A eficácia da cláusula conduzirá o conflito à arbitragem, mesmo se renitente uma das partes. É o que afirmam os comandos dos arts. 1º., 5º., 6º., 7º., e 8º. da Lei n. 9.307/96.

7. É a lei do país de domicílio[2] da pessoa a regra adotada pela maioria das jurisdições internacionais para se verificar a existência ou não da capacidade para contratar, principalmente no que toca à pessoa natural.

8. No Brasil, essa norma encontra-se estabelecida no art. 7° da Lei de Introdução ao Código Civil[3]

9. No entanto, não é sempre, e por todos, aceita essa regra de determinação da capacidade pela lei do domicílio, dado que os conceitos e definições nem sempre são capazes de integrar, satisfatoriamente, a solução jurídica que se busca frente ao caso concreto.

10. À guisa de exemplo, existem países que admitem plena capacidade a pessoas que não as detêm no país de domicílio. É a situação enfrentada pelas mulheres que, por conta própria ou sem autorização, não são passíveis de contrair obrigações no país onde se encontram domiciliadas.

11. Esses países flexibilizam a regra da lei do domicílio em virtude da adoção de uma visão mais ampla e flexível, em linha com os princípios que direcionam o direito internacional. Princípios esses solidificados ao longo de décadas de aprimoramento das regras de convívio e interação da comunidade mundial e da cristalização dos pressupostos do estado democrático de direito.

12. Em sede de arbitragem internacional, a supra nacionalidade ou desvinculação dos árbitros aos sistemas de direito positivo aliadas a posicionamentos doutrinários e/ou legais, muitas vezes conduzem os árbitros a afastarem o princípio da lei do domicílio em favor da regra contida na lei escolhida pelas partes para a solução do mérito da disputa. Em outros termos, aplica-se a lei de regência do contrato para definir a capacidade do agente.

13. Conquanto essa suposição jurídica facilite a apreciação e o julgamento da disputa como um todo, pela adoção de uma única lei, por outro lado pode gerar situações indesejáveis quando do reconhecimento ou execução da sentença arbitral. Pode-se conferir capacidade a quem não a tem ou deixar de conferi-la a quem a possua, sob o ângulo do país em que se busca conferir eficácia à decisão.

14. Outra opção é a escolha da lei do local da arbitragem para reger a capacidade da contratante, dado que é nessa jurisdição onde, regra geral, será desafiada a decisão arbitral na ocorrência de vícios de nulidade.

15. Vê-se que a criatividade e a angústia são elementos inerentes à atividade jurídica. Entretanto, o árbitro deverá ter sempre em mente a completude da sua função que não se exaure, regra geral, com a prolação da sentença. Formalmente, sim. Contudo, numa visão funcional, essa completude se aperfeiçoa com a obtenção da homologação da sentença no país em se quer chancelar seus efeitos.

16. Daí a tendência de alguns árbitros e estudiosos de se fixarem na lei da jurisdição onde a sentença será executada para definirem a capacidade da parte para firmar convenção de arbitragem.

17. A inconveniência que essa escolha pode resultar é a diversificação dos bens dessa pessoa por distintas jurisdições, umas mais flexíveis do que as outras no que toca à internalização da eficácia de sentenças estrangeiras.

18. Enfim, em sede de arbitragem internacional, a definição da capacidade da pessoa é matéria repleta de interrogações que podem redundar na opção, pelos árbitros, consciente ou inconscientemente, de aplicarem o sistema jurídico que lhes seja mais familiar.

19. Como sustentam Fouchard, Gaillard e Goldman, “In practice, the risk is that the arbitrators using the choice of law method may, when faced with difficulties described above, simply apply the choice of law rule with which, as a result of their own background, they are most familiar, and which they therefore instinctively consider to be the appropriate choice. ”[4].

2. Consenso

1. O consentimento reflete a intenção da parte na adoção da arbitragem para solucionar os conflitos que possam surgir de determinada relação ou negócio jurídico.

2 O consentimento pode ser expresso ou tácito e, ainda, resultar na vinculação de terceiros formalmente desvinculados do contrato.

3. O consentimento pode ser tácito, vez que, de acordo com o art. 107 do Código Civil, “A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir”.

