Pedro A. Batista Martins
Consulta
O escritório “X”, na pessoa de sua ilustre advogada “Z”, solicita minha análise e opinião a respeito de três questões relacionadas ao direito arbitral, postas em discussão judicial no Tribunal de Justiça do Estado “W“.
As matérias dizem respeito, (i) ao alcance e efeito do art. 8º da Lei n. 9.307/96 (“Lei”), frente à disposição constante da parte final do art. II, item 3, da Convenção de Nova Iorque (“Convenção”), (ii) a necessidade de outorga de poderes especiais para que o Outorgado possa, em nome do Outorgante, firmar cláusula compromissória e (iii) a possibilidade de livre escolha da lei de regência da controvérsia submetida à arbitragem.
Parecer
1. Alcance do Art. II, item 3, in fine da Convenção.
1.1. Toda e qualquer interpretação do dispositivo da Convenção em debate, há de passar, necessariamente, pela análise do art. 8º da Lei, vez que o art. II, itens 1 e 3, da Convenção, simplesmente condensa os dois princípios expostos na Lei, quais sejam, o da autonomia da cláusula compromissória e o da competência-competência.
A Convenção, ao determinar que o tribunal estatal, (i) de cada Estado signatário deverá reconhecer o acordo de arbitragem (item 1), e que (ii) de posse de ação oriunda de contrato em que se insere cláusula compromissória, deve encaminhar as partes à arbitragem, por certo resume os pressupostos da autonomia e da competência-competência, lançados no art. 8º da Lei.
A exceção posta na parte final do item 3 do referido art. II do ato internacional (“…a menos que constate que tal acordo é nulo e sem efeitos, inoperante ou inexeqüível“) é mera expressão de pressuposto já implícito no próprio art. 8º da Lei.
1.2. Ajustada essa questão de ordem, passo à análise dos princípios da autonomia e da competência-competência para que, ao cabo, seja enfrentada a exceção antes referida, ponto central em discussão.
Em harmonia com a boa prática de interpretação, antes de indicar a finalística dos princípios da autonomia da cláusula arbitral e da competência-competência será conveniente investigar a razão de ser desses pressupostos universais há muito arraigados no direito arbitral.
Desde logo, se esclareça que a autonomia e a competência-competência compõem o fecho jurídico de uma cadeia de efeitos que assegura plena eficácia à cláusula compromissória.
A Lei introduziu um feixe de eficácia cláusula arbitral que se inicia com o pressuposto da plena validade da cláusula (mesmo nos contratos de adesão a cláusula é valida, restando apenas suspensos seus efeitos quanto ao aderente), passa pela indeclinável produção de seus efeitos, seja para afastar a jurisdição estatal (extinção do processo sem julgamento de mérito) ou para impor a instituição da arbitragem (arts. 5º, 6º e 7º da Lei) e se complementa com as amarras da autonomia e da competência-competência que dão concretude jurídica à eficácia da cláusula arbitral.
Essa sistemática legal visou atender ao centro das preocupações do legislador e se notabiliza por dar vida jurídica à espinha dorsal do texto normativo, qual seja, a efetividade da convenção de arbitragem.
Como bem atesta o Juiz de Direito, Joel Dias Figueira Junior:
“A convenção de arbitragem, decorrente de cláusula contratual expressa e escrita, tem por finalidade gerar entre os contratantes o compromisso inarredável de submeterem à jurisdição arbitral a solução dos conflitos que porventura venham a surgir como decorrência do contrato principal entre eles firmado, de maneira a excluir terminantemente a busca da tutela pretendida a ser conferida pelo Estado-juiz.“1
No mesmo sentido, afirma o Desembargador J. E. Carreira Alvim:
“Essa disposição [Art. 8º], ao consagrar a autonomia da cláusula compromissória, relativamente ao contrato a que acede, garante ao mesmo tempo a autonomia da vontade dos compromitentes, mantendo no juízo arbitral, um litígio que, de outro modo, desaguaria nas vias judiciais.”2
A efetividade da cláusula compromissória, contudo, não seria atingida, ou, ao menos, restaria extremamente vulnerada, sem o comando contido no art. 8º da Lei.
Em outras palavras, a autonomia da cláusula e a competência-competência atuam como verdadeiras blindagens jurídicas àqueles que buscam se afastar da obrigação assumida de submeter as controvérsias ao juízo arbitral.
E foi justamente para coibir essa prática, contrária ao direito, que nasceram os princípios da autonomia e da competência-competência.
No passado, não raro, ocorriam casos em que a parte, para se afastar do compromisso assumido de resolver as disputas por arbitragem, alegava, como fundamento da própria controvérsia, a nulidade do contrato (ou mesmo do convênio de arbitragem), de modo a viciar seu conteúdo e, dessa forma, obstruir os efeitos da cláusula compromissória.
Sua gênese nasce da criatividade dos advogados estrangeiros, no sentido de legalizar o incumprimento contratual.
Veja a doutrina comparada:
“Antes do deu reconhecimento [princípio da autonomia] na lei de arbitragem, uma parte com intenção em procrastinar o dia do ajuste de contas se oporia à arbitragem alegando que o contrato principal era nulo – usualmente, por razões de ordem pública. Devido ao fato de que a convenção de arbitragem estava incluída no contrato principal, com a alegação de nulidade contratual geral, sustentava-se, prejudicada a cláusula de arbitragem. Em suma, as partes não estavam vinculadas à arbitragem pois o acordo era suspeito – era, supostamente, um contrato inválido. A mera alegação de invalidade do contrato principal dava às cortes judiciais jurisdição para decidir se um contrato de arbitragem válido existia. A intervenção judicial atrasava a arbitragem e impedia o acordado recurso à arbitragem. Tal prática, obviamente, produzia estratégias dilatatórias. A teoria da autonomia foi introduzida para opor essas estratégias dilatatórias.”3
Com a alegação de nulidade, invalidava-se o negócio jurídico como um todo, tornando sem efeito a cláusula compromissória, visto ser esta parte integrante do instrumento impugnado, ou seja, a simples alegação de nulidade, bastava para se afastar a imposição da arbitragem.
Diante desse artifício, surge o princípio da autonomia determinado a pôr fim a essa inadequada prática.
Nossa Lei, claramente estabelece que a “cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória”.
Com essa regra imunizou-se a cláusula arbitral dos maléficos efeitos das alegações de nulidade do contrato, já que passou a ser conceituada como um pacto adjeto, um negócio jurídico próprio que, por isso, não se macula com eventuais vícios do contrato em que se insere.
Com efeito, a instituição da arbitragem não resta prejudicada pela simples alegação de nulidades pela parte que pretende “legalmente” descumprir o acordo.
