Livro: Memórias da Arbitragem
Entrevista com Pedro Batista Martins
Entrevistadores
Joaquim de Paiva Muniz
Octavio Fragata
Vitor Szpiz do Nascimento
Transcrição por Vitor Szpiz do Nascimento
JPM: Sendo um dos co-autores da lei, como você vê hoje a arbitragem tão forte? Você imaginava um sucesso tão grande quando começou a fazer o projeto de lei?
PBM: Realmente, o crescimento da arbitragem foi exponencial e surpreendente para todos nós que estávamos envolvidos com o trabalho do anteprojeto. Foi uma surpresa extremamente positiva. Sabíamos que seria uma ótima opção à administração da Justiça, não esperávamos que o sucesso viesse tão rápido.
O fato é que nós vimos que, logo no início, os empresários encamparam a arbitragem. Os advogados ainda tinham algum receio, por falta de conhecimento e muito ainda pela questão da ausência de recurso às instâncias superiores. Nada obstante, uma parte da comunidade, ainda que pequena, já era bastante favorável ao instituto.
Interessante notar que, ainda quando estava sub judice a constitucionalidade da Lei de Arbitragem, foram promulgadas leis no âmbito da administração pública em que a arbitragem era tida como uma das clausulas essenciais do contrato. Então existia, por um lado, uma vontade muito grande de se ter a arbitragem e, por outro lado, desconhecimento, ou mais, misoneísmo, o que é natural. E, de parcela dos advogados, uma clara relutância.
JPM: Como foi o seu primeiro contato com a arbitragem?
PBM: É interessante porque nunca se falou na palavra arbitragem nos cinco anos de faculdade que eu fiz, na UERJ.
Eu trabalhava em um escritório, e em 70 e início de 80, o Brasil viveu o chamado milagre econômico. Os juros bancários no estrangeiro estavam bem baixos, então foi um momento em que a política governamental visou fomentar as atividades de empresas estatais brasileiras no âmbito de energia, telecomunicações, nuclear, dentre outras tantas. Captaram-se muitos recursos externos e, nesse momento, o escritório em que eu trabalhava representava alguns bancos estrangeiros. Nos loan agreements, os contratos de empréstimo, havia a cláusula compromissória, e foi ali que eu, pela primeira vez, e já em meados da década de 80, me deparei com esse animal estranho chamado arbitragem.
Eu já tinha trabalhado no escritório do meu pai, no contencioso, e percebia claramente que precisávamos de algum mecanismo de solução de conflitos fora do Poder Judiciário, porque não era possível você amargar tanto tempo lutando no contencioso judicial e só ter essa única porta para a solução dos conflitos.
Aí eu vi aquela cláusula de arbitragem, e perguntei para o advogado que era o titular do escritório, e ele respondeu: “Pedro, não presta atenção nisso não, porque isso não tem qualquer eficácia no país”. Quando da assinatura de cada contrato de empréstimo internacional, nós tínhamos, na qualidade de advogados dos bancos estrangeiros, que elaborar e assinar a chamada legal opinion, atestando que as cláusulas dos contratos eram válidas e eficazes, e sempre inseríamos uma ressalva quanto aos efeitos da cláusula compromissória contida no contrato. E aí eu fiquei curioso e comecei a procurar no Brasil quem conhecia disso.
Comprei um livro escrito em conjunto pelo José Carlos de Magalhães e pelo Luiz Olavo Baptista, encontrei um ou dois artigos escrito pelo querido Guido Soares numa revista jurídica, e aqui no Rio de Janeiro havia como entusiastas do instituto o Theóphilo de Azeredo Santos e o Carlos Henrique Fróes. Tinha também o Pedro Calmon, que era da área marítima, e praticava uma arbitragem um pouco distinta dessa tradicional. Então eu procurei ali, com um e outro, entender, e a única pessoa que estava fazendo uma arbitragem era o Carlos Borromeu, advogado da Braspetro. Eu me lembro que eu cruzei com o Borromeu, eu ainda não o conhecia, num congresso da IBA em Buenos Aires, acho que em 1988. Depois disso, eu resolvi escrever um paper de 10 páginas sobre arbitragem.
