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Pedro A. Batista Martins[1]

1. Intróito

1. A democratização das massas que se faz presente no final do século XX penetra sobremaneira no campo processual civil, como força aliada da última onda renovatória no acesso à justiça. Concretiza o anseio cidadão de efetiva participação nas atividades administrativas, políticas e legais do Estado.

2. A distância entre representados e representantes e a constante inatividade da máquina estatal têm levado os indivíduos a movimentos proativos de defesa de seus interesses naturais.

3. E o Estado, em certa medida, tem correspondido a essa realidade. Os institutos da ação popular e da ação civil pública são exemplos de instrumentos jurídicos postos à disposição dos cidadãos e associações para cooperarem com o Estado na tarefa de realização da justiça. O mesmo ocorre com as atividades jurisdicionais do Júri e dos antigos juízes classistas. Por interesse políticos e desejo do cidadão, o Estado delega poderes a particulares para decidirem, com autoridade, as lides que se instauram.

4. Consubstanciam-se em caminhos legais de democratização processual, fruto este da estagnação estatal no plano do acesso à justiça e da conscientização da fragilidade do Estado frente a sua pretensa onipotência.

5. Nesse diapasão, a experiência de outros povos aponta a arbitragem como outro bom exemplo do convívio harmônico e frutífero Estado / cidadão na realização do desiderato supremo de justiça. No interesse e sob a supervisão do Estado, e por sua expressa autorização, particulares livremente escolhidos pelos interessados dizem o direito ao caso concreto.

6. Essa publicização da justiça está em linha com os modernos direitos sociais, que renegam o Estado inócuo e clamam por uma efetiva participação dos cidadãos nas questões básicas de convivência social. O novo milênio está frente à solidariedade, ao consenso e à boa-fé, atributos presentes nos meios alternativos de solução de controvérsias[2].

2. O art. 5°, inciso XXXV da Constituição Federal

7. A inserção desse dispositivo na Carta de 1946 objetivou, exclusivamente, espantar experiência ditatorial que precedeu a Constituinte, regime esse que permite a submissão de certos casos ao crivo definitivo de tribunais administrativos. Leis eram promulgadas com o objetivo de impedir os cidadãos de buscar as vias judiciais para dirimir o conflito ou mesmo para rever as decisões proferidas por comissões paralegais.

8. Daí a menção que o inciso XXXV, do art. 5° do Constituição Federal atual faz à lei, pois, como bem esclarece BRANDÃO CAVALCANTE, essa referência expressa tem seu fundamento basilar na tendência de certa legislação do regime constitucional de 1937, que excluía da apreciação judicial as providências nela consagrada; o interesse público servia de fundamento àquelas medidas[3].

9. Corroborando esse entendimento, salienta PONTES DE MIRANDA que o objetivo da norma constitucional em apreço foi o de educar as próprias autoridades governamentais, já que é para elas que se direciona o princípio – “dirige-se ela aos legisladores: os legisladores ordinários nenhuma regra jurídica podem editar que permita preclusão em processo administrativo, ou em inquérito parlamentar, de modo que se exclua a cognição pelo Poder Judiciário”[4].

10. Vê-se que o bem jurídico protegido é a garantia de acesso. Não pode o Legislativo ou o Executivo – destinatários da norma – vedar, por lei, o direito de qualquer pessoa acionar o Poder Judiciário para a tutela de seu direito.

11. Entretanto, não há no preceito constitucional, seja explícita ou implicitamente, nenhuma proibição que possa levar o intérprete a concluir pela impossibilidade de qualquer pessoa resolver suas controvérsias fora da arena judicial.

12. O cidadão tem autoridade para transacionar o seu direito, ou até mesmo a ele renunciar.

13. Esta questão, por sinal, se encontra superada na doutrina e jurisprudência comparada.

14. No campo jurisprudencial assinalam CRAIG, PARK E PAULSSON que, na França, a Suprema Corte entendeu que a cláusula compromissória constitui renúncia válida ao princípio de direito natural[5].

15. Conforme salienta Marcelo LIMA GUERRA, tem crescido o reconhecimento e a proteção dos chamados “novos direitos”, isto é, situações não enquadráveis no clássico catálogo de direitos subjetivos, onde se encaixa a obrigação de fazer. Nesse sentido sustenta referido autor que é à luz da exigência de prestação efetiva de tutela executiva, como conteúdo de um direito fundamental, que se pode dimensionar a importância da regra contida no parágrafo 5° do art. 461 do CPC[6].