É princípio bastante difundido no direito comparado. Segundo doutrina Phillippe Fouchard,
“O princípio da autonomia tem sido, entretanto, reconhecido expressamente em leis ou jurisprudência em grande número de países. (…) Uma variedade de países com uma tradição de common law, implementaram legislações baseadas na Lei Modelo. Como resultado, o reconhecimento do princípio da autonomia tem se espalhado.“4
1.3. Mas, a autonomia da cláusula compromissória não era suficiente para dar curso à via arbitral. Era preciso imprimir força à jurisdição do árbitro, quando confrontada com a justiça comum.
Para esse propósito, foi consagrado o princípio da competência-competência, pelo qual, na hipótese de a controvérsia se referir a vícios que afetem o contrato ou a cláusula compromissória, será do árbitro a competência para dirimir sobre sua competência.
Nos termos da Lei, “caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade, e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória” (caput, art. 8º).
Em outras palavras, é do árbitro, e não do juiz togado, a competência para avaliar se tem ou não competência para julgar a questão. Em suma, o arbitro é o primeiro juiz a enfrentar o problema da competência (rectius: jurisdição). O árbitro é o primeiro juiz a julgar a preliminar de inexistência de jurisdição.
Tanto o princípio da autonomia quanto o da competência-competência têm por fim assegurar a produção de plenos efeitos à cláusula compromissória, espinha dorsal do sistema em que se funda a arbitragem no Brasil.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça confirma tal assertiva, nos termos do voto da Ministra Nancy Andrighi:
“No tocante aos pretensos temas passíveis de solução pelo juízo arbitral, dispõe o artigo 4º da Lei 9.307/96, que através da cláusula compromissória, as partes submetem à arbitragem os litígios que possam vir a surgir relativamente ao contrato assinado por elas. Se o legislador não fez detida especificação dos litígios, submetidos à arbitragem, não cabe ao intérprete da lei fazê-lo. Dessa forma, não há de se questionar sobre a submissão do conflito suscitado pelos Recorridos ao Juízo arbitral, controvérsia que somente esse juízo poderá dirimir.“5(grifei)
Seja, pois, qual for a matéria controversa, inclusive a inexistência, a invalidade e a ineficácia do contrato ou da cláusula compromissória, é do árbitro a primeira oportunidade de se pronunciar sobre o tema. É do árbitro o benefício da dúvida.
À vista das razões éticas e morais que motivaram o surgimento da autonomia e da competência-competência, não resta dúvida de que a finalidade do art. 8º da Lei, visa maximizar a eficácia da cláusula compromissória, a ponto de impor a submissão das partes à arbitragem, mesmo quando em jogo a nulidade do contrato ou da própria cláusula.6
Vale salientar decisão do Tribunal de Alçada do Estado de São Paulo que deu curso à instituição da arbitragem por força de cláusula inserta em contrato de representação comercial:
“1. ARBITRAGEM. CONSTITUCIONALIDADE. CONTRATO DE AGÊNCIA CONTENDO CLÁUSULA QUE IMPÕE A RESOLUÇÃO DOS CONFLITOS AO JUÍZO ARBITRAL, SEGUNDO O DIREITO FRANCÊS – INTELIGÊNCIA DO ART. 2, DA LEI 9.307/96 – INCIDÊNCIA DO PRINCÍPIO DA AUTONOMIA DA VONTADE. 2…”
No bojo do voto do juiz relator, extrai-se os seguintes trechos:
“Pela mesma razão, não se vislumbra vício em haver previsão de que seja com base no direito francês que os árbitros venham a resolver a pendenga. Embora o contrato de agência ou representação comercial, seja regulado por lei especial, isso não significa que não pudesse a relação aqui questionada ser alvo de disposição pelas partes contratantes, uma vez que o direito ali agitado é disponível para ambas as partes, e, portanto, não vem revestido da característica da irrenunciabilidade. … Dessa sorte, sobre ele [contrato de agência] incide naturalmente o princípio da autonomia da vontade , podendo, assim, as partes transigir livremente, inclusive, no que concerne à forma de solução de suas diferenças. Vai então que há de prevalecer a regra contratual invocada pela primeira agravante”.
1.4. A princípio, poder-se-ia extrair certa intolerância ou arrogância desses princípios legais, mas seu sentido jurídico visa justamente atender ao que foi contratado: a submissão da questão à arbitragem, seja de que natureza for a controvérsia suscitada.
Afinal, com o pacto de arbitragem as partes submetem ao árbitro toda e qualquer controvérsia oriunda ou relacionada ao contrato, inclusive aquelas atinentes à sua validade ou a de seus dispositivos, e da cláusula compromissória.7
Nesse sentido, não há como negar que mesmo as questões de nulidade que envolvem a cláusula ou o contrato (inexistência, invalidade ou ineficácia), devem, ao menos em um primeiro momento, ser analisadas pelo árbitro.
Repito: ao menos preliminarmente à intervenção judicial.
Isso porque, com a cláusula de arbitragem a jurisdição estatal somente adquire expressão se o árbitro acolher a nulidade sustentada ou, caso contrário, em sede de ação de nulidade.
É o que afirma o art. 20, parágrafos 1º e 2º, da Lei, verbis:
“§1º. …reconhecida a incompetência do árbitro ou do tribunal, bem como a nulidade, invalidade ou ineficácia da convenção de arbitragem, serão as partes remetidas ao órgão do Poder Judiciário competente para julgar a causa.”
§2º. [n]ão sendo acolhida a argüição, terá normal prosseguimento a arbitragem, sem prejuízo de vir a ser examinada a decisão pelo órgão do Poder Judiciário competente, quando da eventual propositura da demanda de que trata o art. 33 desta Lei”.
Com esse dispositivo constata-se que (i) os princípios da autonomia e da competência-competência não se afiguram como radicalização do legislador, (ii) não se retira da parte que argüi a nulidade o acesso à justiça comum e (iii) a sistemática da Lei confere mera prevalência temporal da jurisdição arbitral sobre a estatal, cuja intervenção se faz em caráter subsidiário.
A prestigiada doutrina internacional confirma essa posição:
“Nesse sentido, o princípio da competência-competência é uma regra de prioridade cronológica. Levando-se em consideração ambas suas facetas (efeito positivo e negativo), o princípio da competência-competência pode ser definido como a regra através da qual os árbitros devem ter a primeira oportunidade de deliberar sobre objeções relativas à sua jurisdição, sujeitas à posterior revisão pelos tribunais.“8
1.5. Não subsistem, assim, argumentos ad terrorem que sustentam que a aplicação dos referidos preceitos de direito (isto é autonomia e competência-competência) transformariam a arbitragem em um instituto de caráter obrigatório.