4. Segundo atesta a jurisprudência judicial:

“A leitura da contestação revela que a argumentação desenvolvida está centrada na inexistência de concordância expressa sobre a cláusula compromissória. Mas, como demonstrado, houve inequívoca aceitação da convenção arbitral, a tanto equivale a participação da empresa requerida no processo, de acordo com carta que ela própria remeteu contendo suas razões de mérito para defender-se. Veja-se com atenção que a contestação procura desqualificar essa correspondência e sua defesa alegando que não nomeou árbitro, permanecendo “em silêncio, exatamente porque não reconhecia sua submissão à jurisdição arbitral” (fl. 187), acrescentando que não interpôs recurso de apelação, “mas apenas manifestou-se, por correspondência, sua não concordância com o decisum, mencionando fatos e atos culposos da recorrente, preocupando-se – é lógico – em repor a verdade fáctica. Ora, tal manifestação não pode ser admitida – é óbvio – como interposição de apelação em seu aspecto formal” (fl. 188). Pretende a requerida raciocinar no sentido de ter sido “induzida a erro, de forma indireta e coercitivamente , a corresponder-se com o juízo arbitral, mas o fez apenas para repor a verdade fática sem ter a intenção de recorrer da decisão” (fl. 188). Com todo respeito, essa argumentação não pode merecer prestígio. E assim é, porque a parte interessada poderia, desde que tomou conhecimento, ter impugnado a instauração do Juízo arbitral, o que levaria a não ser este admitido, porquanto somente se produz se as partes estão de acordo, como, de resto, é usual”.[5]

5. Nesse julgamento, o Ministro Luiz Fux acompanhou o Relator para reforçar a validade do consentimento tácito, verbis:

“ Sr. Presidente, referendo o brilhante voto do ilustre Ministro-Relator, inclusive na mesma linha do Supremo Tribunal Federal, que considerou a cláusula compromissória tácita; é uma questão do Direito Comercial, em que a formalidade obstativa da homologação não teria o menor sentido. Acompanho integralmente o voto de S.Exa., deferindo o pedido de homologação da sentença arbitral estrangeira”.[6]

6. Quanto ao consentimento ou declaração tácita, vale registrar as palavras de Vicente Ráo:

“Diz-se tácita a declaração de vontade resultante de certos atos, atitudes ou comportamentos incompatíveis, segundo os casos, com certa concordância ou com certa discordância. De um modo voluntário de proceder, revelado como fato exterior, a experiência infere (facta concludentia) que aquele que o pratica, ou mantém, assim manifesta ou declara uma vontade inconciliável, por força do princípio de contradição, com uma vontade oposta. ”[7]

7. Segundo Dário Moura Vicente:

“ Em suma, desde que o facto de que se infere o consentimento quanto á convenção de arbitragem (o facto concludente) obedeça à forma escrita, devem as exigências da lei portuguesa quanto à forma da convenção de arbitragem ser tidas por observadas. ”[8]

8. O consentimento tácito, portanto, alinha-se ao direito; ademais quando é sabido que o silêncio produz efeitos de direito.

9. Como bem esclarece Vicente Ráo:

“É incontestável e incontestado que o silêncio possui, na ordem jurídica, certo valor… Na realidade, o silêncio só produz efeitos jurídicos quando, devido às circunstâncias ou condições de fato que o cercam, a falta de resposta a interpelação, ato ou fatos alheios, ou seja, a abstenção, a atitude omissiva e voluntária de quem silencia induz a outra parte, como a qualquer pessoa induziria, à crença legítima de haver o silente revelado, desse modo, uma vontade seguramente identificada ”[9]

10. O Código Civil afirma o entendimento da doutrina ao dispor em seu art. 111 que, “O silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o autorizarem, e não for necessária a declaração de vontade expressa”.

11. Aduz Dário Moura Vicente no tocante a aceitação do silêncio como forma de consentimento relativamente a uma convenção de arbitragem que:

“No Direito alemão, por exemplo, é tida como válida a convenção de arbitragem contida em documento transmitido por uma das partes à outra, ou por terceiros a ambas, se não tiver sido formulada objecção a ele em devido tempo e o conteúdo desse documento for considerado parte do contrato segundo os usos.”[10]

12. No âmbito da arbitragem, afirmam os estudiosos que o consentimento pode ser inferido, no caso concreto, por força de peculiaridades na atuação, postura, posição ou ação do terceiro frente ao negócio jurídico cujos termos e condições resultaram na disputa arbitral.

