Pedro A. Batista Martins[2]

1. Introdução. 2. A Arbitragem nas Sociedades Anônimas. 3. Arbitrabilidade Subjetiva. 3.1. Mirada sobre o Instituto da Arbitragem. 3.2. O Princípio Majoritário. 3.3. A Vinculação de todos os Acionistas. 3.4. A Vinculação dos Adquirentes de Participação acionária. 4. A Indisponibilidade e a Ordem Pública Societária.

1. INTRODUÇÃO

1. As sociedades anônimas são objeto de diferentes estudos por parte dos juristas, economistas e, mesmo, sociólogos. É fonte de infindáveis preocupações por todo o poder que angariou ao longo do curso de décadas de aprofundamento de suas raízes na esfera econômica-financeira das nações. Preocupações que permeiam suas vantagens e os desequilíbrios que causam mas que, ao fim e ao cabo, nunca deixam de reconhecer, como premissa básica, a enorme utilidade das anônimas como fiadoras da melhoria social e veículos de expansão produtiva e tecnológica.

2. Ao lado dos títulos de crédito, instituto jurídico propiciador de circulação de riquezas, é a anônima a outra estrela do direito comercial. Sua importância transborda fronteiras, pois é ela uma das bases da evolução dos homens. É indescritível o poder que aglutina, os recursos que entesouram, a força tecnológica que detêm e a importância face ao estado, como fonte relevante de geração de empregos e recursos fiscais e tributários. Enfim, não há país que possa abdicar dos benefícios gerados pelas sociedades anônimas.

3. Diante desse cenário de relevância sócio-econômica das anônimas, em especial as abertas, é imperioso que suas relações intra-sociais sejam preservadas e estejam, juridicamente, bem aparelhadas de modo a viabilizar o equilíbrio indispensável ao desenvolvimento de seus negócios e de suas relações inter-sociais.

4. Quero dizer que a finalidade lucrativa de toda sociedade anônima, causa principal do seu sucesso nas atividades consectárias (v.g. fomentadora de empregos, de exportação de bens e serviços; provedora de recursos fiscais e tributários; mola propulsora da produção industrial e tecnológica), depende, em grande parte, da harmonia com que se relacionam os órgãos da sociedade – Diretoria, Conselho de Administração e Assembléia Geral – e os detentores do seu capital social.

5. Isso porque, as disputas internas societárias geram forte insegurança no mercado e nos fornecedores, reprimem a produtividade, fragiliza o emocional dos funcionários, o que os leva a busca de novos desafios, além de ocasionar efetivas perdas de oportunidade empresarial, em desproveito de toda a coletividade e do Estado.

6. Pior que a existência dos conflitos é a sua perpetuação, por força de uma demorada resposta jurisdicional. Tempo, no que diz respeito às anônimas, é algo valiosíssimo. Já foi dito que o empresário, se posto frente ao dilema de ter que escolher entre perder dinheiro ou perder tempo, não hesitaria em optar por perder dinheiro. Por uma singela razão: dinheiro se recupera; o tempo…jamais!

2. A ARBITRAGEM NAS SOCIEDADES ANÔNIMAS

1. Com efeito, uma série de estudos nos vários campos do direito e da economia têm convergido para a adoção de vias extrajudiciais de solução dos conflitos societários.

2. Não somente nas controvérsias que surgem das relações entre empregados, gerentes e diretores, ou entre a sociedade e os sindicatos, mas, sobretudo, naquelas relações mais sensíveis ao adequado e equilibrado funcionamento da sociedade, quais sejam, a dos acionistas entre si (majoritário e minoritário) e a destes com a sociedade.

3. O acesso à justiça, como concepção de tutela efetiva dos direitos e interesses contrapostos, encontra nas disputas societárias um denominador comum.

4. A utilização da mediação e da arbitragem, a par de outras formas e mecanismos de resolução de disputas, tem sido viabilizada face a previsão legislativa e imposição regulamentar, por se harmonizarem com as boas práticas de governança corporativa. A crescente imperatividade das regras da boa governança converge com o incremento da adoção da arbitragem no plano das sociedades.

5. No Brasil, a Lei n. 10.303, de 31/10/2001, modificou a Lei n. 6.404/76 para introduzir o mecanismo da arbitragem como via de resolução das disputas societárias. E o fez, exatamente, no âmbito do artigo que dispõe sobre os direitos essenciais do acionista.

6. Nos termos da Lei n. 10.303/01, o art. 109 da lei do anonimato foi ampliado para constar o seguinte parágrafo 3º: “O estatuto da sociedade pode estabelecer que as divergências entre os acionistas e a companhia, ou entre os acionistas controladores e os acionistas minoritários, poderão ser solucionados mediante arbitragem, nos termos em que especificar. Dispositivo claro e objetivo, tal e qual sua teleologia, como se verá adiante.