Arbitragem obrigatória e autonomia e competência-competência são institutos típicos e que divergem radicalmente, seja em suas naturezas, seja em seus efeitos.
A eficácia dos princípios contidos no art. 8º da Lei, como visto, em nada afeta o acesso à justiça, muito menos viola o art. 5º, XXXV, da nossa Constituição.
Nada há de compulsório ou obrigatório no art. 8º da Lei ou no art. II, itens 1 e 2 da Convenção, a ponto de afastar por completo o acesso ao Judiciário.
O que se impõe é o cumprimento da cláusula compromissória, ao menos em um primeiro momento, quando se dá a análise das nulidades e da jurisdição do árbitro, restando incólume a apuração da questão pelo Poder Judiciário, seja pela decisão terminativa do árbitro em função da inexistência de jurisdição, seja pela ação de nulidade, prevista no art. 33 da Lei.
A mesma proteção existe quando se trata de arbitragem com sede no exterior, como é o caso da questão objeto do presente estudo.
Normalmente, os casos de afronta ao direito, os relevantes vícios de nulidade, são passíveis de revisão pela justiça estatal do local da sede da arbitragem, após a prolação da decisão do árbitro.
Vê-se, de todo o exposto, que a atuação do Poder Judiciário não resta afastada, mas, apenas, se opera, em sede de arbitragem, em momento ulterior à atividade do árbitro.
Mesmo porque, a parte que antes reclama a nulidade poderá, ao fim e ao cabo, restar vencedora no processo de arbitragem.
Daí porque, pactuada a arbitragem, quer a Lei e a Convenção que seja instalado o juízo arbitral. Essa é a finalística das normas que compõem o sistema da legislação de arbitragem.
Ressalte-se o pleno suporte dessa premissa pelas Cortes Européias, registrados por Julian D. M. Lew,Loukas A. Mistelis e Stefan M. Kroll:
“Entretanto, a visão que prevalece na prática arbitral internacional, particularmente na Europa, apoia a arbitrabilidade dos litígios envolvendo alegações de corrupção e suborno. Levando em consideração a doutrina da autonomia, os tribunais arbitrais e cortes de justiça concluíram que a cláusula compromissória não fica prejudicada por alegações de corrupção que somente afetam o contrato principal. Apesar das implicações relativas à ordem pública internacional, é aceito que ao tribunal é permitido decidir se houve ou não suborno ou corrupção envolvida. Cortes de Justiça nacionais tem controle sobre contrato envolvendo corrupção e suborno na fase de execução uma vez que sentenças arbitrais que mantém tais contratos seriam contrários à ordem pública.”9
No entender de Mark Cato,
“A questão perante a corte tratava-se de definir se a cláusula compromissória era um pacto autônomo de modo a assegurar aos árbitros jurisdição para determinar as questões concernentes à validade inicial do contrato. Foi decidido que era e, portanto, o árbitro tinha jurisdição para decidir sobre a questão da validade inicial do contrato. A ilegalidade inicial do contrato estava no âmbito da arbitragem desde que a cláusula compromissória em si não fosse diretamente afetada pela alegação de legalidade.”10
De fato, as causas que levaram ao desenvolvimento e a cristalização dos princípios da autonomia e da competência-competência não eram das mais nobres. Buscavam, na verdade, descumprir o acordo pela mera alegação de vícios de nulidade.
1.6. Vistos o porquê e o para quê do conteúdo do art. 8º da Lei e do art. II, itens 1 e 3, da Convenção, torna-se evidente que a exceção contida na parte final do referido dispositivo da Convenção deve ser enfrentado cum grano salis.
Trata-se, a toda evidência, de uma regra de exceção que opera efeitos numa estrita esfera jurídica. Ademais, exceção que é, há de ser aplicada com rigor.
Relembre-se: a finalidade das normas de direito arbitral aqui tratadas estabelecem verdadeiras blindagens jurídicas voltadas à plena produção dos efeitos da cláusula compromissória além de uma intervenção diminuta e a posteriori do Poder Judiciário.
Tais regras legais são da essência, e fundamentais ao instituto da arbitragem, e se traduzem na espinha dorsal de todo o ordenamento.
Não será, pois, qualquer sentir de nulidade que imporá a derrocada da relevante normatividade que cerca e norteia o instituto da arbitragem no país e no direito comparado.
Não será mero indício, ou mesmo presunção, de nulidade capaz de afastar os efeitos da cláusula compromissória.
Ao contrário, há quem entenda, e se trata de doutrina reconhecida e abalizada11, que nada, nenhum vício, seria suficiente a desconsiderar o pacto de arbitragem e, notadamente, os princípios da autonomia e da competência-competência.
Se assim não penso é porque extraio da exceção contemplada no texto da Convenção alguma finalidade. Conquanto bastante restrito o seu alcance, me parece que se alinha com os ditames que caracterizam o direito arbitral.
Penso que a exceção se presta para os casos em que há manifesto vício de nulidade da cláusula de arbitragem. Manifesto no sentido estrito e inflamado da dicção. Um vício, efetivamente, extravagante. Um verdadeiro absurdo jurídico. Algo que, avistado, não deixa dúvidas quanto à nulidade da cláusula. Vícios aferíveis prima facie pelo juízo togado. Algo, enfim, teratológico.
A exemplo, o contrato que tem por objeto o jogo ou a prostituição, e o acordo firmado por criança, facilmente comprovável pela apresentação de certidão de nascimento.
Com efeito, a existência de vícios dessa natureza e extravagância, independem de maiores sustentações legais e de comprovações. Uma simples mirada nos fundamentos de direito e na prova colacionada pela parte que sustenta a nulidade seria, assim, suficiente, per se, a confirmar a existência efetiva do vício.
O raro autor nacional que se dedicou ao tema confirma esse entendimento:
“Conclui-se, portanto, que, de acordo com o direito brasileiro, as autoridades judiciárias podem tão-somente apreciar a validade, existência, aplicabilidade ou efetividade da convenção de arbitragem em momento posterior aos árbitros. Nem mesmo o exame prima facie seria pois passível de ser realizado no Brasil pelo Judiciário a não ser no caso de nulidade ostensiva ou manifesta, devendo ser aguardada a decisão prévia dos árbitros.”12
Por outro lado, saliente-se que o sentir do vício de nulidade que afete a existência, a eficácia ou a validade do ato, não deverá ser aferido no diapasão do sentimento expresso pela parte que se sente lesada, naturalmente exacerbado pela crise que o conflito normalmente gera.