13. Nesse sentido podemos citar as teorias da Presunção por Conduta, do Terceiro Beneficiário (Estipulação em Favor de Terceiro), do Alter Ego (Desconsideração da Pessoa Jurídica), do Agente, e a do Grupo de Contratos.

14. De acordo com John Townsend:

“2) Assumption by conduct – Absent a signature, a party nevertheless may be bound by an arbitration clause if its conduct indicates it is assuming the obligation to arbitrate. (…) The court said: ‘although a party is bound by an arbitral award only where it has agreed to arbitrate, an agreement may be implied from the party’s conduct’.

3) Third-Party Beneficiary – An exception to the general rule that a contract does not confer enforceable rights upon nonsignatories arises when the contracting parties intend to confer benefits on a third party. The right to arbitrate is a right that can be conferred on a third party if the intention to do so can be discerned from the contract. (…)

4) Agency – (…) This theory holds that, when a principal is bound under the terms of a valid arbitration clause, its agents, employees and representatives are also covered under the agreement’s terms. (…)

6) Piercing the corporate veil – Several courts have discussed the possibility of piercing the corporate veil or using alter ego theory to bind nonsignatory parties to, or to give them the benefit of, arbitration clauses in contracts entered into by their affiliates. When the courts have done so, the claims against the nonsignatory and its affiliate have been closely related. For instance, the 4th Circuit said:

‘ When the charges against a parent company are based on the same facts and are inherently inseparable, a court may refer claims against the parent to arbitration even though the parent is not formally a party to the arbitration agreement… If the parent corporation was forced to try the case, the arbitration proceedings would be rendered meaningless and the federal policy in favor of arbitration effectively thwarted’. (…)

It is important to note that a corporate relationship alone is not sufficient to bind a nonsignatory to an arbitration agreement. (…) The 10 th Circuit said: ‘Courts do not lightly pierce the corporate veil in deference to the strong policy favoring arbitration’ ”.[11]

15. Ricardo Lorenzetti bem resume a teoria do Grupo de Contrato:

“Muchos autores han tratado el tema de los contratos coligados señalando que hay ‘uma pluralidad coordinada de contratos, cada uno de los cuales responde a uma causa autônoma, aun cuando em conjunto tiendan a la realización de una operación econômica unitária y compleja’. Hay um negocio único que se desmembra em distintos contratos (…). Esta conexión entre los contratos puede darse unilateralmente (contrato accesorio de um principal), recíprocamente (contratos dependientes entre si por uma operación econômica). Siguiendo com la tesis de Galgano, se indica que la relevância principal de este instituto es que, si bien los contratos mantienen su individualidad, los efectos de uno (invalidez, resolución) pueden repercutir sobre el outro .”[12]

16. Na lição de Gilda Ferrando:

“ É opinião corrente que se verifique a coligação toda vez em que as partes, no exercício de sua autonomia negocial, dão vida, contextualmente ou não, a diversos distintos contratos os quais caracterizando-se cada um em função da própria causa e conservando a individualidade própria de qualquer tipo negocial, a cuja disciplina pertencem respectivamente sobrepostos, vêm todavia concebidos e queridos como funcionalmente e teleologicamente coligados entre si e postos em relação de recíproca dependência, de modo que as modificações de um devem repercutir-se no outro condicionando-se a validade e a eficácia ”[13]

17. Segundo a teoria do Grupo de Contratos, o feixe de relações que interligam os instrumentos contratuais, sua conectividade e interdependência conduzem a interpretação da extensão da cláusula arbitral contida em um ou mais contratos, a todos os instrumento que formam o grupo contratual.

18. A jurisprudência arbitral tem acompanhado a doutrina para impor os efeitos da cláusula compromissória à terceiros não signatários. Em outras palavras, para afirmar a validade e a eficácia do consentimento tácito.