3.1. Irrelevante também o desconhecimento do preciso objeto da controvérsia, quando da assinatura da cláusula compromissória, pois que tal ignorância é relativa.

16. Essa aparente insegurança jurídica não enseja, por si só, o desnaturamento dos efeitos jurídicos da cláusula compromissória. Isso porque a disputa, por ter origem em contrato, tem seu escopo confiavelmente confinado nos limites da relação jurídica ajustada.

17. O que importa ao direito é a determinabilidade da questão conflituosa.

18. As nuances havidas entre o determinado e o determinável já não importam mais ao intérprete.

19. Os instrumentos contratuais, por sua própria natureza, trazem em si, frequentemente, comandos de cunho determinável a necessitar de convalidação futura e, nem por isso, traduzem-se em meras projeções de direito desprovidas de eficácia.

20. A inexequibilidade dessa específica obrigação de fazer – instituir a arbitragem – afronta o nosso sistema legal, mormente após a radical mudança conceitual das normas processuais, na direção da efetividade e da busca da concretização do negócio jurídico contratado.

21. O que o direito rechaça é a cláusula compromissória aberta – sem fronteiras – onde as partes convencionam submeter à arbitragem litígios futuros desvinculados de qualquer relação jurídica preexistente.

3.2. Por outro lado, o direito de ação não resta afetado por qualquer das normas da lei de arbitragem, posto que esse direito não se figura um dever, já que passível de renuncia por ato de vontade, seja por ação expressa, tácita ou mesmo por total passividade de seu titular.

22. Trata-se de direito adjetivo afeto a direito patrimonial disponível. Como assevera Carlos Eduardo CAPUTO BASTOS, “na consideração de que a ação é o instrumento de realização do direito material, a renúncia deste, em sendo possível (direito patrimonial disponível), há de oportunizar, por via de consequência, a renúncia daquela, até porque, no plano de correspectividade entre direito e ação, a renuncia ao direito de ação estará balizada na mesma proporção da medida e possibilidade de renúncia da pretensão material de que o sujeito é titular”[7].

23. Não bastasse, podemos aludir que a aparência de renúncia do direito de ação traduz-se, na verdade, em um deslocamento da jurisdição onde ele opera. Esse direito passa a ser exercido em sede arbitral, por autorização expressa do Estado, onde, regra geral, também deságuam os clássicos conceitos de jurisdição, ação e processo.

24. Neste sentido acentua J.E. CARREIRA ALVIM: “as deficiências da Justiça Estatal, notoriamente ligadas à sua deficiente estrutura operacional, podem ser equacionadas com a transposição dos conflitos do campo da jurisdição estatal para o da jurisdição arbitral; ao mesmo tempo, o processo, enquanto instrumento, será o adequado à controvérsia a ser dirimida; e a ação será a ajustada ao litígio a ser julgado”[8].

4. Direito Comparado

25. Em breve incursão na legislação e doutrina comparada, verificamos que a lei nacional, no que tange à intervenção do Judiciário como forma de cooperação na instituição da arbitragem, se encontra em linha com as legislações mais modernas sobre arbitragem, editadas nos últimos vinte anos.

26. Em Portugal, a Lei n. 31 de 29.08.86 (artigo 12) outorga aos tribunais a possibilidade de delimitar o litígio e indicar árbitros, na ausência de acordo das partes[9].

27. Na Espanha, a lei de arbitragem autoriza a intervenção judicial caso as partes não acordam quanto à nomeação do árbitro[10].

28. Nos Estados Unidos, após a Segunda Grande Guerra, a Suprema Corte assentou jurisprudência quanto à eficácia e executoriedade da cláusula compromissória[11].

29. Igualmente, na Itália, a nomeação do árbitro poderá ser efetivada via execução compulsória, perante a autoridade judiciária, nos termos dos artigos 4° e 5° da Lei n. 5 de janeiro de 1994[12].

30. Também no direito alemão é permitida a intervenção do Judiciário para decidir sobre a nomeação do árbitro nos termos do art. 1035 do CPC (com a modificação introduzida pela Lei de 22.12.97)[13].

31. A Holanda, que desde 1986 possui uma das mais completas leis sobre arbitragem, estabelecendo no art. 1027 do Código de Processo Civil que as partes são livres para determinar como os árbitros serão indicados competindo ao presidente da Corte Distrital nomeá-los na ausência de acordo das partes[14].