7. Ressalte-se, desde já, que, à rigor, esse dispositivo não é a única norma legal autorizadora da arbitragem como instrumento de solução de disputas societárias. Na realidade, essa norma confirma o disposto no primeiro artigo da Lei no 9.307/76: “As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”

8. O que podemos extrair do parágrafo 3º, art. 109 retromencionado é que, o legislador ao disciplinar a arbitragem no direito societário, o fez com o intuito de deixar clara a inexistência de qualquer restrição, ou pré requisito, para a adoção do instituto arbitral na esfera jurídica das sociedades anônimas. Sua aprovação não se condiciona a quorum qualificado e não autoriza ao dissidente o exercício do direito de recesso.

9. Ao contrário, o intérprete não pode olvidar que, certamente, desde a edição da Lei no 9.307/96 a arbitragem tornou-se instituto legitimado para resolver as controvérsias societárias. Basta que o conflito seja de direito patrimonial disponível. E essa é a regra das controvérsias societárias.

10. Ademais, ao ver introduzida a previsão de arbitragem na lei do anonimato (repita-se: sem qualquer espécie de restrição ou condição), podese concluir, também, que a alteração reforça a vontade legislativa em favor do instituto e encerra uma verdadeira indução aos órgãos sociais de utilização desse meio extrajudicial para a solução, juridicamente eficiente, dos conflitos e controvérsias oriundas das relações societárias.

11. Sem embargo, alguns juristas e estudiosos ainda não se sentem confortáveis com a possibilidade de se usar a arbitragem na seara das anônimas de forma linear, sem condicionantes. Discordam da eficácia subjetiva da cláusula compromissória estatutária e da amplitude da arbitrabilidade objetiva, dada a natureza das matérias objeto das questões societárias.

12. Penso, contudo, que as preocupações e as objeções que fundamentam o posicionamento contrário a arbitragem societária são, se não em sua totalidade, ao menos em sua flagrante maioria, desprovidas de embasamento eficaz. Não raro, contemplam intrínseco grau de misoneismo e sentimento ideológico.

3. ARBITRABILIDADE SUBJETIVA

1. A primeira fonte de problemas que toca a arbitragem societária diz com a divergência existente quanto a vinculação de todos os acionistas à cláusula compromissória introduzida no estatuto social por voto da maioria.

2. Discute-se, na doutrina, a sujeição ou não do acionista ausente na reunião de sócios e daquele que, presente à assembléia geral, por si ou por representante, vota contra a modificação do estatuto e, por consegüinte, dissente da substituição da jurisdição estatal pela arbitral.

3. Penso que a deliberação assemblear que aprova, por maioria, a inserção de cláusula compromissória estatutária é válida, eficaz e vincula a todos os sócios, presentes, ausentes ou dissidentes.

4. Esse entendimento, para ser melhor compreendido e aceito, deve transitar, primeiramente, pelos contornos do instituto da arbitragem e sua estreita relação com a efetividade do acesso à justiça e, em seguida, por matéria tão cara ao direito societário, e fonte da própria existência das sociedades anônimas, qual seja, o princípio majoritário.

3.1. MIRADA SOBRE O INSTITUTO DA ARBITRAGEM.

1. Conhecido de muitos, o relatório elaborado pela equipe capitaneada pelos Professores Mauro Cappeletti e Bryant Garth atesta que as nações enfrentam graves obstáculos no campo da realização da justiça. O acesso de todos a uma razoável prestação jurisdicional ainda é frágil e defeituosa, a ponto de discriminar um sem número de conflitos que deixam de ser resolvidos, ou não se solucionam adequadamente.

2. As razões de tais obstáculos são múltiplas e complexas, mas, no entanto, deixarão de ser abordados sob pena de enorme digressão ao presente trabalho. A este importa a conclusão do relatório apresentado pelos ilustres Professores no sentido de que vários países passaram a recomendar aos demandantes, como mecanismo de superação dos obstáculos ao acesso à justiça, a introdução, nos seus sistemas jurídicos, de métodos extrajudiciais de resolução de controvérsias que funcionariam como “portas” de pacificação dos conflitos, paralelamente ao “portão” do Judiciário.

3. Esses métodos, diga-se desde já, não se prestam como tábua de salvação para os problemas que afligem a justiça. Em hipótese alguma devem ser enxergados como sucessores da justiça comum. Esta nunca deixará de existir e, ademais, os meios extrajudiciais, nomeadamente a arbitragem, dependem do Poder Judiciário para seu adequado desenvolvimento.