19. No célebre caso Dow Chemical, a cláusula arbitral foi estendida às sociedades Dow Chemical e a sua filial (“X”), não signatárias dos contratos litigiosos, pelos seguintes argumentos:

“ Decidiram os árbitros que convinha ‘examinar sucessivamente as circunstâncias da negação, da execução e da resilição dos contratos’. Eles entenderam, assim, que a sociedade X, ainda que não tivesse sido signatária dos contratos, os tinha negociado, tendo ela mesma procedido às entregas previstas, se correspondido, numerosas vezes, com as sociedades francesas, referindo-se ao ‘nosso contrato (…)’. Quanto à Dow Chemical, a matriz, o tribunal assinalou que ela era proprietária das marcas sob as quais os produtos objetos dos contratos eram difundidos e exercia um controle absoluto sobre todas as suas filiais que participaram diretamente, ou que poderiam ter participado, da conclusão, execução ou da resilição dos contratos de distribuição litigiosos .”[14]

20. Em caso julgado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, manifestou-se entendimento semelhante:

“Sentença que instituiu Tribunal Arbitral para dirimir conflito entre as partes – Ilegitimidade de parte passiva afastada – Argumento reiteradamente desenvolvido que cai por terra, face às provas dos autos que demonstram à toda evidência o envolvimento nas negociações de que decorreu o litígio instaurado – Inexigibilidade de haver prévio contrato – Art. 1º da Lei 9.307/96 que tem como exigência capacidade das partes para contratar, o que deve ser entendido como capacidade civil para manter relação jurídica que envolva direitos patrimoniais disponíveis. (…) Recurso parcialmente provido“.[15]

21. A extensão dos efeitos da convenção de arbitragem atinge, de pleno direito, o cessionário do contrato que contenha cláusula compromissória.

22. O cessionário assume a posição de contratante originário e, por essa razão, passa a ser o titular dos direitos e obrigações convencionados na assinatura do contrato[16].

23. A cessão implica na mera substituição de uma das partes por outra que passa a integrar a relação jurídica, no estado em que se encontra[17].

24. A cessão não modifica o conteúdo material do negócio jurídico que permanece válido e eficaz em sua totalidade. Apenas altera o polo contratual pela substituição formal de um dos seus agentes. Nada mais.

25. Para que algumas de suas condições venham a ser modificadas, inclusive a convenção de arbitragem, imperativa a manifestação de vontade do contratante que permanece no acordo.

26. A cessão, repita-se, não afeta, interfere ou atinge o direito material constituído contratualmente. É ato unilateral de uma das partes que se afasta da relação jurídica e a entrega ao terceiro nas mesmas condições em que conquistou. Na cessão se preserva

o pacta sunt servanda.

27. E não há que se sustentar o princípio da autonomia da cláusula compromissória[18] como argumento para sujeitar sua eficácia ao expresso consentimento do cessionário.

28. Afinal, a gênese e a teleologia do princípio da autonomia não se prestam a atender esse entendimento. A razão de ser da autonomia não autoriza a conclusão de que o cessionário, para se vincular aos efeitos da cláusula, deve consentir expressamente no ato da cessão do contrato.

29. Esse princípio advém de razões históricas e se dirige a outras finalidades, notadamente a de se evitar espíritos emulativos tendentes, justamente, a afastar os efeitos da cláusula compromissória.

30. Conquanto esta seja autônoma em relação ao acordo em que esteja inserta, por certo se vale da instrumentalidade contratual para fins de transferência ou repasse de seu conteúdo e eficácia a terceiros.

40. Da mesma forma que se estende aos herdeiros e sucessores, seja singular ou universal.

41. Vejamos a doutrina e jurisprudência.

42. Segundo Thomas Clay,

“Tradicionalmente, considera-se que existem dois mecanismos permitindo a circulação da cláusula compromissória: a transmissão e a extensão. A transmissão é a operação pela qual uma pessoa recebe direitos já nascidos (adquiridos) que lhe são transmitidos em estado natural. É o caso, por exemplo, dos herdeiros, do cessionário de crédito ou de contrato e de certos casos de sub-rogação de direitos. A pessoa inicial é, então, desobrigada de sua obrigação. (…) Pode-se considerar que, com a transmissão, a cláusula segue o contrato no qual ela figura”[19].