Eu ia muito aos sebos comprar livros, e não é que eu entro em um deles um dia e me deparo com 10 a 12 livros sobre arbitragem, de um advogado falecido?! Encontrei um livro raro do Alvaro Pimentel, escrito na década de 40 ou 50, batalhando pela eficácia da cláusula compromissória sem a necessidade de se firmar o malfadado compromisso. Eu vi aqueles livros todos e achei inacreditável. Maravilhosa coincidência. E até hoje sou curioso por saber quem era aquele advogado visionário – ou maluco, para muitos – que havia falecido, suponho, e deixado tantos livros nacionais e internacionais importantíssimos sobre arbitragem. Eu comprei todos os livros e comecei a estudar. Daí vi uma nota no jornal da Associação dos Advogados de São Paulo informando sobre um prêmio Tulio Ascarelli para monografias voltadas para o direito comercial com até 50 páginas. Adaptei o texto que já estava escrevendo, enviei-o, ganhei o prêmio, e foi assim que minha história começou. Eu publiquei essa monografia, e, com base nela, Petrônio Muniz, que não conhecia, me liga para contar que estava com um projeto para criar um sistema de arbitragem no Brasil, tinha uma reunião agendada, projeto esse que contava com o apoio de empresários e do Senador Marco Maciel.
JPM: Como foi esse contato com o Petrônio? Como ele conseguiu arregimentar os mosqueteiros da arbitragem?
PBM: A arbitragem inexistiria no Brasil se não fosse o trabalho do Petrônio Muniz aliado ao esforço do Senador Marco Maciel.
O Petrônio Muniz disse que havia entrado em contato comigo em razão do tal livro que tinha ganhado o prêmio Tulio Ascarelli e que era o livro de cabeceira dele. Naquela época, início da década de 90, não havia nem internet. Ele liga lá para casa um dia desses e se identifica, explica que quer fazer uma reunião em São Paulo, convidou-me e eu fui. Nós éramos uns 15 advogados, eu conhecia de vista talvez um ou outro, mas não a Selma nem o Carmona. Lá ele trouxe a carta do Marco Maciel apoiando o projeto. Eles tinham um projeto viável, factível e sério, e o Petrônio queria montar uma comissão. No final da reunião ele perguntou quem estaria disposto a participar, aí nós (Selma Lemes, Carlos Alberto Carmona e eu) levantamos as mãos.
Então nós começamos a trabalhar no anteprojeto. Eu me comunicava com a Selma e o Carmona por fax, além de me reunir com eles. Era um tal de fax para cá, fax para lá, separa material. Bons tempos.
Selma fez uma planilha comparando a Lei Modelo da UNCITRAL e diversas leis nacionais de arbitragem. Ela comparava artigo por artigo, nós víamos muito a lei francesa e a lei espanhola, e daí íamos mapeando e caminhando para uma solução própria.
A cada dois meses, aproximadamente, tínhamos uma reunião plenária na Associação Comercial de São Paulo em que participavam outras pessoas, como o José Emílio Nunes Pinto, o Carlos Nehring, que já era da CCI, o Carlos Henrique Fróes, o Luiz Olavo, o José Carlos de Magalhães, até a Ada Pellegrini chegou a ir. Eram reuniões plenárias em que outras pessoas iam para analisar o que nós tínhamos feito.
Isso começou lá para outubro de 1991. Em abril ou maio de 1992, apresentamos formalmente o projeto, em Seminário realizado em Curitiba. Lá estava o senador Marco Maciel, junto com outros senadores e professores. De lá o projeto foi encaminhado pelas mãos do Sen. Marco Maciel ao Senado Federal. Ele tramitou primeiro no Senado Federal, passou rápido, lá ficou uns poucos meses, fizeram uma mera sugestão de redação de um único dispositivo inserto na parte final, que até ficou mais técnica – acho que era o último artigo -, e dali foi para a Câmara dos Deputados.
Octávio Fragata (“OF”): Dentro dessa comissão e do Congresso, quais foram os temas que talvez tenham despertado maior tipo de debate?
PBM: Tinha o tema de consumidor, a inserção da cláusula compromissória nos contratos de adesão e a revogação de previsão similar contida no Código do Consumidor. Eu fiz questão de revogar o artigo do Código do Consumidor e colocá-lo na Lei de Arbitragem, com uma redação mais contemporânea e mais precisa, que se referia a contratos de adesão. Só que a revogação daquele dispositivo do Código do Consumidor gerou uma disputa muito grande, e acabou que a Lei de Arbitragem não revogou a tal previsão contida no CDC e deixou o artigo sobre contrato de adesão, o que gerou toda a dúvida que hoje já está mais pacificada.
Veja que o objetivo era ter um projeto suprapartidário, porque nós sabíamos que tramitar no Congresso Nacional uma lei dessa magnitude poderia gerar uma série de discussões e percalços. Queríamos que o projeto tramitasse da forma mais tranquila possível. Inclusive pensamos em acabar com a figura do compromisso, mas preferimos mantê-la porque na época o pequeno e raro contato que alguns poucos operadores do Direito tinham com a arbitragem fundava-se exatamente na figura do compromisso. Na época, era o instrumento que viabilizava a instituição da arbitragem, então preservamos o compromisso.