4. De todo modo, não se deve olvidar que essas “portas” de acesso à justiça encerram forte valor social, pois resultam por pacificar os conflitos. Destarte, é imperioso que esses instrumentos de composição de controvérsias sejam encarados pelas autoridades e pelos operadores da justiça com mentes abertas e como verdadeiros auxiliares na inesgotável tarefa de realização da justiça. Trata-se de equivalentes jurisdicionais capazes de multiplicar a ajuda e a cooperação do particular com o Estado no campo da administração da justiça.

5. A verdade é que o Estado não quer, e não há de ser encarado como o ente solucionador de todas as dificuldades de seus cidadãos e, tampouco, o provedor de todas as suas necessidades. Já dizia John F. Kennedy, “não pergunte o que o seu país pode fazer por você, mas, sim, o que você pode fazer por seu país.”

6. Há muito se ultrapassou a fase do Estado-Providência. O momento é o da participação popular na definição de políticas administrativas, urbanas e sociais. Vive-se o processo da democratização social onde o cidadão é chamado, ou melhor, é convocado e clamado a cooperar com o Estado na solução de diversos problemas ou para o encaminhamento da sua equação. O desate das complexidades estatais reclama maior participação dos seus cidadãos enquanto o avanço das políticas públicas repudia a inanição estatal. Com efeito, a cooperação Estado/cidadão é, por certo, fundamental,

inclusive no que toca a realização da justiça.

7. O momento clama por uma abordagem solidária e pluralista. Solidariedade com o próximo, com os que ainda estão por vir, com o meio ambiente, com o patrimônio da humanidade. Pluralismo no sentido de aceitar os pensamentos opostos como simples ponderações formuladas por um pensamento diverso e, não, como uma rejeição, um confronto ou, mesmo, uma agressão.

8. E, tanto a solidariedade quanto o pluralismo tocam o âmago do instituto da arbitragem. Este encerra o consenso, a pacificação social e a diversidade. Traduz, sobretudo, o nobre escopo social e político da jurisdição qual seja, o de pacificar a lide sociológica.

9. Com efeito, a arbitragem deve deixar de ser encarada como uma confrontação com o Poder Judiciário ou uma agressão ao pretenso monopólio judicial na seara da administração da justiça, para ser digerida como uma via ou uma “porta” valiosa de acesso à justiça, posta à disposição dos indivíduos. Valiosa porque realizada com base no consenso das partes, sem custo para a máquina estatal e que resulta em uma solução palatável e efetiva para a disputa existente.

10. A arbitragem, destarte, não é uma inimiga do Estado ou do Poder Judiciário e não deve ser encarada por esse viés. Trata-se, sim, de uma forte aliada destes na superação das crises de interesses. Alinha-se o instituto ao expressivo conteúdo do inciso LXXVIII, do art. 5º, da Constituição Federal (redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004) que tem por finalidade, justamente, a efetiva e justa tutela jurisdicional, verbis; “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.”

11. Insere-se a arbitragem, portanto, dentre os direitos fundamentais de todas as pessoas. E, mais ainda, dentre os principais direitos essenciais de qualquer indivíduo, pois é ela pura expressão da liberdade. Por força da liberdade cidadã as pessoas podem se autodeterminar e, por conseguinte, decidir a forma e o meio mais adequado de resolver seus próprios conflitos.

12. Arbitragem é um exercício de liberdade e a história confirma que a justiça dos povos não seria concretizada, ou seria realizada de forma insatisfatória, se lhes fosse suprimida essa opção. É o caso das disputas ocorridas logo após a fase da autotutela, quando o ancião decidia a lide, de forma definitiva, com base na moral e na ética da comunidade em que se inseriam os demandantes. É o caso dos nativos dos antigos territórios romanos após a ocupação pelos bárbaros que, para fugirem a justiça e ao direito do invasor, optavam pela arbitragem de modo a se utilizarem das regras legais que conheciam e de indicarem pessoas de sua confiança para analisar e julgar a disputa. É o caso das controvérsias ocorridas entre os comerciantes da Idade Média, que se valiam das praxes comerciais e dos especialistas para dirimir os interesses contrapostos, vez que o direito positivo se apresentava retrógrado e os generalistas do direito desatualizados, por força da dinâmica mercantil e de seus avançados instrumentos de transação.

13. Afirmo, com isso, que a arbitragem é, por excelência, expressão da liberdade e tem por finalidade realizar a justiça. A arbitragem encarna, assim, dois princípios fundamentais do indivíduo: liberdade e justiça.