43. No Caso nº. 6998/1994, julgado pela Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI), embora a disputa decorresse de relações contratuais estabelecidas entre Hotel, Inc., Hotel, Mônaco e German Co., tendo em vista que esta cedera suas obrigações contratuais para Joint Venture Co., Switzerland[20], foi em face desta, e não da German Co., que as requerentes Hotel, Inc. e Hotel, Mônaco ingressaram com o processo arbitral.

44. O Tribunal Arbitral concluiu que a Joint Venture Co., Switzerland era parte legítima do processo arbitral nos seguintes termos:

“The Tribunal holds therefore that Joint Venture Co., Switzerland is jointly bound vis-à-vis Hotel, Inc. and Hotel, Monaco, by the agreements purported to be assigned under the Supplementary Agreement, with the effect, inter alia, that it is bound by the arbitration clauses thereof, and that it is obligated towards [them] by the… Indemnification Agreement. It follows that Hotel, Inc. and Hotel, Monaco may claim directly against Joint Venture Co., Switzerland, under the various agreements in dispute in this arbitration and, in particular, under the… Indemnification Agreement”.[21]

45. Creio que, nessa linha de raciocínio, é evidente que a convenção de arbitragem permanecerá válida e eficaz nas circunstâncias em que haja sub-rogação de direitos.

46. Dispõe o art. 786, do Código Civil que, ”Paga a indenização, o segurador sub-roga-se, nos limites do valor respectivo, nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano”.

47. A regra legal é clara e, assim, não admite outra interpretação: o segurador sub-roga-se nos direitos e ações que competirem ao segurado contra o autor do dano. A norma é cristalina, objetiva e determinante, impondo como único limite ao sub-rogado, “o valor respectivo”.

48. Sabe-se que a arbitragem tem natureza jurisdicional e que a decisão do árbitro se equipara a dos juízes ordinários.

49. A arbitragem pressupõe um processo que pode levar o árbitro a proferir uma sentença de efeito declaratório ou constitutivo e, ainda, contemplar uma condenação. Essa decisão transita em julgado, para todos os fins e efeitos de direito.

50. Portanto, ao se sub-rogar nos direitos e ações que competirem ao segurado, o segurador há de examinar as bases contratuais de modo a verificar como se dará o pleno e efetivo exercício jurisdicional de seus direitos contra o segurado.

51. Se o contrato contiver cláusula compromissória, será em sede de arbitragem que a controvérsia deverá ser satisfeita.

52. O direito de ação restará sujeito à via arbitral, pois, por opção originária das partes contratantes, restou afastada a jurisdição estatal.

53. Assim como o sub-rogado se atém aos limites das condições previamente acordadas, também se submete, juntamente com o autor do dano, aos efeitos da convenção de arbitragem.

3. Intervenção de Terceiro no Processo Arbitral

1. Tema relevante e que, confesso, ainda não formei um juízo de valor, diz com a integração de terceiro interessado no processo arbitral por instituir, ou já instituído.

2. Trato daquele terceiro que toma conhecimento da disputa arbitral envolvendo determinadas pessoas e que, unilateral e espontaneamente, tem interesse em integrar um dos pólos processuais.

3. A doutrina, regra geral entende que a concretização da vontade desse terceiro depende da concordância da demandante e da demandada e, ainda, dos próprios árbitros nomeados para solucionar a questão controvertida.

4. Muito embora não tenha firmado um convencimento efetivo sobre a necessidade da autorização da demandante e demandada (a dos árbitros enfrentarei adiante), tendo a ser mais flexível e, para tanto, sublinharei, alguns aspectos jurídicos para minha própria reflexão e a dos estudiosos desse tema.

5. O ponto que impressiona a todos é a contratualidade da arbitragem. A arbitragem surge do acordo das partes que, por particularidades do negócio e interesses mútuos, convergem para o sistema arbitral futuros conflitos.

6. A doutrina e as legislações afirmam que a cláusula compromissória se insere num contrato resultante da manifestação de vontade das partes.

7. Entretanto, sem desconsiderar a base contratual da convenção de arbitragem, parece admissível se deslocar esse suporte para o ponto jurídico relevante desse acordo, qual seja, sua natureza publicista.

