Pedro A. Batista Martins
1. Não há com negar o sucesso da política governamental no sentido de reduzir a inflação. Segundo os próprios membros da equipe econômica, é possível esperar algo ao redor de 25% no acumulo dos próximos 12 meses. Embora significativa, tal redução deve ser encarada, entretanto, em suas corretas dimensões, para que não se corra o risco de adotar medidas prejudiciais à saúde da economia.
2. A observação é feita a propósito de dispositivo, incluído no projeto de reforma da legislação tributária, que revoga a correção monetária das demonstrações financeiras e veda qualquer tipo de indexação, inclusive para fins societários.
3. De forma a cumprir a sua função como documento informativo para o público que interage com as empresas, as demonstrações financeiras devem refletir a realidade das variações ocorridas nos valores patrimoniais. Se isso não acontece, acionistas não saberão o valor correto de seus investimentos, o produto do capital investido será apurado inadequadamente, o cálculo do Imposto de Renda será distorcido e os membros da administração serão induzidos a erro.
4. Não é por outro motivo que a própria Lei das S.A. estabeleceu critérios para evitar as distorções causadas pela inflação sobre as demonstrações financeiras das companhias, obrigando-as, por exemplo, a considerar os seus efeitos sobre o valor dos elementos do patrimônio e os resultados do exercício. Preserva-se, assim, o valor real do capital social lançado em conta do patrimônio líquido.
5. É pela expressão do capital social que se compatibilizam os anseios dos acionistas e dos credores da sociedade. Calcado nos atributos jurídicos da realidade, da intangibilidade e da unidade, ele deve assegurar, enquanto exista a empresas, os recursos aportados pelos sócios para sua integralização, devendo apenas a eles retornar nos casos de dissolução das sociedade e desde que pago o passivo porventura existente.
6. Por essa razão é que o capital social é chamado de “cifra de retenção”, que, em proteção aos credores, bloqueia a devolução, aos sócios, das parcelas do valor investido e, como um “dique”, veda os esvaziamento do ativo societário pela distribuição aos acionistas, de resultado além do “índice” permitido.
7. Esse instrumento legal propiciou o surgimento das sociedades de responsabilidade limitada, em que a obrigação dos sócios cessa na integralização das participações societárias. Tais recursos, no conjunto, constituem a garantia mínima dos que negociam com a empresa, significando que pelo menos esse valor patrimonial deve ser, permanentemente, retido no ativo da sociedade.
8. Com base nessas premissas foi possível harmonizar o conflito de interesses entre o acionista – que deseja frequente e integral distribuição dos lucros – e o credor – que busca adequada proteção de seus créditos e se preocupa, por consequência, com uma eventual descapitalização predatória da empresa com o fluxo de recursos para seus sócios.
9. Não por outro motivo a legislação procurou estabelecer regras rígidas de proteção ao capital social (avaliação fidedigna dos bens a ele incorporados, proibição de emissão de ações abaixo do valor nominal e de a sociedade negociar os próprios papéis, valor mínimo de realização de capital, reserva legal e oposição dos credores na redução do capital, entre outros mecanismos), o que inclui a obrigatoriedade da correção monetária do capital social realizado e sua consequente capitalização.
10. A correção constitui mera operação aritmética, mas tem destino jurídico dos mais nobres, já que procura manter intacto o princípio da intangibilidade e evitar que meros resultados nominais sejam distribuídos aos sócios – em visível prejuízo dos credores -, sob o errôneo entendimento de que representariam rendimentos ou ganhos reais da empresa.
11. Diante da inflação, a expressão monetária do capital social resulta desatualizada, gerando distribuição de lucros fictícios, anulando a garantia mínima dos credores de sociedade de responsabilidade limitada, pois os recursos investidos pelos sócios – que deveriam se perpetuar no ativo social – retornam às suas mãos por vias indiretas.
12. A simples observação de tais princípios e objetivos leva à forçosa conclusão de que é ilegítima a proposta governamental que extingue a correção além do fato de que, por gerar falso lucro, ela também fere o princípio constitucional da capacidade econômica do contribuinte.
13. Vale lembrar, a propósito, que a Lei 7.730, de 1989, que buscou implantar a mesma sistemática de desindexação das demonstrações financeiras, teve vidas breve, talvez pelo fato de ser considerada crime, na legislação penal, a distribuição de lucros ou dividendos fictícios.