A ótica daquele que se diz prejudicado, salvo raríssimas situações, por certo, não é o melhor prisma a se encarar a problemática.
De outro modo, a pretensão da parte restaria por fazer tábula rasa dos ditames e princípios que devem imperar na arbitragem.
Em outros termos, se não houver rigor na aplicação do art. 8º da Lei a simples argüição de qualquer vício de nulidade, seja de inexistência, invalidade ou ineficácia do pacto compromissório, fará com que este se torne letra morta, retroagindo a arbitragem ao cenário existente nos idos de 1800.
1.7. No caso concreto, alega a parte autora da ação judicial, sua incapacidade para se submeter à arbitragem, por força da necessidade de poderes específicos para se firmar compromisso e da invalidade da cláusula de arbitragem, por abuso de direito e violação da boa-fé objetiva e da ordem pública brasileira, dada a escolha de mais de uma lei (norte-americana e brasileira), e a limitação imposta pela nomeação de árbitros não brasileiros.
Não há dúvida de que tais questões devam estar angustiando a autora. Entretanto, são matérias que deverão merecer extensa análise e detido debate pelas partes, sem embargo das eventuais provas que poderão ser colacionadas.
Essas circunstâncias, por si só, já são suficientes a reverter a discussão à jurisdição arbitral, haja vista que as questões de nulidade suscitadas merecem profundo exame, não obstante o questionamento atingir a existência da cláusula compromissória.
Como expresso no art. 8º da Lei, o pacto é autônomo e o árbitro é o primeiro juiz de sua jurisdição.
Ademais, não creio que as nulidades argüidas pela autora do processo judicial, encontrem-se sob a égide da exceção lançada no mencionado dispositivo da Convenção.
Não são da espécie que comportem confirmação do vício através de uma análise preliminar, prima facie.
Ao contrário, tratam-se, com certeza, de questões que deverão ser enfrentadas em sede de arbitragem, sujeitas que estão a um efetivo contraditório e a uma exaustiva análise prévia restando, pois, fora do alcance da exceção contida na parte final do item 3, art. II, da Convenção.
Não são casos eloqüentes de vícios de nulidade capazes de afastar os efeitos do art. 8º da Lei ou do art. II, item 1, da Convenção (“cada Estado signatário deverá reconhecer o acordo escrito pelo qual as partes se comprometem a submeter à arbitragem todas as divergências que tenham surgido, ou que possam vir a surgir…”) e, assim, inserem-se na esfera jurídica que encerra a competência do árbitro para apreciar da sua jurisdição.
Nesse sentido, não resta outra opção que não a prolação de sentença terminativa, pondo fim ao processo judicial, sem julgamento de mérito, nos termos do que dispõe o art. 267, VII, do Código de Processo Civil.
1.8. Conquanto desnecessária minha opinião quanto à incapacidade da parte autora para firmar cláusula de arbitragem e à invalidade da escolha das leis aplicáveis ao mérito das controvérsias, ao menos nesse momento de exame prima facie pela justiça carioca, dada a demonstração acima da inarredável aplicação da regra processual que determina a extinção do processo, sem julgamento de mérito, pela simples existência de convenção de arbitragem (art. 267, VII, Código de Processo Civil), atendo ao solicitado e, assim, passo ao exame dessas duas matérias de direito.
2. Incapacidade por Ausência de Poderes Expressos na Procuração.
2.1. Não me parece procedente a doutrina que pretende consagrar a necessidade de autorização expressa do outorgante como condição de eficácia do negócio jurídico encetado na cláusula compromissória.
Tal corrente sustenta essa imperatividade no contexto do art. 661, parágrafo 2º do Código Civil (“O poder de transigir não importa o de firmar compromisso.“), aliado a extrema relevância dos efeitos dessa previsão contratual, capazes que são de afastar a jurisdição togada.
Creio que esse ponto-de-vista, conquanto capitaneado por respeitado jurista, reflete uma visão antiquada do direito, uma certa mitificação, senão fetichismo, do art. 5º, XXXV, da Constituição Federal.
Não creio que, nos dias de hoje, se possa afirmar, convincentemente, que a arbitragem consubstancia um negócio jurídico extraordinário, de efeitos extravagantes e de natureza tão sensível, a ponto de reclamar especial e extrema atenção dos contratantes.
Nada disso. Sabe-se que a arbitragem é o meio de resolução de conflitos mais utilizado no comércio internacional.13
É, hoje, a regra nos negócios internacionais e sua previsão tem se mostrado cada vez mais intensa nos contratos de índole doméstica.
A legislação editada no país, na última década, não deixa margem de dúvida quanto a esse entendimento, antes, o afirma.
Veja as leis do petróleo, das telecomunicações, das concessões e permissões de serviços públicos, a de concessão de serviços aquaviários, dos portos e, mais recentemente, a que dispõe sobre as Parcerias Público-Privada.14
Todas admitem ou, mesmo, induzem, a utilização da arbitragem como meio adequado de resolução dos conflitos, notadamente, nas relações em que o próprio Estado é parte.
Denota-se, pois, da intensa produção legislativa que o legislador, mesmo nas relações em que o estado e seus entes são partes e, portanto, de índole bastante conservadora, desmitificou o instituto da arbitragem a ponto de torná-lo um negócio comum e desejado. Tão comum e desejado que, não raro, a arbitragem se encontra elencada dentre as cláusulas essenciais ao próprio negócio.15
Em outras palavras, a arbitragem, com toda a legislação que sucedeu sua revigoração, no ano de 1996, saiu da marginalidade para tornar-se, em certa medida, um negócio jurídico normal, tal qual o ajuste que fixa a eleição de foro nos contratos.
Por sinal, a analogia da eleição de foro com a escolha da arbitragem parece pertinente e razoável dada a finalidade resultante de tais pactos. E não quero crer que a escolha da justiça estrangeira requeira poderes especiais na outorga de procuração.
Da mesma forma que a opção pela via arbitral, regulada e autorizada em lei, não extrapola os limites ordinários de gestão.
Ora, no presente caso, o acordo de acionista fixa, em proveito de todos, jurisdição especializada e, via de regra, mais rápida para a solução dos conflitos.
Quisessem as partes, ou, ao menos, algumas delas, prejudicar ou obstaculizar a solução de controvérsias oriundas do acordo de acionistas, por certo essa pretensão teria melhor resposta se utilizada a opção de eleição de corte judicial, mormente estrangeira, cuja eficácia independe de poderes especiais e onde, no mínimo, poderiam se valer de diversos recursos para protelar o trânsito em julgado.
Entretanto, não é o que se apresenta no caso concreto. As partes lançaram mão de uma opção corriqueira nos acordos da espécie, sujeita ao devido processo legal e à fiscalização ulterior pelo Poder Judiciário.