Numa das reuniões plenárias, o professor Magano, de Direito do Trabalho, fez uma proposta de inserção de um parágrafo e algumas alíneas para viabilizar a arbitragem também no âmbito trabalhista. A proposta era interessante, mas entendemos que o caput do artigo primeiro do anteprojeto já autorizava, e, se nós inseríssemos qualquer coisa relacionada ao Direito do Trabalho, corria-se o enorme risco de o projeto não passar. Então nós preferimos não inserir tal proposta no anteprojeto, propositalmente, pois, como disse, queríamos um projeto suprapartidário.
A nossa primeira visão era acabar com os então obstáculos para o desenvolvimento do instituto no Brasil. Por exemplo, blindamos a eficácia da cláusula compromissória. Aquela dificuldade de citar pessoa no exterior por rogatória, decidimos acabar com isso. A dupla homologação foi outro ponto atacado. Mas, de resto, tentamos caminhar com bastante conservadorismo, dado o desconhecimento, o esperado misoneísmo e, por certo, a reação que a arbitragem sofreria. Tanto é que passados não sei quantos anos, eu hoje mexeria em alguns dispositivos da lei, e outros incluiria, com bastante tranquilidade.
JPM: Vocês discutiram a questão de não ter ordem pública como causa de anulatória? A ausência foi proposital?
PBM: Foi, nós pensamos nisso, e eu já escrevi sobre esse tema, entendo que sim, em arbitragens domésticas, para violações de ordem pública relevantes. Não se aplica a hipóteses banais, como temos visto em várias objeções à homologação de sentença arbitral estrangeira, fundadas em argumentos fúteis e frágeis. A aparente lacuna da lei foi uma forma de evitar que se inviabilizasse a arbitragem. A preocupação era grande de como isso seria interpretado pelos tribunais, então houve um grande conservadorismo. O projeto de arbitragem, e mesmo após promulgada a lei, a arbitragem foi introduzida e mantida em razão do árduo trabalho do Petrônio Muniz e do já vice-presidente da República Marco Maciel, de explicar aos deputados e senadores determinadas situações, porque mesmo depois de promulgada a Lei de Arbitragem, ainda se tentou no Congresso, quando da promulgação do Código Civil, inserir-se um dispositivo que acabava com avanços da Lei de Arbitragem.
JPM: Mas por que essa resistência? Você disse que no congresso passou de uma maneira suave, salvo a questão do consumidor.
PBM: Quiseram proteger o consumidor, só que eles não entenderam o dispositivo. O artigo já resguardava o consumidor, porque ele tinha a opção, ele podia assinar o contrato que fosse com a cláusula de arbitragem porque lá na frente, se surgisse o conflito, ele poderia dizer “não, eu quero ir para o Poder Judiciário”.
O projeto deu entrada em 1992. A Lei foi promulgada em setembro de 1996. Passou-se algum tempo, devido à mudança de legislatura, eleições, CPI dos anões, e o impeachment do presidente Collor, tudo isso que atrapalhou a tramitação do projeto.
Só que chegou no final, quando estava na última comissão, de Constituição e Justiça, o relator, Dep. Régis de Oliveira, professor de direito constitucional, recebeu 12 emendas vindas de dois deputados, um do Partido dos Trabalhadores e outro do PCdoB, que punham por terra o projeto de Lei de Arbitragem. Ali foi um momento bastante sensível, porque não se sabia como ia terminar. Dentre as emendas estava a retirada do artigo que revogava o dispositivo do Código de Defesa do Consumidor, e essa foi a que restou aprovada. Ele negociou, as outras 11 emendas foram afastadas e com isso o projeto passou. A votação foi por voto de lideranças.
OF: Havia uma preocupação da comunidade arbitral com o aspecto cultural, em quebrar resistências dos advogados e do Poder Judiciário?
PBM: Nós sabíamos que enfrentaríamos algumas resistências, mas não tínhamos a noção do todo. Quando a Lei saiu, já pudemos verificar uma primeira reação. Foi quando o próprio Supremo Tribunal Federal, que à época tinha competência para analisar homologação de sentença arbitral estrangeira, recebe um pedido desses e um dos ministros sustenta que deveria ser discutido, já naquele caso, se a lei seria constitucional ou não. E a lei estava no período de vacatio legis.
Eu e Selma preparamos memoriais, separamos muita doutrina e jurisprudência estrangeira, e fomos de porta em porta, em cada um dos ministros. O primeiro ministro que julgou foi uma surpresa para todos nós, pois achávamos, e a comunidade jurídica também, que ele fosse votar pela constitucionalidade da lei, mas o entendimento dele foi de que ela feria o direito de ação. Eu ouvi falar que havia uma associação de juízes que era contrária à edição da lei, então tinha um movimento muito forte à época.