3.2. O PRINCÍPIO MAJORITÁRIO.

1. Não se pode enfrentar a controvérsia sobre os efeitos da cláusula compromissória estatutária sem dedicar espaço à análise do princípio majoritário. Seja de que ângulo se enfoque a matéria, não há dúvida de que a discussão não será completa se relegado o pressuposto em que se sustenta toda e qualquer sociedade, notadamente as anônimas.

2. A vida em sociedade, lato sensu, norteia-se pelo princípio da maioria. Sejam os grupos sociais, as associações ou as empresas, todos esses organismos se organizam e funcionam sob a égide da maioria.

3. Esse pressuposto legal, por consegüinte, é inerente às sociedades anônimas e dela indissociável. Junto com a limitação de responsabilidade forma a base em que se apoia todo o sistema societário.

4. Desde sua gênese a sociedade anônima é governada pela maioria. No início, diga-se, essa maioria restringia-se aos poucos fundadores que se perpetuavam no poder decisório. Eram os grandes capitalistas que investiam os recursos nas empreitadas marítimas mercantis e os nobres das Casas Reais que patrocinavam tais incursões comerciais.

5. Vivia-se a fase aristocrática ou oligarca das sociedades anônimas. Os poucos controladores decidiam os rumos da empresa em reuniões ocasionais. Sequer existiam as assembléias gerais. Mesmo o Código Comercial francês, de 1808, ao regular as sociedades anônimas, olvidou tratar desse órgão social.

6. No nosso país, no mesmo ano de 1808, o estatuto de constituição do Banco do Brasil estabeleceu que o controle dessa instituição caberia aos quarenta maiores capitalistas.

7. Ao longo dos anos, com a disseminação das sociedades e o aumento do número de sócios, a questão da vontade social passa a ser tópico presente na agenda dos debates societários.

8. De início, a maioria dos acionistas adquire o direito de interferir nos assuntos de natureza interna da empresa e, com isso, passa a poder nomear os membros da administração da sociedade. A medida da intervenção era o fim comum de todo contrato de organização: a execução do objeto social.

9. Porém, o direito da maioria de ditar as regras de funcionamento da sociedade não alcançava, nessa época, a possibilidade de alteração da base contratual acordada pelos fundadores.

10. Em outros termos, o estatuto de constituição mantinha-se fiel, ao longo de toda a vida da sociedade, à vontade original dos grandes capitalistas e das Casas Reais.

11. Vê-se, portanto, que a passagem da autoridade majoritária dos aristocratas para a comunidade dos sócios foi objeto de um longo processo de digestão, debates e maturação. Demandou décadas e décadas para que, finalmente, se cristalizasse o princípio efetivamente majoritário que hoje prevalece no direito societário mundial.

12. Foi no ano de 1903 que, na França, a legislação chancela o pressuposto da soberania da assembléia geral. A fase aristocrática dá lugar à democracia social.

13. O interesse egoísta de alguns poucos sócios, enfim, queda-se subjugado pelo interesse da comunidade de acionistas. À maioria é dado o direito de ditar o rumo das atividades sociais e, conseqüentemente, assegura a sobrevida ou a indeterminação do prazo de existência da sociedade.

14. Quero dizer, com a prevalência da maioria permite-se a continuidade da empresa através dos tempos, já que se torna possível ajustar suas regras e seu funcionamento à dinâmica empresarial e às mudanças constantes que ocorrem nos mercados doméstico e internacional.

15. Com efeito, o princípio majoritário prestigia a manutenção das atividades sociais dado que a maioria contemporânea tem autoridade e legitimidade para suprimir e alterar dispositivos estatutários que, importantes no passado, tornaramse inoperantes, desatualizados ou indesejáveis face à nova realidade comercial e econômica.

16. Seja maioria simples ou qualificada, o que importa para a empresa é que um determinado número de participação societária detenha o direito de, quando necessário, ajustar os rumos sociais, por via de deliberação soberana da assembléia geral. Conquanto individuais os votos na assembléia, a união os transforma na voz da sociedade. Tudo isso no pressuposto maior do interesse social.

17. Desse propósito o direito societário não se afasta. E não se afasta porque dele depende a existência e a sobrevivência das sociedades. Trata-se de um imperativo essencial do direito societário. O princípio majoritário impera nas anônimas e há de ser encarado à vista da ratio de seus fins e, não, com a emoção de suas eventuais repercussões. Conquanto a maioria pode não exprimir a maior das justiças, ela é, por certo, a menor das possíveis injustiças.

18. Com efeito, o empreendimento social não permite divagações subjetivas e comoventes, pois seu caráter é puramente lógico e objetivo. Não há unanimidade que faça mover qualquer sociedade, nomeadamente as anônimas, onde o capital se sobrepõe, com vigor e rigor, aos aspectos personalistas dos investidores.

