Pedro A. Batista Martins
O direito desportivo nos remete a uma prática que extrapola fronteiras, países, povos, raças e religiões. O desporto é, sobremaneira, a síntese da globalização tão presente no mundo econômico-comercial contemporâneo que resta clara quando verificamos que a FIFA congrega maior número de países do que a Organização das Nações Unidas.
Nessa seara, o futebol é o exemplo clássico dessa realidade traduzida no sentimento e na paixão que impregnam milhões, ou mesmo bilhões de pessoas notadamente quando da realização da Copa do Mundo, um dos momentos de ápice desse esporte.
Enfim, o esporte tem o dom de unir nações e povos, e atrair a atenção de espectadores dos mais variados matizes.
Por outro lado, e pela popularidade e visibilidade que dele despontam, o futebol é polo de atração de diversos interesses econômicos e comerciais, que a ele se ligam, a rigor, como instrumentos ou molas propulsoras a impulsionar seu próprio desenvolvimento.[1]
E se assim é – e não há dúvida – não se pode olvidar que os muitos interesses em jogo acabam por gerar conflitos, nem sempre resolvidos de forma amigável. E é nesse momento que a arbitragem, como instrumento célere e confiável de resolução de conflitos, deve ser considerada pelos que integram toda a cadeia das relações comerciais desportivas.
Afinal, estamos frente a um segmento muito peculiar e de caráter internacional e globalizado – sem embargo do viés doméstico – que requer, via de consequência, resolução rápida das controvérsias, por especialistas e de forma confidencial.
Por essas sintéticas razões, impressiona a inexistência, no Brasil, de maior gama de disputas postas à solução por arbitragem, envolvendo questões relacionadas às relações negociais daqueles que atuam no segmento desportivo.
Não à toa, clama Pedro Trengrouse: “Quanto tempo ainda mais o Brasil vai esperar para organizar esse mecanismo por aqui?”[2]
Sem embargo, parece-me questão de tempo, pois já se apresentam, hoje, alguns poucos conflitos relacionados ao esporte submetidos à apreciação e julgamento por árbitros.[3]
E disso não se olvide: a arbitragem é, sem dúvida, componente relevante na equação contratual. Não há como se negar o chamado “custo Brasil” no campo da administração da justiça. Dados publicados em 2014 atestam que o Brasil ocupava, no mundo, o 101º lugar no ranking de eficiência do aparato legal em resolver litígios. Em 2000, pesquisa demonstrou que 91% dos empresários avaliavam como ruim a morosidade da justiça brasileira e, ainda, que uma melhora acentuada da performance do Poder Judiciário levaria a: (i) aumento de 18,5% no volume de negócios, (ii) alta de 13,7% nos investimentos, (iii) aumento de 12,3% na contratação de trabalhadores, (iv) 13,9% de aumento na proporção de atividades terceirizadas e (v) 13,7% mais negócios com o setor público.[4]
Ademais, o custo pela demora no ressarcimento das inadimplências implica na elevação das taxas de empréstimos e de outros produtos financeiros, com impacto direto nos custos de transação.
Por seu turno, a arbitragem, pela celeridade e ausência de recursos, a par de outros benefícios, confere maior grau de segurança à equação econômico-financeira dos contratos, reduzindo o custo de transação.[5]
É, ainda, a arbitragem mola propulsora na atração de investimentos, fato esse evidenciado no momento em que se inaugurou no País a era das privatizações. Naquela oportunidade, seja antes mesmo da edição da Lei de Arbitragem ou no período em que estava sub judice a sua constitucionalidade, o Congresso promulgou leis (v.g. Lei 8.987/95 – Lei de Concessão e Permissão de Serviços Públicos, Lei 9.478/97 – Lei do Petróleo e Lei 9.472/97 – Lei das Telecomunicações) que indicavam a arbitragem como meio de solução dos conflitos relacionados às concessões, com o intuito de imprimir maior competição aos certames e segurança jurídica aos players nacionais e internacionais.
Com a edição da Lei de Arbitragem em 1996, a aceitação da via arbitral pelos empresários e o apoio do Poder Judiciário, observa-se um crescimento exponencial na sua utilização e a afirmação do Brasil como “país amigo da arbitragem”.