O segundo ministro a julgar era o ministro Nelson Jobim. Quando ele recebeu os autos, estivemos com ele e lhe entregamos o material. Ele havia pedido vistas. Com o passar do tempo, o Supremo foi se renovando, nós tivemos a entrada da Ministra Ellen Gracie, o próprio Ministro Gilmar Mendes. Estive no Rio de Janeiro com o Ministro Ilmar Galvão, que estava de férias, e ele me disse “Pedro, eu estou lendo o seu livro e outros artigos e doutrinas, estou estudando mais em detalhes a arbitragem para poder melhor avaliar a questão da constitucionalidade; e estou achando muito interessante.”. Os próprios ministros buscaram conhecimento maior sobre o instituto, porque era antes um animal jurídico sem utilidade e, consequentemente, um grande desconhecido no Brasil.
O Supremo ter abordado na largada a (in)constitucionalidade da lei acabou sendo ótimo, porque a matéria já foi direto para a instância máxima. A lei não ficou à mercê daqueles incidentes de inconstitucionalidade difuso, em que um juiz em um estado recebe e diz que é inconstitucional, o outro diz que é constitucional, até resolver iria demorar. A decisão favorável do STF arrefeceu um pouco os ânimos relutantes. Os ministros do Superior Tribunal de Justiça eram mais contemporâneos e adeptos à arbitragem, mais abertos a assimilar o instituto. A Min. Nancy Andrighi foi muito importante, assim como outros ministros.
Isso tudo foi conversado, tinham palestras, nas conversas que nós tínhamos com os ministros nós os conhecíamos e expúnhamos. O apoio veio vindo aos poucos e hoje estamos vendo o próprio Poder Judiciário, eles são adeptos não só da arbitragem, mas também da mediação. Eles querem outros meios de resolução de conflitos.
JPM: Nesse ínterim entre edição da lei e julgamento do STF, chegou a ter arbitragem? Como era o movimento? As empresas colocavam cláusula compromissória?
PBM: Já tinha arbitragem. Eu mesmo, enquanto diretor jurídico de uma grande empresa, cheguei a advogar em arbitragem ainda com a constitucionalidade pendente. É óbvio que havia uma insegurança, nem todo mundo inseria cláusula compromissória nos contratos.
Organizávamos conferências, com a constitucionalidade sub judice, e iam muitas pessoas. Eram livros saindo, artigos sendo publicados, seminários, reuniões para tratar do tema. Eu me lembro que fiz um seminário em 2003 com a Min. Nancy, que sempre foi muito adepta da arbitragem e da mediação. E trazíamos juristas estrangeiros para avançarmos nos debates e aprofundarmos a temática.
Com isso, foi-se difundindo o instituto, e o conteúdo da regra legal, aos poucos, foi assimilado.
Antes de o Min. Jobim votar a favor da constitucionalidade, houve um novo pedido de homologação de sentença arbitral estrangeira que caiu nas mãos de outro Ministro, que aproveitou para antecipar o seu voto pela constitucionalidade da Lei. Ali eu vi que os Ministros tinham percebido a importância do instituto.
JPM: Quais eram os temas discutidos naquele primeiro momento, além da constitucionalidade?
PBM: Nesse momento, estamos ainda no início, tinha a questão da eficácia da cláusula, a aplicação do princípio kompetenz-kompetenz e, principalmente, a dúvida de como era a medida cautelar, se o árbitro detinha poder cautelar ou não, como seria antes de instituir a arbitragem e constituir o tribunal.
JPM: Na questão da cautelar, a redação original da lei é um pouco ampla. Isso foi proposital?
PBM: Foi um pouco proposital. Tinham coisas que, às vezes, a gente debatia, mas achava melhor deixar assim, para deixar a doutrina fixar parâmetros, estabelecer caminhos e a jurisprudência consolidá-los.
JPM: Depois da lei, como foi esse desenvolvimento da arbitragem, nesses primeiros anos depois da constitucionalidade da lei?
PBM: Aí foi um efeito cascata, muito interessante. E coincidiu com a Convenção de Nova Iorque. O Brasil, que sempre foi um país renitente a aprovar tratados, veio a ratificar a Convenção de Nova Iorque. Eu me lembro do Carlos Henrique Fróes comentar comigo que já havia trabalhado muito junto ao Ministério da Justiça e ao Ministério das Relações Exteriores nesse sentido, e veio a ratificação em seguida.
O resultado foi esse crescimento exponencial. Quando começaram os processos de arbitragem, nós fomos criando, introduzindo a chamada ordem processual e outros mecanismos. Era curioso, as partes e patronos chegavam para assinar o termo de arbitragem e o advogado vinha com o Código de Processo Civil na mão. Com um advogado amigo, eu tirei o Código de Processo Civil da sua mão, saí da sala, botei o código numa outra sala bem longe, voltei com um regulamento da câmara e falei “toma, isso aqui é o seu novo Código de Processo Civil”. Ele ficou com o olho arregalado, desconcertado, mas foi uma forma divertida e didática de dizer que o CPC tem aplicação pontual, pelos princípios, mas não é ele que vai regular o procedimento.