19. A unanimidade é simples quimera em qualquer esfera do relacionamento em sociedade. Impensável pretender que uma organização como as anônimas funcione de forma unânime. Mera utopia. Da mesma forma que seria impraticável submeter toda e qualquer sociedade ao controle da minoria. Pura fantasia. Indesejável ditadura. Daí o direito ter adotado a deliberação majoritária, como a forma mais democrática de deliberação social e como o meio mais adequado de se dar continuidade a um ente importantíssimo para o desenvolvimento das nações. O direito ainda não encontrou fórmula mais justa e democrática de gestão social do que a majoritária.

20. E é com fundamento nesse princípio que se deve enfrentar a questão do alcance da cláusula compromissória estatutária. A maioria domina e dita as regras sociais. A maioria prevalece nas deliberações assembleares. A maioria reflete, por suposto, a vontade da coletividade. A minoria se sujeita à maioria por esta exprimir a manifestação da coletividade social. Trata-se, sem sombra de dúvida, de um suposto democrático. O princípio majoritário é regra inderrogável do direito societário.

21. A análise da ratio majoritária e de sua inderrogabilidade torna-se mais transparente e vigorosa quando posta a sociedade no contexto sócio-econômico em que atua. A moderna anônima tem responsabilidade e deveres face aos seus empregados e a comunidade. Seus fornecedores dela dependem e, não raro, todo o comércio em seu entorno vive e sobrevive das relações com seus funcionários e clientes.

22. No âmbito da cultura e do lazer, a sociedade é fonte de patrocínios e de doações de extrema relevância para a manutenção dessas áreas de política pública. O Balanço Social das empresas a cada dia ganha mais adeptos e já se faz sentir como uma vantagem perante o consumidor.

23. A preservação da empresa é, pois, de suma importância como meio de atingimento do bem estar e da pacificação social. As nações dependem, cada vez mais, dos avanços tecnológicos e dos empregos que as sociedades geram. Dos tributos que pagam e dos recursos que revertem em prol do meio ambiente.

24. E, para que se possa pensar na preservação da empresa, é indispensável que esta se organize e funcione de modo eficaz e democrático. E esses supostos repudiam a ditadura da minoria e a impraticabilidade da unanimidade. Por isso a opção do direito societário mundial pela prevalência da maioria.

25. E sendo essa regra de caráter inderrogável e, conseqüentemente, de ordem pública, há que se aplicar para toda e qualquer deliberação submetida à assembléia geral.[3] Inclusive, àquela que visa alterar o estatuto social para nele introduzir uma cláusula compromissória. O princípio majoritário não comporta exceção onde o legislador não fixou. O ramo do direito é o societário e é, pois, com base nas regras que norteiam essa disciplina que o intérprete deve analisar e ponderar as questões controversas.

26. Note-se que nossa lei societária, ao contrário do que ocorre na Itália, deixou de ressalvar ou de criar certos obstáculos à introdução da arbitragem. O art. 109, parágrafo 3º, da Lei n. 6.404/76 autoriza, e induz, a utilização da arbitragem para a solução das disputas intra-sociais, sem que conste qualquer restrição quanto ao quorum de deliberação ou direito de recesso por parte do acionista descontente.

27. Assim sendo, cumpridas as formalidades legais, a aprovação da inserção de cláusula de arbitragem estatutária vinculará todos os acionistas da companhia. Estejam presentes ou ausentes, ou, mesmo, contrários à deliberação.

28. A assembléia geral exprime a vontade social. Conquanto a deliberação seja aprovada em órgão coletivo, a manifestação que dela resulta expressa a vontade da sociedade como sujeito detentor de direitos e obrigações. Pouco importa se a aprovação se concretiza por deliberação coletiva e com sócios ausentes ou discordantes. O fato jurídico é que a assembléia enuncia manifestação impositiva e una da sociedade. O direito posto confere à assembléia, como órgão da companhia, plenos poderes para exprimir a vontade da sociedade. E essa vontade, ditada sob a égide do direito e das formalidades legais, há de produzir todos os efeitos jurídicos e obrigar aqueles que a ela se vinculam. No caso, toda a comunidade de acionistas estará alcançada pela eficácia da cláusula compromissória estatutária aprovada pela maioria regulamentar.

29. A deliberação assemblear, de acordo com a doutrina, é autêntica manifestação volitiva unilateral, pois, muito embora resulte da coesão de várias vontades, informadas pelo voto, ela resta por expressar vontade de uma única pessoa, a sociedade.