Os números expressam-se por si só. Grosso modo, entre 2005 e 2010 os valores em disputa nos processos de arbitragem que tramitavam em cinco Câmaras aumentaram, aproximadamente, 10 vezes, passando de R$ 248 milhões para R$ 2,3 bilhões. De 2010 a 2013 o valor das demandas de arbitragem em curso chegaram a R$ 16 bilhões.
Essa rápida mirada nos dados estatísticos é suficiente para demonstrar a relevância da arbitragem como mecanismo de resolução de disputas empresariais, e por que não na esfera desportiva?
Importante destacar que o arcabouço jurídico nacional vai ao encontro dessa tendência, podendo se extrair, até mesmo, o interesse do Estado em dirimir por arbitragem os conflitos oriundos de transações desportivas.
Nesse sentido, emblemático o art. 90-C da Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé) ao “admitir” a utilização da arbitragem para a solução de conflitos patrimoniais disponíveis.[6]
Realço “admitir”, pois o art. 90-C foi introduzido na Lei Pelé em 2011 (Lei n. 12.395, de 16 de março de 2011), portanto, muito após a promulgação da Lei de Arbitragem – 1996 – cujo art. 1º, por si só, já autorizava que conflitos relacionados a negócios desportivos fossem resolvidos por árbitros. Em outros termos, referido artigo dispunha que todas as questões de direito patrimonial disponível eram passíveis de submissão à arbitragem, o que inclui a vasta maioria das matérias desportivas.
Seria, então, inútil a regra estampada no referido art. 90-C da Lei Pelé? Do ponto de vista técnico-jurídico, sem dúvida alguma. No entanto, sob o ângulo didático ou das relações sociais, penso que não, pois há nele componente interessante de indução do legislador no sentido de encaminhar à arbitragem os agentes e as partes desse setor econômico.
E o campo de atuação é abrangente: disputas relativas a patrocínio de atletas e clubes; direitos de transmissão; transferências de atletas; contratos de agenciamento e prestação de serviços; uso de marcas; exploração comercial de arenas multiesportivas; acordo de publicidade; arrendamento e investimentos em arenas, etc.
Ressalte-se que essa força indutora – essa vontade legislativa -, é tão forte que até mesmo questões de natureza trabalhista – tema por demais sensível – podem ser resolvidas pela via arbitral, se prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho.[7]
Em suma, a disposição introduzida na Lei Pelé está alinhada com o arcabouço jurídico nacional e o interesse do Estado em viabilizar ao jurisdicionado mecanismos extrajudiciais de pacificação de conflitos e, ainda, com a visão contemporânea que confere à arbitragem papel de destaque na equação econômico-financeira dos contratos, posto ser, reitere-se, a arbitragem componente relevante no contexto contratual, haja vista o ônus que o litígio gera nos custos de transação.
Por fim, é curioso notar que a despeito da importância que o art. 90-C encerra para a arbitragem nas relações comerciais desportivas, o mesmo dispositivo veda seu uso nas questões referentes à disciplina e à competição desportiva.
Trata-se de previsão legal cuja análise e interpretação deve se dar cum grano salis.
Seus efeitos merecem ser revisitados, sob pena de se sepultar, para todos os fins, o uso da arbitragem em temas cuja especialização técnica sobressai.
Por sinal, no campo internacional, a FIFA determina a seus membros, federações, confederações, ligas e jogadores, total obediência à Câmara de Arbitragem do Esporte (Court of Arbitration for Sport – CAS).[8] Em outros termos, na esfera não doméstica das competições futebolísticas, prepondera a solução arbitral.
Na realidade, essa regra de exceção prevista ao final do art. 90-C da Lei Pelé, ao que parece, procura refletir o conteúdo do art. 217, parágrafo 1º, da Constituição Federal, in verbis: “O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.”
Observa-se, contudo, que a Constituição Federal não veda a solução dessas questões por arbitragem, tão somente as encaminha à via técnica, ou seja, à justiça desportiva, cuja decisão final deve se dar em 60 dias. [9]
Cria, por assim dizer, um cool period para que as controvérsias dessa espécie sejam debatidas e decididas por órgão especializado e dentro de prazo razoável que questões de tais natureza demandam.
Quer-se dizer que a Constituição, ao remeter essas disputas à justiça desportiva tenciona, com isso, viabilizar sua solução fora do Poder Judiciário; ou mais, visa assegurar aos demandantes tutela justa, especializada e célere.