OF: Como você viu o ajuste da advocacia ao mundo da arbitragem? E qual o papel dos escritórios estrangeiros?
JPM: E a resistência, esse embate entre os conceitos de flexibilidade, e os advogados brasileiros em princípio resistentes a não aplicar o CPC.
PBM: Foi interessante porque eu senti muita resistência de advogados. Mais até do que de determinada parcela dos magistrados.
Eu me lembro muito claramente, e isso é emblemático, que eu estava caminhando no Centro do Rio de Janeiro e cruzei com um advogado amigo meu que perguntou “Pedro, conta aí pra mim esse negócio de arbitragem, tá todo mundo falando, como é que funciona.”. E aí eu expliquei e ele me perguntou “E quando vem a sentença, o que acontece?”. Eu respondi “a parte perdedora cumpre.”. E ele “Não tem recurso?”, e eu “Não, não tem recurso”. Então ele disse “Ah, então eu não quero saber disso não”. Ele virou as costas e me deixou plantado sozinho no meio da rua; eu comecei a rir.
Os advogados brasileiros são muito adaptáveis. Temos uma comunidade de advogados de grande qualidade, e eles foram percebendo que começavam a chegar os contratos com as cláusulas de arbitragem. Quando eu ainda era diretor jurídico, estava com um dos advogados externos, e ele explicando como seria a controvérsia oriunda do contrato firmado pela empresa que eu trabalhava, como ele via o caso, os riscos, e ele falou que a resolução seria na Justiça, no foro tal, e quando abrimos o contrato, havia cláusula compromissória. Quer dizer, o advogado estava tão no automático que ele supôs que era Justiça comum, não percebeu que era cláusula compromissória. Essa era a visão dos advogados de contencioso cível.
Quando eles passaram a receber os contratos com a cláusula compromissória, perceberam logo que precisavam entender essa novidade. Mas, nesse primeiro momento, ocorreu apenas com os escritórios que tinham as controvérsias mais complexas e sofisticadas. Aí você começa a perceber o crescimento do número de participantes nas conferências, mas a capacidade de absorção foi muito grande, a qualidade dos advogados demonstra isso. No início, ainda se fazia arbitragem com um suporte de advogados estrangeiros, mas hoje você percebe que os advogados brasileiros aperfeiçoaram-se muito rapidamente, captaram as questões e assimilaram muito bem o procedimento.
Eu me lembro que, uma vez, a questão era que prova produzir e eu estava no painel e falei que era melhor deixar a prova pericial para depois e fazer primeiro a apresentação oral do caso. Um dos árbitros disse que não, que primeiro era a prova pericial, pela regra do Código de Processo Civil. E eu disse que não, que não tínhamos regra de processo e podíamos escolher o momento de produção da prova e que a eficiência indicava que não era o momento para a prova pericial. Isso tudo ainda estava arraigado, mas foi um momento de educação de todos nós, não só os advogados, mas inclusive os que atuavam como árbitros. A qualidade dos advogados brasileiros é fenomenal e aprenderam logo.
O único problema que eu vejo hoje são os advogados que amam o contencioso e odeiam a arbitragem. Nada contra o Poder Judiciário, ele não é o problema, até porque nós advogados também contribuímos para as mazelas do processo judicial. Esses advogados que não gostam da arbitragem, que não venham. Porque se vierem com esse ranço de que o procedimento não pode ser assim e que o Poder Judiciário é melhor, então fiquem no contencioso judicial. Nada contra. Só que dessa forma o procedimento arbitral vira um mar de incidentes totalmente desnecessários.
Agora há aqueles, que são a grande maioria, os quais não conhecem a arbitragem, gostam do contencioso judicial, mas vêm abertos a aprender e entender. Com esses, o procedimento flui mais facilmente. E esses, após o período de assimilação, tornam-se peças importantes no desenvolvimento do instituto.
OF: O que você acha que talvez tenha sido uma característica ou um aspecto da arbitragem que tenha provocado essa ampla recepção pelo mercado?
PBM: A celeridade e a maior disponibilidade dos julgadores (árbitros). Há a confidencialidade, mas eu diria que os primeiros dois elementos se destacaram, o empresariado se atraiu pela celeridade e a advocacia se atraiu pela disponibilidade.