30. Essa deliberação, formada no âmbito de colégio soberano, e que pode ter efeitos modificativos ou constitutivos, é de natureza normativa e, assim, vincula a todos os acionistas e a própria sociedade.

31. Ressalte-se que o acionista, ao se vincular e se submeter à cláusula de arbitragem, e a tantas outras de efeitos constitutivos impostas pela assembléia geral, não está renunciando a um direito e, sim, se sujeitando ao poder da maioria. Em última instância, está se sujeitando à vontade social.

32. Não há, portanto, da parte do acionista o abandono de um direito mas, somente, sua sujeição a um interesse maior. Sujeição essa, conceituada por Carnelutti como, “impotência da vontade para a tutela de um interesse.”[4]

3.3 A VINCULAÇÃO DE TODOS OS ACIONISTAS

1. Essa vinculação subjetiva dos acionistas à cláusula compromissória estatutária opera eficácia legal, pelo fato de a deliberação assemblear que lhe deu causa não violar qualquer norma do direito societário.

2. De modo algum, me parece, a arbitragem pode ser considerada como transgressora do interesse social. Muito ao contrário, tenho que a arbitragem com ele se coaduna e se embrica. Foi vista acima a importância da sociedade para o avanço da civilização. É sabido que sua preservação é fator de constante preocupação dos legisladores e dos juizes. A conservação de suas atividades e, naturalmente, das vantagens e benefícios sociais dela advindos depende, sem dúvida, da harmonia nas suas relações intra-sociais.

3. Empresa, administração e acionistas devem se relacionar da melhor forma possível, a fim de se evitar abalos na consecução dos fins sociais. Conflitos entre majoritário e minoritário, ou entre a empresa e os acionistas resultam em perda de foco da administração, em perda de produtividade dos funcionários, em perda de oportunidades comerciais pela empresa, em desconfiança do mercado e em insegurança dos fornecedores. Uma disputa interna pode levar, no extremo, ao colapso da sociedade.

4. Entretanto, sendo inviável evitar-se os conflitos, então que a estes seja dada a oportunidade de uma resolução rápida e adequada. E é aí que, me parece, a arbitragem surge como um mecanismo eficiente de proteção e de preservação da companhia.

5. A disponibilidade e a especialidade dos árbitros, aliadas a uma agilidade procedimental são fatores determinantes na conservação da estrutura societária. A par dessas vantagens, a verdade é que a decisão arbitral, pela própria opção das partes na (i) utilização dessa via de resolução de conflitos, (ii) escolha das regras procedimentais e, ademais, (iii) indicação do árbitro e (iv) aceitação dos demais membros do painel, atrai para as partes demandantes certa responsabilidade para com o produto final da arbitragem, tornando, dessa forma, mais palatável a decisão que for proferida pelos árbitros.

6. Nenhuma empresa pode, nos dias de hoje, se dar ao luxo de levar toda e qualquer controvérsia ou disputa às barras dos tribunais judiciais. Isso significaria, no âmbito das relações internas, o colapso da empresa e, no âmbito externo, a perda do parceiro comercial, do seu adquirente de produtos e serviços e do seu fornecedor. A intensa competitividade e a necessidade constante de ampliação dos mercados são elementos que, por si só, repudiam esse tipo de conduta. Em outros termos, a existência de controvérsias demanda uma postura mais conciliadora e negocial, mormente nas relações de trato continuado. Demanda boa dose de ponderação de modo a tratar a controvérsia como uma ruptura passageira e momentânea.

7. Tanto é fato que a arbitragem se insere dentre as regras de boa governança corporativa. A BOVESPA, por exemplo, exige que as empresas que buscam melhorar sua imagem junto ao mercado, através da listagem de suas ações no nível 2 do mercado, adotem regras mais amplas de transparência e de melhoria nas relações corporativas, dentre elas, a incorporação da cláusula de arbitragem estatutária.

8. A Comissão de Valores Mobiliários, por seu turno, difundiu, no ano de 2002, uma cartilha com recomendações de práticas de governança corporativa e nela consta a sugestão de se adotar a arbitragem como a via adequada para a solução de conflitos entre a sociedade e acionistas ou entre majoritário e minoritário.

9. Claro está, portanto, que a arbitragem em nada afeta o interesse social e, ao contrário, com ele se coaduna já que preconiza a boa prática de governança corporativa.

10. Do mesmo modo, não vejo onde e como a alteração estatutária que busca introduzir a arbitragem no seio das conturbadas relações intra-sociais possa violar direito patrimonial ou político do acionista.