Via que não exclui, portanto, o controle judicial da sentença proferida pelos árbitros.
2.2. E aqui se faz necessário um parênteses: não vejo qualquer impropriedade ou ilegalidade na fixação dos critérios que norteiam a escolha de árbitros.
O fato de o acordo de acionistas vedar a indicação de árbitro brasileiro não torna ilegal a convenção de arbitragem. Não vislumbro violação a qualquer dispositivo legal, tampouco abusividade, pois encontra amparo na autonomia da vontade.
A cláusula de arbitragem, com a restrição em foco, não cria qualquer desequilíbrio entre as partes, ao contrário, prestigia a isonomia e não afeta, talvez até reforce, a expertise que a solução dos sofisticados conflitos societários cada vez mais exigem.
O conhecimento específico e detalhado da legislação de regência (brasileira quanto ao mérito), como é sabido, é praxe nas arbitragens, não tendo a relevância que alguns emprestam, pois os árbitros, comumente de notório saber jurídico e vasta experiência na área objeto da disputa, são intensamente municiados por pareceres e depoimentos de juristas renomados que prestam todos os esclarecimentos e informações necessárias ao deslinde da demanda.
Enfim, é procedimento típico das arbitragens e que se harmoniza com a liberdade e a flexibilidade inerentes ao instituto.
2.3. Concluído o parênteses, creio que a questão dos poderes especiais para o procurador firmar convênio de arbitragem se sustenta em fonte ultrapassada.
A cláusula compromissória não é hoje aquela anomalia concebida e temida nos idos de 1800 e 1900.
A arbitragem já não é mais vista como um negócio atípico que acarreta um encargo relevante para a parte. Não se traduz na assunção de uma obrigação exorbitante e de impacto expressivo no patrimônio da contratante.
Não é, por certo, da natureza das obrigações que exigem poderes especiais do outorgado, como a alienação de ativos, encargos de garantia ou constituição de ônus reais, obrigações estas que implicam na disposição ou alienação de bens patrimoniais.
A cláusula de arbitragem, simplesmente, elege uma via de solução de controvérsia que não implica no afastamento do controle do estado.
Não resulta em encargo e, tampouco, onera bens dos contratantes. Ao contrário, visa uma resposta mais rápida ao potencial conflito que, esse sim, postergada sua resolução, poderá gerar graves contingências ao patrimônio dos envolvidos.
A contratação de cláusula de arbitragem é negócio jurídico de efeitos meramente processuais, de pouca ou nenhuma expressão material, e encerra simples eleição de via jurisdicional para a solução de conflitos. Em muito se assemelha à cláusula de eleição de foro.
Ajusta-se, sem dúvida, no âmbito da administração ordinária, pois seus efeitos não importam em alienação ou disponibilidade de bens.
De acordo com Caio Mario da Silva Pereira:
“Diz-se que é geral, quando abrange todos os negócios do mandante, habilitando o mandatário para qualquer ato de administração (Código Civil, arts. 1.294 e 1.295), o que significa a atuação destinada a gerir ou dirigir os negócios, sem atingir a sua substância, nem dispor total ou parcialmente de bens.”16
J.M. Carvalho Santos:
“De um modo geral, pode-se dizer que atos de administração são aqueles que não representam alienação, encargos de garantia ou ônus reais, ou outro qualquer modo de disposição de bens“.17
Fran Martins:
“Nessas condições, todos os atos praticados pelos administradores dentro do objeto social são atos de administração normal que, para ser realizados, não necessitam de autorização especial, amparados que estão pela expressa disposição estatutária.”18
Por todos esses motivos, e outros tantos, tenho por desnecessária a outorga de poderes especiais ao procurador que contrata a cláusula de arbitragem em nome do outorgante.
2.4. E não se diga, a meu ver, que o art. 661, parágrafo 2º, do Código Civil dita regra em sentido oposto.
O significado dessa norma há de ser extraído de seu confronto com o caso concreto e com a contemporaneidade em que se insere e busca produzir seus efeitos.
Como salienta Eros Grau, a interpretação opera a inserção do direito na realidade. Em outros termos, opera sua inserção na vida.19
Essa simples constatação já seria suficiente a se mitigar o significado de uma norma que pretendesse, nos dias atuais, impor restrição ou encargo inconsistente, e exacerbado, vis-à-vis os propósitos da cláusula arbitral.20
Mas, repito, não me parece que seja o caso.
Primeiramente, a norma civilista trata de exceções. A regra societária é a da execução de negócios ordinários. O dia a dia de uma empresa se faz com a consecução de tarefas costumeiras, usuais, que dão curso ao objeto da sociedade.
São tantos os atos ordinários de gestão que, “autores nacionais e estrangeiros são acordes em reconhecer a impossibilidade de serem enumerados todos os atos que, dentro das suas funções normais, podem ser validamente praticados pelos administradores, todos, entretanto, antigos ou modernos, …, enfatizam que cabe aos administradores agir dentro do objeto social, no interesse da sociedade.“21
Os negócios extraordinários, pela sua relevância e impacto no patrimônio social, evidentemente, não se concretizam usualmente, mas, sim, em momentos especiais da vida social.
São, por essa razão, tratados pela lei como atos extraordinários de gestão. Pela sua própria natureza, dependem, para sua eficácia, de poderes específicos outorgados ao procurador.
Com efeito, o legislador os retira dos poderes genéricos para introduzi-los como rol das exceções.
E é assim que deve ser tratado. Estritamente.
Daí, a primeira conclusão lógica que se retira dessa premissa é a de que, caso existisse qualquer exceção, ou extraordinariedade, na contratação de convenção de arbitragem, essa se aplicaria, única e exclusivamente, ao compromisso.
O art. 661, parágrafo 2º, do Código Civil não deixa margem de dúvidas: “O poder de transigir não importa o de firmar compromisso” (grifei).
Ora, cláusula compromissória e compromisso, apesar de semelhantes, são institutos distintos por natureza. Nascem em momentos extremamente distantes e podem ter objetos diversos.
A cláusula compromissória se aplica a conflitos contratuais, enquanto o compromisso pode surgir de disputas extracontratuais. O compromisso versa conflito presente, já instaurado, opostamente ao que ocorre com a cláusula compromissória que maneja conflitos potenciais e futuros.
Com clareza, existisse alguma restrição normativa, tal não se destinaria ao caso concreto, pois o procurador não firmou qualquer compromisso arbitral. Ele pactuou, puramente, uma cláusula compromissória no bojo de um acordo de acionistas.