8. Sabe-se que a arbitragem nasce da vontade das partes. Quanto a isso não há dúvida. Sabe-se, também, que seus efeitos irão se produzir no campo público do direito; em sede processual, como instrumento do devido processo legal.

9. Com efeito, a cláusula compromissória nasce contratual para fazer desabrochar o processo arbitral. É o processo, o exercício da jurisdição, a função teleológica primordial da cláusula de arbitragem. O exercício jurisdicional é a essência da convenção.

10. Com a aceitação pelos árbitros do encargo consagra-se a jurisdição[22]. A aceitação da função arbitral é ato público de efeitos constitutivos de direito. Com a aceitação, revela- se a jurisdição. É a jurisdição o conteúdo jurídico que exprime a essência da cláusula compromissória. Conteúdo esse que se queda dormente até a constituição do painel arbitral. Encontra-se intrínseco à convenção de arbitragem para se manifestar no momento da aceitação do encargo pelos árbitros. É, pois, a jurisdição o efeito relevante, preponderante da convenção.

11. Jurisdição em seu sentido mais amplo, significativo, a conduzir as partes e seus interesses a uma prestação e a entrega efetiva da tutela jurisdicional. Jurisdição no senso ímpar de administração de justiça.

12. Esse conteúdo jurisdicional se desgarra e se descola da vontade das partes em sua nuance teleológica de realização da justiça.

13. E, para que produza esses efeitos, não precisa desconsiderar o acordo de vontades, ao contrário, com ele se embrica para alcançar interesses maiores que resultam do contrato.

14. O conteúdo jurisdicional e os ditos interesses maiores que se revelam da convenção tocarão a função social do contrato. Função essa que encerra o princípio da solidariedade (Constituição Federal, art. 3º, III, in fine) e é expressão dos pressupostos da eticidade e da socialidade projetado no sistema jurídico nacional[23].

15. A função social do contrato repercute o princípio constitucional da igualdade substancial, em oposição ao, nem sempre saudável, puro individualismo.

16. A mais prestante e inovadora eficácia do art. 421 (Código Civil) diz respeito, no entanto, à extensãopositiva e negativaa terceiros não determinados e a bens de interesse comum. Para além da função social atual como limite à ação individual em face de direitos e interesses de terceiros, atua positivamente, impondo deveres de atuação[24].

17. Essa normatividade encontra fundamento em uma tradição muito antiga: a idéia de justiça legal, de Tomás de Aquino que, na Summa Teológica , assentou: à justiça legal pertence ordenar o bem comum as coisas que são das pessoas particulares (Suma Teológica, II – II, 61 a.2)[25].

18. Com o implemento dos princípios da função social, da solidariedade, eticidade e da socialidade, resta reprimido e mitigado o pressuposto da relatividade do contrato.

19. Os princípios tradicionais do direito contratual – autonomia privada, obrigatoriedade do contrato e relatividade do contrato – passam a conviver com princípios emergentes, que apontam para uma ordem jurídica renovada[26].

20. Nas palavras de Antônio Junqueira de Azevedo:

“Está claramente determinada pela Constituição, ao fixar, como um dos fundamentos da República, o valor social da livre iniciativa (art. 1º, IV); essa disposição impõe, ao jurista, a proibição de ver o contrato como vir à tomo, algo que somente interessa às partes, desvinculado de tudo o mais. O contrato, qualquer contrato, tem importância para toda a sociedade e essa asserção, por força da Constituição, faz parte, hoje, do ordenamento positivo brasileiro.”[27]

21. Com a integração desses valores jurídicos ao sistema legal nacional não se pode olvidar a nova realidade em que se enquadram as relações contratuais. É imperativo que sejam encarados com focos abertos e uma visão mais flexível.

22. Com certeza, esses valores impõem limitação ao direito contratual. Restrições essas que operam efeitos, justamente, em favor de terceiros interessados.

23. E é por esse caminho que sugiro seja pensado o interesse de terceiros que, espontaneamente, buscam integrar um dos pólos da relação processual arbitral.