11. Tratam estes dos direitos de fiscalização, de voto, de participação no acervo social e aos dividendos. A arbitragem, ao contrário, diz com o direito ao amplo acesso à justiça com enfoque, portanto, no campo processual.

12. E não se sustente que a arbitragem feriria o disposto no art. 109, § 2º, da Lei n. 6.404/76, que assegura a todos os acionistas os meios, processos e ações para preservar seus direitos.

13. Ora, a arbitragem não é inconsistente com essa previsão legal. Com a arbitragem o acionista não resta elidido nesse direito natural de todo e qualquer indivíduo. Na arbitragem todas as partes têm assegurado o devido processo legal, sob pena de a decisão arbitral vir a ser anulada. O árbitro deve ser e se manter independente. Deve atuar com imparcialidade e assegurar o contraditório e a ampla defesa. Deve fundamentar sua decisão. O árbitro responde civil e penalmente. Enfim, a jurisdição arbitral se equipara, mutatis mutandis, à jurisdição estatal.

14. Com efeito, seja na justiça comum ou na jurisdição extrajudicial, os acionistas não perdem, ou são desapossados de qualquer direito que a lei societária lhes garante.

3.4. VINCULAÇÃO DOS ADQUIRENTES DE PARTICIPAÇÃO ACIONÁRIA

1. Tampouco se sustentam as afirmativas de que, por se tratar o estatuto social de um contrato aberto, em que os futuros acionistas a ele aderem, seria imperioso uma expressa aceitação da cláusula compromissória, pelo cessionário, para que seus efeitos o alcancem plenamente. Essa condicionante é argüida, a meu ver equivocadamente, em razão do conteúdo do art. 4º, § 2º, da Lei n. 9.307/96 que ressalva a eficácia da cláusula compromissória inserida em contrato de adesão, a uma posterior manifestação do aderente. Posterior e, assim, livre e espontânea.

2. Ora, o contrato de sociedade tem natureza distinta dos típicos contratos de adesão, os quais são o foco da atenção do legislador e das restrições impostas pela lei de arbitragem. Não é o caso das relações existentes entre acionistas e companhia. Os sócios se encontram em posição parelha na sociedade e ao adquirirem as ações têm ciência, por suposto, dos termos e condições que regem a organização e o funcionamento da empresa.

3. Assim como os acionistas não têm a oportunidade, sponte propria, de modificar qualquer das estipulações constantes do estatuto, o mesmo ocorre com o pacto arbitral. Não há como, no direito societário, o sócio ou o adquirente de ações fazer qualquer tipo de reserva quanto à sujeição a determinadas condições estatutárias.

4. Ademais, sabe-se que as restrições de eficácia das cláusulas compromissórias lançadas em contrato de adesão dizem com as típicas contratações da espécie. Dizem com a singularidade dos contratos de massa. Com as cláusulas gerais. Com os contratos de fornecimento de serviços e de produtos. Com os contratos atinentes às relações genuinamente de consumo.

5. Não alcançam tais restrições os peculiares contratos de organização. Estes integram uma esfera distinta da teoria geral dos contratos. Nesses, o cumprimento das obrigações não resulta no término da relação. Ao contrário, é condição essencial para que se inicie a execução do acordo. É premissa indispensável para a consecução do fim comum.

6. Nos contratos de organização, ao reverso dos contratos em geral, o egoísmo individual cede ao interesse da coletividade. O escopo principal é a concretização de um fim que é comum a todos os que integram a relação contratual.

7. Tampouco se sustente a necessidade de aceitação, pelo cessionário, dado o princípio da autonomia da cláusula de arbitragem. Conquanto esse pressuposto seja de caráter universal, no âmbito do direito arbitral (art. 8º, Lei n. 9.307/96), ele não se presta a esse tipo de argumentação, pois sua teleologia aponta, justamente, para a proteção da eficácia da cláusula compromissória. O princípio da autonomia da cláusula de arbitragem, juntamente com o princípio da Kompetenz-Kompetenz (art. 8º, Par. Único,

Lei n. 9.307/96) têm por finalidade a preservação da jurisdição arbitral.

8. Ademais, conquanto autônoma em relação ao contrato em que está inserta, a cláusula se aproveita da instrumentalidade contratual. E se aproveita, exatamente, para proteger sua eficácia e, desse modo, alcançar aqueles que dela procuram se esquivar.

4. A INDISPONIBILIDADE E A ORDEM PÚBLICA SOCIETÁRIA

1. Uma das questões suscitadas por autores que mitigam a amplitude da arbitragem nas controvérsias societárias é a imperatividade da grande maioria das matérias que envolvem as sociedades anônimas.