Repito: se restrição houvesse, essa se aplicaria ao compromisso e, não, à cláusula compromissória. E a ratio está no fato de que a cláusula compromissória maneja fato futuro e incerto que, vindo a ocorrer, ainda assegura ao outorgante, naquele momento, a oportunidade de exercer todos os direitos inerentes à instituição da arbitragem, incluso, a indicação de árbitros.
Ao contrário, com o compromisso, o conflito já existe e o outorgante poderia, em tese, ver frustrado seu direito de escolha de árbitro, direito este reputado sensível, dada a inerente confiança que a nomeação requer.
Sentido houvesse nessa restrição, por certo, somente se dirigiria à assinatura de compromisso e, não, à execução de mera cláusula compromissória, pois com o compromisso as partes efetivamente instituem a arbitragem e o outorgante poderia, nesse caso, se sentir frustrado no exercício de direitos.
2.5. No entanto, vou além: penso que não se pode extrair da regra do diploma civil qualquer restrição, de cunho extraordinário ou especial, que inviabilize os efeitos do próprio compromisso, firmado por procuração sem poderes específicos para tanto.
Digo isso porque, no meu entender, o art. 661, parágrafo 2º, do Código Civil, afirma e confirma a conclusão de que compromisso é ato ordinário de gestão.
De fato, e de direito, o que o referido dispositivo expressa é que, simplesmente, o poder de transigir não importa o de firmar compromisso.
Em momento algum afirma que a assinatura de compromisso depende de poderes especiais. O de transigir, sim. Está claro no texto normativo. O de firmar compromisso, não. Em nenhum momento se diz que a assinatura de compromisso depende de poderes especiais.
Ao contrário, o art. 661, § 2º, do Código Civil exclui o ato de firmar compromisso do contexto da transação (transigir) e, conseqüentemente, daqueles que necessitam poderes especiais de gestão.
Repita-se: o texto apenas sublinha que, “o poder de transigir não importa o de firmar compromisso.”
Confirma, pois, que a mera previsão de compromisso não se insere nas hipóteses extremas que afetam o patrimônio da sociedade, como a constituição de garantias, a alienação de parte do ativo e a faculdade de transigir.
Implica em mera eleição de jurisdição, que não exorbita os atos atinentes à administração ordinária da companhia.
A eleição de via arbitral não implica em disposição, no sentido e no alcance das restrições protetivas contempladas no art. 661, §2º, do Código Civil.
Portanto, não creio ser ineficaz a contratação da arbitragem objeto do caso concreto. Seja pela validade e eficácia da cláusula compromissória contemplada no acordo de acionista, seja pela inaplicabilidade das restrições sustentadas pela autora no processo judicial.
3. A Escolha da Lei Aplicável.
O instituto da arbitragem se sustenta no pilar da liberdade. Ele nasce, se desenvolve e se afirma no princípio da auto-regulação.
A arbitragem, já foi dito, é um campo de liberdade. É para quem quer e sabe ser livre.
Na arbitragem prevalece a autonomia da vontade, princípio esse que permite às partes disporem sobre o conteúdo e os efeitos do negócio jurídico. Sem amarras.
A lei brasileira de arbitragem, em linha com a gênese do instituto, mantém incólume a autonomia volitiva. Mais ainda, assegura sua eficácia.
São exemplos, a própria opção pela via arbitral e a produção de efeitos positivos e negativos da cláusula compromissória; a fixação de critérios qualitativos e quantitativos para a escolha dos árbitros e a possibilidade de impugnação na hipótese de sua inobservância; a determinação do prazo para a prolação da decisão arbitral e sua nulidade em caso de extrapolação.
Esse pressuposto encontra eco também no momento da escolha da lei aplicável ao conflito.
Nesse particular, a Lei assegurou ampla liberdade aos contratantes, verbis: “Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública”. (Art. 2º, §1º, da Lei)
Com efeito, liberdade (livremente) é a palavra que confere significado ao texto retrotranscrito.
A doutrina não desmente essa afirmativa:
“Entretanto, há que se levar em conta que, conforme apontado anteriormente, como a arbitragem decorre exclusivamente da vontade das partes, os árbitros devem considerar essa mesma vontade como soberana também, no que se refere à lei a ser aplicada ao mérito da controvérsia. Assim, na via arbitral, a autonomia da vontade não tem limites, devendo a escolha das partes ser respeitada, já que é o que determina o Art. 2, §1 da Lei Brasileira de arbitragem…“22
“São muitos os exemplos da ampla aceitação da autonomia da vontade das partes na escolha da lei de fundo da arbitragem. Um exemplo típico desta evidência, citado por Julian D. M. Lew,é o que consta em muitas sentenças arbitrais em que os árbitros de diferentes nacionalidades ao determinarem a lei que governará a disputa, começam por verificar a existência ou não de alguma escolha expressa neste sentido feita pelas partes.
…
Assim, no que concerne a escolha das regras substantivas da arbitragem, mesmo a doméstica realizada no Brasil, levando em consideração a deslocalização espacial de suas regras, aliada aos amplos espectros opcionais contidos no Art. 2º de nossa Lei, acreditamos que o princípio da autonomia da vontade não deverá ser inibido, em sentido estrito, em razão da ordem pública nacional, eis que dificilmente haverá uma antinomia declarada entre a lei do contrato e a lei estrangeira escolhida para servir de base à arbitragem, e se houver, como acima dissemos, parece-nos que haverá uma espécie de harmonização consensual automática, cimentada pelo princípio do ajuste entre as partes.“23
“Eleição pelas partes. Dado que a pretensão indenizatória, fundada no ato ilícito se estabelece no interesse do danificado, se este pode renunciar à indenização do dano sofrido, pode convir a eleição do direito aplicado.“24
Veja, pois, que a escolha da lei aplicável à arbitragem é ato que se insere no escopo da autonomia da vontade das partes.
No entanto, sustenta a autora da medida judicial que a escolha, em si, da lei aplicável teria sido exercida com abusividade, pois o fim pretendido pelos réus seria o de evitar a aplicação da ordem pública brasileira, especificamente, no que tange à validade e aos efeitos do segundo aditamento ao acordo de acionistas.
Sem adentrar no mérito da questão, tenho que essas razões consubstanciam matéria típica de apreciação pelo tribunal arbitral.
De fato, a alegação da autora retrata, nesse momento, tão somente, sua visão particular sobre a prática da contratação do negócio jurídico.
Dela se infere, como sustentado pela autora, indícios de violação à ordem pública nacional. Entretanto, essa alegação somente poderá ser confirmada, ou não, quando do confronto das leis em questão (norte-americana e brasileira) ao caso concreto.
Antes disso, a afirmação da autora não passa de mera especulação.