Nessa linha, a vedação ao uso da arbitragem para solucionar matérias relacionadas à disciplina e às competições desportivas mostra-se um grave retrocesso. Enorme disparate e flagrante paradoxo.
Isso porque, ao mesmo tempo em que o norte é a solução rápida por órgão especializado (justiça desportiva e prazo de 60 dias), o recurso à arbitragem é desautorizado.
Reitere-se, que o que a Constituição mira é exatamente conferir competência a uma instância própria e técnica para solucionar as questões disciplinares e de competição.
O constituinte quis – e quer – que o Poder Judiciário não seja envolvido em conflitos que demandam análise de regras, regulamentos, práticas e técnicas desportivas com feições específicas que requerem conhecimento e vivência particulares e peculiares.
Mais ainda, os conflitos da espécie reclamam rapidez no seu processamento e decisão final, o que vai de encontro ao ritmo, ao procedimento e aos vários recursos e instâncias judiciais.
Por essa razão que a Constituição prestigia a Justiça Desportiva; por essa razão que, superada essa fase decisória, e cabendo ainda tutela jurisdicional, o juízo arbitral é o que melhor se apresenta para a solução definitiva. É a que melhor traduz a ratio que encerra o art. 217, parágrafo 1º da Constituição.[10]
Em suma, conquanto a arbitragem tenha crescido no Brasil de forma exponencial nos últimos anos, ainda não é de todo utilizada como via de resolução de disputas oriundas de transações levadas a cabo no segmento desportivo.
Ademais, à luz dos esforços na implementação de novos paradigmas de solução de conflitos – negociação, mediação e conciliação – e da demanda pela redução do tempo na entrega da tutela jurisdicional, há de progredir o entendimento de que também as questões relativas à disciplina e à competição desportiva não devem ser levadas ao Poder Judiciário e, sim (se necessário for), resolvidas por arbitragem.
- Note-se que dados do ano 2006 registram que o futebol movimentou, no mundo, em torno de US$ 300 bilhões, valor esse superior ao Produto Interno Bruto (PIB) da Argentina. ↑
- TRENGROUSE, Pedro. Governança no Esporte, Urgente!. Jornal Lance. Publicado em 8 de junho de 2014. Disponível em <http://www.lancenet.com.br.> ↑
- Temas envolvendo questões contratuais com patrocinadores e direitos patrimoniais atinentes ao uso de arena esportiva. ↑
- PINHEIRO, Armando Castelar. A Justiça e o Brasil. Revista USP, n. 101, março/abril/maio 2014, pp. 146 e 154. ↑
- Uma Justiça cada vez mais Abarrotada de Processos. Jornal Valor Econômico. A reportagem publicada em fevereiro de 2006 menciona que estudo do Banco Central estima que 20% da composição do spread bancário cobrado no Brasil correlacionam-se à taxa de inadimplência e, por conseguinte, à dificuldade dos credores recuperarem judicialmente os créditos devidos. Ademais, o mesmo estudo aponta que quanto menor o crédito, mais difícil recuperá-lo. A execução judicial de R$500,00 demanda 5 anos e o credor nada recebe; a cobrança de R$ 50 mil resulta, em média, no ressarcimento de R$ 12 mil. ↑
- “As partes interessadas poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, vedada a apreciação de matéria referente à disciplina e à competição desportiva.” (Disposição introduzida na Lei n. 9.615, de 24 de março de 1998, por força da alteração determinada pela Lei 12.395, de 16 de março de 2011). ↑
- “Art. 90-C. omissis. Parágrafo Único. A arbitragem deverá estar prevista em acordo ou convenção coletiva de trabalho e só poderá ser instituída após a concordância expressa de ambas as partes, mediante cláusula compromissória ou compromisso.” ↑
- Cf. art., 67 do Estatuto FIFA 2015. ↑
- Cf. parágrafo 2º do art. 217. ↑
- Como salienta Pedro Trengrouse, “A UEFA, por exemplo, com estrutura própria e discreta, consegue cuidar da Champions League, sem virada de mesa nem tapetão. Havendo maiores controvérsias, cabe recurso a Corte de Arbitragem do Esporte. Aliás, a arbitragem como mecanismo de resolução de disputas no esporte nacional acabaria de uma vez por todas com recursos à Justiça.” (Op. cit.). ↑