2. Argumentam esses estudiosos que a dimensão dos dispositivos legais de cunho cogente resta por reduzir, sobremaneira, a possibilidade de se submeter à arbitragem diversos conflitos societários. A ordem pública implicaria na “incompetência” do árbitro para julgar um sem número de disputas atinentes a disciplina do anonimato.

3. Esse entendimento, a meu ver, peca por confundir os conceitos e, conseqüentemente, ao partir de premissa equivocada resta por abraçar uma conclusão alheia ou estranha ao sistema jurídico arbitral. Quero dizer que, conquanto os institutos da indisponibilidade de direitos e da ordem pública se toquem, não se deve, porque não se pode afirmar que convergem em seus efeitos.

4. Na opinião desses estudiosos, a ordem pública encerra uma indisponibilidade do direito e, assim, afasta de todo o uso da arbitragem, uma vez que esta via jurisdicional somente se presta para dirimir matérias de direito patrimonial disponível. Essa assertiva, contudo, não é verdadeira, ou, se preferirem, traduz uma meia verdade. Se é correto afirmar que o direito indisponível não é passível de apreciação pela via arbitral, de outro lado, não é correto sustentar que as questões que envolvem matérias de ordem pública, por si só, afastam a jurisdição extrajudicial.

5. Indisponibilidade e ordem pública são conceitos que se tocam, mas não se confundem. Enquanto a indisponibilidade é elemento intrínseco ao objeto do direito, a ordem pública é elemento extrínseco de resguardo ou proteção do direito. A indisponibilidade afeta a livre circulação – disposição – do direito em si, enquanto a ordem pública cerca o direito com regras preventivas. A indisponibilidade diz com o núcleo, o próprio objeto do direito. A ordem pública não; ela é um arcabouço ou um invólucro jurídico de preservação da identidade do objeto do direito. Enquanto o primeiro não é passível de disposição espontânea, o direito sujeito a regras de ordem

pública pode ser transferido, gravado e alienado livremente, nos limites impostos por tais regras.

6. Nesse sentido, pode-se afirmar, todo direito indisponível é de ordem pública, mas nem toda a ordem pública se insere nas restrições atinentes ao direito indisponível. A disposição ou a regulação do direito indisponível não se insere na esfera da autonomia do seu titular. Ao contrário, o titular de um direito submetido a regras de ordem pública pode dele livremente dispor, independentemente da existência ou não de tais dispositivos de preservação do seu direito. O que lhe é defeso, justamente, é violar a norma de ordem pública que a lei impõe para preservar as relações em sociedade.

7. Enquanto a indisponibilidade afeta diretamente o objeto do direito, retirando do seu titular o poder de autoregulação e de livre disposição, a ordem pública não, é simples regra jurídica de observância obrigatória. Em outras palavras, a ordem pública é previsão legal que deve ser observada quando do trato, pelo julgador, dos conflitos de interesses sujeitos a essa restrição ou proteção.

8. Conseqüentemente, se o direito estiver coberto pelo manto da indisponibilidade, o árbitro não terá jurisdição para apreciá-lo, pois resta resguardada a autoridade exclusiva do Estado, pela manus do Poder Judiciário. Entretanto, se o direito estiver encampado por normas de ordem pública, não há impedimento à atuação da jurisdição arbitral, devendo o árbitro, contudo, observar a aplicação de tais dispositivos.

9. A indisponibilidade subtrai do árbitro a jurisdição, enquanto a ordem pública lhe impõe o dever de observância no julgamento da questão controversa.

10. Destarte, não importa se a disciplina do anonimato contempla diversas regras de ordem pública. Esse fato, per se, não retira do árbitro sua jurisdição. Apenas lhe impõe maior cautela na análise da matéria e na prolação da decisão final. Nem mais. Nem menos.

11. Posta a diferença nos termos ora propostos, pode-se afirmar que a maioria esmagadora das questões societárias são passíveis de solução pela via da arbitragem, estejam ou não sujeitas a dispositivos de cunho imperativo.

  1. Âmbito Jurídico, Rio Grande, n. 47, 30/11/2007 (Internet), disponível em:<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=2372.>CAMPOS, Diogo Leite de; MENDES, Gilmar Ferreira; MARTINS, Ives Gandra da Silva (Coords.) A evolução do direito no século XXI – Estudos em homenagem ao Professor Arnoldo Wald. Coimbra: Almedina, 2007 (Artigo de Livro).
  2. Advogado, Professor e Consultor em Arbitragem.
  3. Ressalte-se que a unanimidade é imposta em situações extremamente excepcionais que não importam para a conclusão do presente estudo.
  4. Teoria Geral do Direito, trad. A. C. Ferreira, São Paulo: Lejus, 1999, p. 290.

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