Essas questões, e outras tantas mais relevantes, conquanto ainda recentes as discussões no Brasil, já vêm sendo enfrentadas pelos tribunais judiciais estrangeiros, em especial os Estados Unidos, com a declinação de jurisdição, em prol da arbitragem:
“A Corte Distrital (District Court) concedeu ao F&C a prerrogativa de dar prosseguimento à instituição da arbitragem, considerando que uma acusação de fraude na celebração de um contrato contendo uma cláusula arbitral tão abrangente como essa, era uma questão para os árbitros e não para a Corte. (…) Confirmado.“25
Com efeito, dada a existência de cláusula compromissória no acordo de acionista e autonomia competência – competência.
Vê-se que matérias contundentes são revertidas à apreciação preliminar dos árbitros, tais como, casos envolvendo fraude e, não raro, corrupção.
No caso concreto, a lei de arbitragem chancela ampla liberdade às partes na escolha da lei.
Se essa escolha reflete ou não alguma violação à ordem pública, creio que somente poderá ser averiguada pelo Judiciário, em sede de controle ulterior da sentença arbitral, ato em que constarão expressos os fundamentos do decisum.
Com a sentença poderá o Judiciário aferir a existência ou inexistência de violação à ordem pública.
Direitos indisponíveis e ordem pública não se confundem. Enquanto tudo aquilo que é indisponível será, com certeza, de ordem pública, contrariamente, nem tudo o que é de ordem pública é indisponível.
O árbitro não tem jurisdição para tratar de questões de direito indisponível, mas pode, sim, apreciar e julgar matérias de ordem pública. O que não pode é, com sua sentença, violar a ordem pública.
Veja, nesse sentido, a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro que remeteu à arbitragem questão envolvendo matéria de representação comercial entre brasileiro e estrangeiro, sendo representante parte brasileira e, representado, parte estrangeira, e onde se discutiu, inclusive, a nulidade da cláusula de arbitragem dada a alegação de que a escolha da lei de Ontário, Canadá, feria a ordem pública, nos termos da pretendida prevalência da Lei de Representação Comercial, verbis:
“Nem se pode discutir a questão de a Lei dos Representantes Comerciais se configurar norma de ordem pública, tendo o representante comercial o direito irrenunciável à indenização, que não pode ser excluída pela Lei de Ontário, isto porque o simples fato de se eleger a arbitragem como forma de solução dos conflitos não afasta, por si só, os direitos indenizatórios e a sentença arbitral que violar os princípios do contraditório, da igualdade das partes, ou incidir em qualquer daquelas hipóteses expressas no art. 32 da Lei de Arbitragem, sujeita-se à nulidade perante o Poder Judiciário – art. 33, ainda que tenha ficado expresso que a sentença arbitral será final, conclusiva e vinculatória para as partes.“26
Com efeito, frente à ampla liberdade na escolha da lei aplicável, assegurada pela Lei, inclusive, quanto à possibilidade de adoção de princípios gerais e usos e costumes, práticas estas não positivadas no direito brasileiro, e, mais ainda a permissão para se afastar o próprio direito com a utilização da equidade, creio que o pressuposto ínsito no art. 2º, §1º, da Lei, a potencial violação na escolha da lei aplicável, se houve, deverá ser debatida, apreciada e julgada em sede de arbitragem tal qual ocorre com questões muito mais sensíveis, como a fraude e a corrupção.
É o Parecer.
Rio de Janeiro, 9 de maio de 2005
Notas
1 JUNIOR, Joel Dias Figueira. Arbitragem, Jurisdição e Execução, 2ª edição, Ed. Revista dos Tribunais, São Paulo, 1999, p. 191.
2 ALVIM, J.E. Carreira, Comentários à Lei de Arbitragem, Ed. Lúmen Júris, Rio de Janeiro, 2002, pág. 74.
3 Carbonneau, Thomas E., Cases and Materials on the Law and Practice of Arbitration. 2ª edição. Juris Publishing, Inc., 2000, p. 21. Tradução livre. No original: “Prior to their incorporation in the law of arbitration, a party bent on delaying the day of reckoning would oppose the arbitration by alleging that the principal contract was void – usually, for reasons of public policy. Because the agreement to arbitrate was included in the principal contract, the allegation of general contractual nullity, it was argued, implicated the arbitral clause. In a word, the parties were not bound to arbitrate because the agreement to arbitrate was suspect – it arguably was an invalid contract. The mere allegation of the invalidity of the main contract gave the courts jurisdiction to decide whether a valid contract of arbitration existed. Judicial intervention delayed the arbitration and impeded the agreed-upon recourse to arbitration. Such practice obviously invited dilatory tactics. The separability doctrine was introduced to counter these dilatory tactics.”
4 Tradução livre. No original: “The principle of autonomy has been, however, expressly recognized in the statutes or case law of a large number of countries. … A variety of countries many with a common law tradition, have implemented legislation based on the Model Law. As a result, the recognition of the principle of autonomy has become widespread.” Ph. Fouchard, E. Gaillard, B. Goldman. Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration, org. Gaillard, Emmanuel, e Savage, John. Kluwer Law International: Haia, 1999, pág. 203-205.
5 Resp No. 450881-DF (2002/0079342-1), à unanimidade da 3ª Turma, Americel S.A. v. Compushopping Informática Ltda., ME e outros, Rel. Min. Castro Filho, j. 11.04.2003.
6 A bem da verdade, essa sistemática não é novidade brasileira e se encontra integrada, se não em todos, ao menos na maioria esmagadora dos ordenamentos jurídicos estrangeiros e atos internacionais.
7 É esse o contexto da clausula de arbitragem em disputa: “A Determinação do Preço Final nos termos do Item 8, bem como qualquer disputa, controvérsia ou pedido entre as Partes do presente oriundos ou relacionados a este Acordo ou a inadimplência, rescisão ou validade de seus dispositivos, incluindo, mas não se limitando esta cláusula de arbitragem … será, a pedido de qualquer das Partes, resolvido exclusivamente por arbitragem…“(tradução livre). No original: “The Final Price Determination pursuant to Section 8, as well as any dispute, controversy or claim between the Parties hereto arising out of or relating to this Agreement or the breach, termination or validity thereof of any of its provisions, including without limitation this arbitration clause … will, in the request of any Party hereto, be exclusively settled by arbitration…“.
8 Ph. FOUCHARD, E. GAILLARD, B. GOLDMAN. Fouchard Gaillard Goldman on International Commercial Arbitration, org. Gaillard, Emmanuel, e Savage, John. Kluwer Law International: Haia, 1999, pág. 401. Tradução livre. No original: ” In that sense, the competence-competence principle is a rule of chronological priority. Taking both of its facets into account [positive and negative effects], the competence-competence principle can be defined as the rule whereby arbitrators must have the first opportunity to hear challenges relating to their jurisdiction, subject to subsequent review by the courts.”