Disponibilidade de ambos os lados. É ter um procedimento mais amplo em termos de exposição de caso. Você vai para uma arbitragem e explica oralmente o seu caso, no início da audiência ou mesmo antes, durante meia hora, 45 minutos, uma hora, você junta muitos documentos e laudos técnicos, passa 2 ou 3 dias em audiência. Sendo o caso, há reuniões para apresentar um pedido cautelar complexo, há toda uma oralidade.
E a celeridade é fundamental para o empresário. Era isso que eu percebia lá atrás, quando comecei a advogar e estava no escritório de advocacia. Eu dizia “nós precisamos de uma coisa mais célere e menos burocrática”. Aquela burocracia, não dos juízes, mas dos servidores, da estrutura judiciária.
O empresário, entre deixar de ganhar dinheiro e perder tempo, prefere deixar de ganhar dinheiro. Porque o dinheiro ele deixa de ganhar aqui, mas ganhará em outra oportunidade, logo a seguir; mas o tempo, ele não recupera mais.
Quando trabalhava em empresa, o presidente nunca me pediu uma decisão judicial, ele só me pedia para obter ou cassar liminar. Nós brigávamos pela liminar, se conseguíssemos ir até o STJ, íamos; mas era uma briga que durava meses e acabou. Ele nunca reclamou de eu não ter cassado ou de não ter obtido a liminar, porque ele dizia assim “se nós obtivermos a liminar, eu vou pra cá, mas se nós não obtivermos, eu vou pra lá; ou seja, quero um caminho para ir; eu só não posso é ficar parado sem saber para onde ir”.
JPM: Você falou antes da questão da celeridade, existe muita crítica que a arbitragem se tornou mais lenta, até pela complexidade das questões que estão sendo discutidas, que existe um modus operandi e perdeu um pouco a flexibilidade. Como você vê isso?
PBM: Algumas arbitragens têm demorado, mas se for fazer o levantamento, normalmente não é por falha do tribunal arbitral. Hoje em dia, para mim, o grande vetor que leva uma arbitragem a demorar são as perícias, pois algumas são complicadas.
Então vamos pensar em uma perícia de engenharia complexa. Só para descobrir o perito já não é, muitas vezes, tarefa fácil. Que se encontre o perito em 15 dias, 20 dias, daí mais alguns dias até uma proposta de honorários. Você submete o nome e a proposta às partes e dá 10 dias, aí já estamos com uns 40 dias. Então uma parte concorda com a proposta e a outra acha que está cara. Aí volta para o perito para ver o que ele consegue reduzir. Ele reduz e você reenvia às partes. As partes aceitam, e então se dá início, e o perito tem que marcar a reunião com os assistentes técnicos; já estamos com uns 60 dias. Ele apresenta o laudo em 90 dias, o que é um prazo bastante razoável. Já estamos com quase 5 meses. Daí o tribunal abre para as partes se manifestarem em 30 dias. Já foi para 6 meses. As partes se manifestam. Aí vamos para quesito complementar, e o perito pede mais não sei quantos dias. Com isso, na realidade, já estamos com 9 meses e vamos marcar a audiência de acordo com a disponibilidade dos árbitros, perito, assistentes técnicos e dos advogados, o que é algo bastante positivo, melhor do que ser manu militari. Então é fácil perceber que processos que tratem de controvérsias puramente de direito, você consegue resolver mais rapidamente. Agora, por outro lado, não há questão de direito que a parte não peça uma audiência. Algumas vezes o árbitro admite e outras vezes não.
JPM: Você acha que o uso da tecnologia de alguma maneira vai ajudar a arbitragem?
PBM: Nós já estamos vendo um facilitador grande, esses anexos que vem por pen drive. Já avançamos muito ao concluir assinatura de termo de arbitragem por conferência telefônica. No futuro, vamos ter a apresentação de caso e, quiçá, toda audiência por videoconferência. Isso tudo está vindo, eu não tenho dúvidas. Os processos tecnológicos virão para facilitar a nossa vida e, claro, os processos de arbitragem.
JPM: Com relação ao progresso da arbitragem hoje você acha que continuará crescendo para outras áreas ou se estabiliza? E se continuar crescendo, quais são os desafios e riscos de ir para outras áreas?
PBM: Para os valores menores, as partes terão que saber colocar na cláusula compromissória árbitro único e câmaras com regimento de custas mais propício. Mas, na verdade, eu tenho visto um aumento crescente do valor da demanda, isso é uma coisa incrível. Você vê valores enormes para arbitragens domésticas. Na verdade, o número de arbitragens, de advogados e árbitros e etc, cresceu bastante. É natural, pois o instituto permaneceu dormente por uns 150 anos e, portanto, tudo é novo e os partícipes, antes totalmente ausentes, só tendem a aumentar. A arbitragem continuará crescendo, mas obviamente chegará uma hora que o crescimento será um pouco menor em termos comparativos aos atuais. O desafio é não perder a qualidade, com a consequente possibilidade de perda do apoio do Poder Judiciário.