24. Sob à luz da função social do contrato e da convenção de arbitragem, a intervenção de terceiros no processo arbitral, norteado por interesse de tal terceiro, é mais palatável e deve conduzir o intérprete a uma exegese contemporânea, onde a contratualidade da convenção de arbitragem será posta em confronto com os princípios que dela irradiam, função social, solidariedade e socialidade.

25. Complexo é o exercício oposto, de imposição da arbitragem à terceiros.

26. Mais fácil, deve ser, a integração de terceiros sponte propria em processo arbitral instituído por aqueles vinculados à cláusula compromissória.

27. A administração da justiça se apresenta mais eficaz com a participação espontânea do terceiro que demonstre ter legítimo interesse no resultado da disputa. Tal se coaduna com os princípios da efetividade e da economia processual.

28. Fica assim, de forma sucinta, posta à discussão a reflexão que faço acima e que ainda depende dos casos concretos para sua afirmação. Mas, desde logo, insisto que a discussão deve ter por premissa pensamentos despojados de misoneísmo.

29. Conquanto o debate que o tema anterior sugere, de um ponto não tenho dúvidas: os árbitros não poderão impedir a participação espontânea de terceiros se as partes na demanda com ela concordarem.

30. Discordo, nesse particular, da doutrina que afirma a necessidade de autorização dos árbitros para que a integração do terceiro seja efetivada.

31. Parece-me uma inversão de valores. Afinal, a jurisdição arbitral é exercida no interesse e por força da vontade das partes.

32. Olvidar esse pressuposto e assegurar aos árbitros tal poder de intervenção seria a negação da própria prestação efetiva da tutela jurisdicional.