9 Ob. Cit. p. 215. Tradução livre. No original: “However, the now prevailing view in international arbitration practice, in particular in Europe, support the arbitrability of disputes involving allegations of corruption and bribery. Relying on the doctrine of separability arbitration tribunals and courts have come to the conclusion that the arbitration agreement as such is generally not tainted by alleged corruption which only affects the main contract. Despite the international public policy implication, it is felt that the tribunal should be allowed to decide whether or not there was bribery or corruption involved. National Courts retain control over contract involving bribery and corruption at the enforcement stage since awards which upholds such contracts would be contrary to public policy.”
10 Tradução livre. Esclareça, desde logo, para que dúvidas não pairem, que, por óbvio, se o árbitro entender que a ilegalidade afeta a cláusula compromissória, ele dará por fim o processo de arbitragem remetendo as partes à justiça comum. No original: “The issue before the Court was whether the arbitration clause was a separate and autonomous contract such as to give the arbitrators jurisdiction to determine issues concerning the initial validity of the contract. It was held that it was and therefore the arbitrator had jurisdiction to determine a dispute concerning the initial validity of the contract. Initial illegality of contract was within the scope of the arbitration agreement provided that the arbitration clause itself was not directly impeached by the allegation of illegality.” – CATO, Mark. Arbitration Practice and Procedure. 2nd Ed. London: LLP, 1997, p. 111.
11 V. opinião de Phillippe Fouchard para quem “[e]sse princípio está tratado de uma maneira clara no artigo II, parágrafo 3o, da Convenção de Nova Iorque de 1958 sobre o Reconhecimento e Homologação de Sentenças Arbitrais Estrangeiras: … O ajuizamento de uma “anti-suit injunction” baseada no entendimento de determinada corte acerca da validade e do escopo de uma convenção de arbitragem nega claramente o princípio da competência-competência. Por essa única razão, isto deveria ser evitado.” (tradução livre) – Fouchard, Philippe. Anti-Suit Injunctions: What Remedies? In International Arbitration. Org. Gaillard, Emmanuel. United States of America: Juris Publishing. 2005. págs. 153-5. No original: “This principle is set forth in the clearest manner in Article II, paragraph 3, of the 1958 New York Convention on the Recognition and Enforcement of Foreign Arbitral Awards: … The issuance of an anti-suit injunction based on a given court’s understanding of the validity and scope of an arbitration agreement clearly negates the principle of competence-competence. For that reason alone, it should be avoided.”
12 WALD, Arnoldo. A Interpretação da Convenção de Nova Iorque no Direito Comparado. In Revista de Direito Bancário, do Mercado de Capitais e da Arbitragem 22/366.
13 Tanto é que o jurista francês Jean Robert afirmou, anos atrás, não existir contrato internacional sério sem que nele conste estipulada a convenção de arbitragem.
14 Lei do Petróleo (Lei n. 9.478/97); Lei das Telecomunicações (Lei n. 9.472/97); Lei de concessão e prestação de serviços públicos (Lei n. 8.987/95); Lei da reestruturação dos transportes aquaviários e terrestres (Lei No. 10.233/2001); Lei dos Portos (Lei No. 8.630/93); e a Lei das Parcerias Público-Privada (Lei No. 11.079).
15 Conforme pode ser depreendido dos textos das leis, verbis: Lei Nº. 9.472/97 – “Art. 93. O contrato de concessão indicará: … XV. O foro e o modo para solução extrajudicial das divergências contratuais.” Lei Nº. 9.478/97 – “Art. 43. O contrato de concessão deverá refletir fielmente as condições do edital e da proposta vencedora e terá como cláusulas essenciais: … X. As regras sobre solução de controvérsias, relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem internacional“. Lei Nº. 11.079/2004 – “O instrumento convocatório conterá minuta do contrato, indicará expressamente a submissão da licitação às normas desta Lei e observará, no que couber, os §§ 3º e 4º do art. 15, os arts. 18, 19 e 21 da Lei Nº. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, podendo, ainda, prever: … III. O emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei Nº. 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato“. Lei Nº. 8.630/03 – “Art. 23. … §1. Em caso de impasse, as partes devem recorrer à arbitragem de ofertas finais. …“. Lei Nº. 10.233/2001 – “Art. 35. O contrato de concessão deverá refletir fielmente as condições do edital e da proposta vencedora e terá como cláusulas essenciais as relativas a: XVI. Regras sobre solução de controvérsias relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem.”
16 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. 3, 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 257.
17 SANTOS, J.M. Carvalho. Código Civil Brasileiro Interpretado, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, p. 159.
18 MARTINS, Fran, Poderes dos Administradores nas sociedades anônimas. In Direito societário: estudos e pareceres, Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 112.
19 GRAU, Eros. Ensaio e Discurso sobre a Interpretação/Aplicação do Direito. Ed. Malheiros: São Paulo, 2002, p. 28 (item XIII).
20 Note que a norma do Código Civil é tão extemporânea que se volta, caso fosse aplicado, à figura jurídica do compromisso.
21 Martins, Fran, Ob. Cit., p. 112.
22 TIBÚRCIO, Carmen. A Lei Aplicável às Arbitragens Internacionais. In Reflexões sobre Arbitragem in memorian do Desembargador Cláudio Vianna de Lima. Coord. Martins, Pedro Batista e Garcez, José Maria Rossani, LTR: São Paulo, 2002, p. 100.
23 Garcez, José Maria Rossani, Escolha da Lei Substantiva da Arbitragem, In Revista de Arbitragem e Mediação. Ano 2, No. 4, jan.-mar. 2005. P. 60 – 61.
24 Boggiano, Antonio. Contratos. In Boggiano, Antonio. Derecho Internacional Provado, v. 2, 2ª Ed., Buenos Aires: Depalma, 1983, P. 1.161.
25 Prima Paint Corp. v. Flood & Conklin Mfg. Co., 388 US. 395, 87S.CT.l801, 18 L. Ed. 2d 1270 (1967). Tradução livre. No original: “The District Court granted F&C`s motion to stay the action pending arbitration, holding that a charge of fraud in the inducement of a contract containing an arbitration clause as broad as this one was a question for the arbitrators and not for the court. …Affirmed“.
26 TJRJ, AP Civ No. 28.020/2002, 13a Câmara Cível, Rel. Des. Ademir Paulo Pimentel. South Marketing Ltda. v. Air Canada, j. 12 de março de 2003.