JPM: Como você vê esse surgimento de novos árbitros, o que deve ser feito para que essa demanda por novos árbitros seja suprida de maneira adequada? Como encontraremos os futuros grandes árbitros?
PBM: Nós encontramos dessa convivência na comunidade arbitral, nas conferências. Eu sempre gostei de prestigiar os jovens nos livros de coautoria que coordenei. O futuro da arbitragem está nas mãos deles.
O nível dos árbitros é muito bom no Brasil, e o tempo chega para todos que tiverem qualificação para tanto.
Os jovens árbitros estão chegando, e neles incluo, por óbvio, as mulheres. Hoje há essa questão de empoderamento feminino. Eu não tenho nenhum problema, só espero não haver radicalismos, pois, como se sabe, para se posicionar o pêndulo da razoabilidade no meio termo, demanda ponderação e equilíbrio. Quando era diretor jurídico, tinha 36 advogados, sendo que a vasta maioria era mulher. E o pitoresco é que não era incomum, quando abria uma nova posição, algumas das advogadas me pedirem para contratar homem. O que percebemos é que as mulheres que ficaram no segmento desde o início estão hoje atuando em arbitragens. Selma, por exemplo, atua em arbitragens desde a largada.
Agora, há que se ter uma certa preocupação com a qualidade do procedimento e da sentença que será prolatada; ou seja, com a qualidade do produto final. Eu vejo às vezes pessoas excelentes, mas que não tem pendor para ser árbitro. Escreve muito bem, tem uma bela carreira jurídica, mas na hora de decidir, às vezes não tem bom senso, ou não tem paciência, ou não tem tempo. Não é só você ser o Papa de não sei o que, o grande professor, o grande advogado, você tem que ter o pendor pra isso.
OF: O que você considera como característica essencial para uma pessoa ser um bom árbitro?
PBM: Bom, primeiro ele tem que ter conhecimento jurídico o mais amplo possível e conhecer arbitragem. Já que você está num colegiado, tem que ser uma pessoa de bom trato, bom senso, razoabilidade, e entender que uma opinião divergente não é uma agressão, não é um ataque frontal, e, sim, mero entendimento distinto, visto por ângulo do prisma. E isso é saudável para o aperfeiçoamento do julgado. O ideal é que também tenha, digamos assim, personalidade, para em determinadas situações pontuar, mostrar, tentar dissuadir ou persuadir os pares. Tudo isso sem perder “la ternura”.
Enfim, bom senso, razoabilidade, conhecimento e, em determinados momentos, saber marcar a sua posição com educação e elegância. Também tem que possuir coragem. Coragem para decidir.
E, obviamente, imparcialidade, pois não é porque te indicou que você vai julgar a favor da parte.
JPM: Como você vê esse surto de impugnação de árbitros que existe?
PBM: Uma enorme banalização que não se vê em outros países. É uma questão de cultura, e te digo, do que eu conheço, 100% das impugnações são fúteis e frágeis, feitas a título de tática de guerrilha, para amanhã tentar uma anulação. Isso faz parte um pouco da cultura latina, mais, notada e infelizmente, da cultura brasileira.
Os pedidos de esclarecimento são outra praga. Não há uma arbitragem que não se faça, ainda que seja mero recurso. É um desserviço aos embargos arbitrais. Nós temos que estabelecer um sistema de penalizacão, porque em arbitragens estrangeiras as partes brasileiras tem mais pudor para apresentar os pedidos de esclarecimento, o que não ocorre nas arbitragens domésticas.
OF: Qual o papel da cultura na arbitragem?
PBM: Os advogados que estão trabalhando em arbitragem ainda foram forjados ao combate e ao recurso. As gerações que aí estão, as primeiras, não estudaram arbitragem na faculdade. Como falava o Desembargador Cláudio Vianna de Lima, foram formados, deformados e conformados com o processo. Então querem combater, discutir. Isso é uma questão cultural.
Os jovens que aí virão – e já estão atuando – com certeza vêm com outra visão, porque eles sabem que arbitragem é uma bala de prata, atirou, acabou. Aí que entra a escolha do árbitro, que muitas vezes os advogados têm reclamado, e às vezes com razão, mas foram eles ou seus clientes que escolheram os árbitros. Ou mesmo não declinaram do nome do presidente quando tiveram acesso à lista. Às vezes falta uma autoridade de dizer para o cliente, para o advogado dizer, “olha, perdeu, não tem como”. E aí é aquele negócio de “vamos entrar com pedido de esclarecimentos, porque nós adiamos o cumprimento da sentença, deram-nos 30 dias para pagar, nós ganhamos mais 40”. É uma questão peculiar nossa, nós temos que mudar essa cultura da vantagem. Enfim, a mudança de cultura é necessária para ajustar e aperfeiçoar o sistema arbitral. Demanda tempo e paciência. E deve ser encarado como um processo constante, de crescimento e melhoramento, como tudo na vida. Aliás, nosso país necessita de urgente e rigorosa mudança cultural em várias áreas, inclusive a da ética.