33. Colocar-se-iam as partes e a arbitragem diante de verdadeira ditadura dos árbitros.

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  1. Advogado. Consultor em Arbitragem. O autor agradece a colaboração de Isabel Alves de Melo Miranda pela pesquisa realizada.
  2. Local onde se estabelece ou reside com ânimo definitivo
  3. “Art. 7º A lei do país em que domiciliada a pessoa determina as regras sobre o começo e o fim da personalidade, o nome, a capacidade e os direitos de família”. Em muitos países a capacidade de contratar das pessoas jurídicas rege-se pela lei do local onde se encontra estabelecida sua sede
  4. FOUCHARD, Ph.; GAILLARD, E.; GOLDMAN, B.. Fouchard, Gaillard, Goldman on International Commercial Arbitration. Emmanuel Gaillard; John Savage. A. Haia: Kluwer Law International, 1999, p. 245
  5. STJ, Corte Especial, SEC 856/EX, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j. 18.05.2005, DJ 27.06.2005, p. 203.
  6. Idem
  7. RÁO, Vicente. Ato Jurídico. 3ª ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1994, p. 117.
  8. VICENTE, Dário Moura. “A Manifestação do Consentimento na Convenção de Arbitragem”. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Coimbra Editora, 2002, pp. 99/100.
  9. Op. Cit., pp. 119/120. Sustenta o autor, com base em Serpa Lopes, que os elementos de definição do silêncio são os seguintes: manifestação da vontade por meio de um comportamento negativo; deduzida de circunstâncias concludentes; caracterizada pelo dever e possibilidade de falar por parte do silente; e pela convicção da outra parte de haver, nesse comportamento negativo e nessas circunstâncias, uma direção de vontade inequívoca e incompatível com a expressão de uma vontade oposta. Ráo aduz a tais elementos, outro mais: O comportamento negativo do silente e respectivas circunstâncias devem induzir a outra parte à acenada convicção, como induziriam, de modo normal, qualquer outra pessoa igualmente prudente e de boa-fé.
  10. 10 Op. cit. p. 100.
  11. TOWNSEND, John M.. “Agency, Alter Ego and Other Identity Issues: Nonsignatories and Arbitration. ADR – The Newsletter of Dispute Resolution Law and Practice, v. 3, n. 3, set. 1998).
  12. LORENZETTI, Ricardo. “Redes contractuales: conceptualización jurídica, relaciones internas de colaboración, efectos frente a terceros”. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 8, out./dez. 1998, p. 29
  13. FERRANDO, Gilda. Apud Álvaro Villaça Azevedo, “Contratos Coligados de Sublocação de Imóvel e Franquia Comercial. Aplicabilidade do art. 21 da Lei n. 8.245/91”. Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro: Padma, n. 8, out./dez. 2001, pp. 226-227.
  14. CAPRASSE, Olivier. “A Arbitragem e os Grupos de Sociedades”. Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem. Rio de Janeiro: Revista dos Tribunais, ano 6, v. 21, jul./set. 2003, pp. 347-348.
  15. TJSP, 7ª Câmara de Direito Privado, AC 267.450.4/6-00, Rel. Des. Constança Gonzaga, j. 24.05.2006
  16. Art. 349. A sub-rogação transfere ao novo credor todos os direitos, ações, privilégios e garantias do primitivo, em relação à dívida, contra o devedor principal e os fiadores.
  17. Ressalvem-se, por óbvio, alterações que venham a ser acordadas com a anuência da parte não envolvida na cessão.Portanto, se excluída do contrato a cláusula compromissória, por exigência do cessionário, essa convenção perderá sua eficácia, dada a concordância expressa da parte que seguirá a relação com o cessionário.
  18. Lei nº 9.307/1996, art. 8º, caput: “A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória”.
  19. CLAY, Thomas. “A Extensão da Cláusula Compromissória as Partes não Contratantes (Fora Grupos de Contratos e Grupos de Sociedades/Empresas)”. Revista Brasileira de Arbitragem. Ano II, n. 8, out./dez. 2005, p. 74.
  20. O Indemnification Agreement celebrado entre German Co. e Joint Venture Co., Switzerland, continha a seguinte previsão: “Notwithstanding the provision… above, the German Co. shall be automatically released from its obligation under this Agreement provided that at the time of the transfer of the hotel or the Shares as contemplated… above: i) the purchaser enters into all existing agreements between the parties relating to the Hotel, Monaco, and sign on its own behalf an indemnification agreement identical to this agreement… and particularly in the event of such transfers a provision identical to this…; and ii) it can be reasonably concluded that the purchaser is in position to honor, financially and legally, the obligations it will undertake under the indemnification agreement”. (ARNALDEZ, Jean-J.; DERAINS, Yves; HASCHER, Dominique. Collection of ICC arbitral awards: 1996-2000. Paris: Kluwer Law and Taxation Publishers, 2003, p. 19).
  21. Idem, pp. 22/23.
  22. Nos termos do art. 19, caput, da Lei de Arbitragem: “Considera-se instituída a arbitragem quando aceita a nomeação pelo árbitro, se for único, ou por todos, se forem vários”.
  23. Em comentário ao Projeto de Código Civil, Miguel Reale esclarece que, através da eticidade, “O novo Código, por conseguinte, confere ao juiz não só poder para suprir lacunas, mas também para resolver, onde e quando previsto, de conformidade com valores éticos, ou se a regra jurídica for deficiente ou inajustável à especificidade do caso concreto. (…) Em nosso projeto não prevalece a crença na plenitude hermética do Direito Positivo, sendo reconhecida a imprescindível eticidade do ordenamento. O código é um sistema, um conjunto harmônico de preceitos que exigem a todo instante recurso à analogia e a princípios gerais, devendo ser valoradas todas as consequências da cláusula rebus sic stantibus. Nesse sentido, é posto o princípio do equilíbrio econômico dos contratos como base ética de todo o Direito Obrigacional”. Quanto à socialidade, o autor afirma que, “Se não houve a vitória do socialismo, houve o triunfo da ‘socialidade’, fazendo prevalecer os valores coletivos sobre os individuais, sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana”. (REALE, Miguel. “Visão Geral do Projeto de Código Civil”. Disponível em: <http://www.miguelreale.com.br/artigos/vgpcc.htm>. Acesso em 05.01.2007).
  24. MARTINS COSTA, Judith, “Reflexões sobre o Princípio da Função Social dos Contratos”, Revista Direito GV, vol.1, nº 1, Maio 2005, p.56
  25. Ibidem, p. 57.
  26. AZEVEDO, Antônio Junqueira de, apud Leonardo Mattieto, ”Função Social e Relatividade do Contrato: Um Contraste entre Princípios”, Revista Jurídica, Abril 2006, p. 30.
  27. Ibidem, p.32.

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