32. Na Inglaterra, também o Judiciário pode ser chamado a intervir na nomeação de árbitro, conforme previsto no art. 18 do Arbitration Act, de 1996, em vigor a partir de janeiro de 1997.

33. Na Bélgica, por meio da Lei de 19 de maio de 1998, que alterou os dispositivos relativos à arbitragem no denominado Código Judiciário, o art. 1684 outorga competência para o Presidente do Tribunal de Primeira Instância indicar árbitro quando uma das partes deixar de faze-lo[15].

34. Perfilhando a mesma senda, encontramos ainda na legislação unitária dos Cartões Suíços que regula as arbitragens domésticas (Concordat sur l’arbitrage de 27.08.69) a competência do Tribunal Superior da jurisdição civil ordinária do Cantão em que se encontra a sede da arbitragem para nomear árbitros, quando as partes não o fazem, ou haja divergências. Para as arbitragens internacionais com sede na Suíça, a Lei de 1987, no art. 179, estipula tratamento idêntico e manda aplicar, quando for o caso, o previsto na legislação cantonal[16].

35. Recentemente temos a lei grega, de 18 de outubro de 1999, que prevê a interferência do Judiciário para indicar árbitros (art. 11)[17], e a Lei Sueca, de 04 de março de 1999, cujo art. 12 outorga competência para o Tribunal de Primeira Instância nomear árbitros[18].

  1. Advogado, Professor e Consultor em Arbitragem.
  2. Kazuo Watanabe com proficiência adverte que “não se pode pensar no sistema de resolução dos conflitos através da adjudicação da solução da autoridade estatal. Conflitos há, mormente aqueles que envolvem pessoas em contato permanente, como nas relações jurídicas continuativas (v.g. relações de vizinhança, de família, de locação), para os quais a mediação e a conciliação são adequadas, pois não somente solucionam os conflitos como têm a virtude de pacificar os conflitantes. E há outros em que o arbitramento é perfeitamente cabível, com a possibilidade de amplos resultados positivos.” Acesso à justiça na Sociedade Moderna, IN: Participação e Processo, Ada Pellegrini GRINOVER et alii, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1988, p.132. 
  3. Apud J. CRETELLA JR. IN: Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Rio de Janeiro, Forense Universitária, v.I, p.434
  4. Comentários à Constituição de 1967, São Paulo, Revista dos Tribunais, 1971, tomo V,p.109.
  5. International Chamber of Commercial Arbitration, Paris, ICC – Publishing S.A, 1990, p.491.
  6. Inovações na Execução Direta das Obrigações de Fazer e Não Fazer, IN: Processo de Execução e Assuntos Afins, Coord. Teresa Arrudas Alvim WAMBIER, São Paulo, Revista dos Tribunais, p.298/9.
  7. A Questão Constitucional da Arbitragem, Correio Braziliense, Maio/99.
  8. Tratado Geral da Arbitragem Interno, Belo Horizonte, Mandamentos, 2000, p.83.
  9. Antonio MARQUES DOS SANTOS, Notas sobre a Nova Lei Portuguesa à Arbitragem Voluntária. Lei n. 31/86, de 29 de Agosto, Revista de La Corte Española de Arbitraje, vol. IV, 1987, p.15/50.
  10. Lorca NAVARRETE, op. cit. P.55 
  11. E. ZELEK, Commercial and Labor Arbitration in Central América, coordenado por Alejandro Garro, Transational Juris, Nova Iorque, 1990, p.233 
  12. Amoldo WALD, Da Constitucionalidade da Lei n. 9307/96, Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem, RT, ano 3, n.7, jan/marc.,2000, p.329.
  13. Cf. Miguel GOMES JENE, La Nueva Regulación del Arbitraje en Alemania, Revista de la Corte Española de Arbitraje, vol XIV, 1998, p.369.
  14. J.E. BITTER, Comentário. Ley Holandesa de Arbitraje de 1986, Revista de La Corte Española de Arbitraje, vol V, 1988-89, p.422.
  15. Revue de L’Arbitrage, n.3, 1999, p.695.
  16. Cf. Pierre LALIVE, F. POUDRET & C. REYMOND, Le Droit de L’Arbitrage Interne et International en Suisse, Payout Lausanne, 1989, p.40 e 179. 
  17. Revue de L’Arbitrage, n.2, 2000, p.329/30.
  18. Revue de L’Arbitrage, n.1, 2000, p.146.

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