JPM: Como você vê a consolidação da arbitragem nas áreas trabalhistas e de administração pública, tão discutidas no passado?
PBM: É o tempo que cada segmento demanda para assimilar o instituto da arbitragem. A arbitragem trabalhista é fundamental para o trabalhador, para resolver as disputas mais celeremente, porque a empresa tem recursos para recorrer enquanto o ex-funcionário não quer perder tempo, pois precisa da indenização.
A arbitragem foi vista pelos empresários e comerciantes lá no Código Comercial, em 1850, para questões societárias. Após, a arbitragem caiu no ostracismo notadamente pela introdução do compromisso como o único instrumento a conferir eficácia às cláusulas compromissórias, vindo a ressurgir na época dos empréstimos externos. O Brasil percebeu que a ineficácia da cláusula arbitral prevista nos contratos de empréstimo resultava no aumento das taxas de juros, dado que tornaria mais difícil a cobrança do eventual não pagamento do empréstimo pelas empresas estatais brasileiras, que seria feita por meio judicial. Logo, a ausência de arbitragem pesava no bolso das estatais. No início da década de 1980, foram elaborados três projetos de lei de arbitragem que nunca saíram da gaveta do Ministério da Justiça. Na década de 1990, antes da promulgação da Lei de Arbitragem, foi editada a Lei de Concessão de Serviço Público, que passou a considerar a arbitragem como cláusula essencial dos contratos de concessão. Nessa sequência, o governo passa a ter interesse na arbitragem por causa da privatização, para atrair os players e aumentar o valor de venda das estatais, com o incremento da competição no certame. Por outro lado, as empresas estrangeiras se associariam em consórcios, aquelas redes de contratos, e como elas iriam resolver os controvérsias que surgissem (e surgiram)? Arbitragem era a modalidade preferida, ou mesmo essencial para as grandes empresas internacionais. Então se passa a admitir arbitragem em 1996. E a arbitragem ganha corpo no século XXI, dado o sucesso alcançado. Esse foi o timing para a área trabalhista e a Administração Pública perceberem as vantagens da arbitragem. Foi o tempo necessário para abandonarem o ceticismo e a renitência e enxergarem as virtudes do instituto.
JPM: Qual conselho você daria para os jovens profissionais de arbitragem que querem se tornar grandes advogados e um dia até serem árbitros?
PBM: A recomendação é estudo, trabalho, estudo, trabalho, estudo, trabalho. Tem que conhecer arbitragem, tem que conhecer direito, participar dos eventos, das conferências, estar presente na comunidade arbitral, que é formada por um grupo agradabilíssimo, pessoal amistoso e que recepciona bem os jovens e os entrantes. E estar próximo e, obviamente, trabalhar com arbitragem, dentro do possível.
Para ser árbitro, demanda tempo. Isso é uma coisa que os jovens precisam saber. Não é de hoje, o jovem quer ficar rico, quer entrar no jogo e já bater o pênalti, e ir para a galera comemorar e buscar a admiração. Tudo de forma muito rápida, sem o tempo que a advocacia demanda. Eu aprendi isso de uma forma diferente e que norteou minha vida profissional. Quando eu disse para o meu pai que queria iria estudar Direito, e eu sou a 4ª geração de advogados pelo lado paterno, a primeira coisa que ele me disse foi “é uma profissão muito boa, abre um leque muito amplo de possibilidades, permite um belo e amplo exercício intelectual, mas, veja bem, após 10 anos de formado, se você tiver trabalhado muito e continuado a estudar bastante, talvez, repito, talvez você possa se dizer um bom advogado, porque advocacia exige experiência profissional e de vida para o advogado se tornar bom, ótimo ou excelente.”
O que isso significa é que você tem que se dedicar muito. Tem que estudar e trabalhar com afinco. Se assim for, e é no que creio, o momento chega.
Então é isso: muito estudo, muito trabalho, e participar dos eventos. Se possível, escrever artigos, o que ajuda a projetar o profissional. E aguardar, com calma, que o seu momento chegará. Quem foi ficando no circuito arbitral e acompanhando a evolução e cristalização da arbitragem, está hoje atuando no ramo, seja como árbitro, seja como advogado. Eu acho que é isso, não tem muito mistério. Muito suor, disciplina e determinação. Com isso, o sonho se realiza.