Pedro A. Batista Martins[1]

I. Intróito

Na largada do tema é bom deixar registrado algumas poucas premissas e boas verdades.

Primeiro, a arbitragem não substituirá – nunca – o Poder Judiciário. Muito embora jurisdições que se toquem e se entrelacem, trilham caminhos paralelos com vistas ao fim maior de administração da justiça e pacificação dos litígios. Em suma, guardam elas papel, estrutura e dinâmica próprias.

Segundo, a arbitragem não é a salvação para os males que afligem o Poder Judiciário e, tampouco, tem essa pretensão ou mesmo essa capacidade. Não é a salvação, pois os males que permeiam os sistemas judiciais de que tenho conhecimento – notadamente o Brasil – independem do desenvolvimento e da prática da arbitragem para sua solução. Dizem eles com a falta de recursos, quadro reduzido de pessoal e magistrados, estrutura precária, litigiosidade dos cidadãos e contam ainda, por que não dizer, com certa “criatividade” dos advogados que relutam em admitir o insucesso da causa e, com isso, interpõem uma série de recursos e criam incidentes processuais que avolumam a tarefa do julgador.

Terceiro, a arbitragem não se presta a efetivamente desafogar o Poder Judiciário do excessivo número de processos judiciais, haja vista que, se algumas demandas são levadas à arbitragem, não é parcela de todo expressiva vis-à-vis aquelas encaminhadas aos tribunais estatais. E não se olvide, ademais, que questões arbitrais passaram a ser levadas à decisão dos juízes togados.[2]

Por fim, outra verdade: arbitragem não sobrevive sem o apoio do Poder Judiciário. São duas as circunstâncias que permitem ao empresário escolher o local da sede da arbitragem: a qualidade da lei de arbitragem e o apoio do Poder Judiciário ao instituto, sintetizado em sua jurisprudência. Esses dois aspectos indicam ser tal país “amigo da arbitragem”, ou, sob outra ótica, encerram algo fundamental ao investidor: segurança jurídica.

Enfim, como lembrou Bruno Oppetit, entre arbitragem e Poder Judiciário há uma “dualidade de legitimidade, mas comunhão de ética e de fim; diversidade de vias e meios, mas unidade funcional; paralelismo, mas também convergência”.[3]

Arbitragem e Poder Judiciário são, portanto, vias de realização da justiça que caminham em paralelo e em constante cooperação. Essa colaboração, notadamente conduzida pelos juízes togados, em várias fases da arbitragem, funda-se no fato de que dos cinco elementos que compõem a jurisdição (notio, vocatio, coertio, executio e iurisdictio), ao árbitro não é assegurado os poderes de coerção e execução.

Com efeito, muito embora a arbitragem tenha vida e dinâmica próprias e cunho jurisdicional, com autonomia frente à justiça estatal, técnicas e ritos procedimentais distintos e legítimos, onde os árbitros decidem com força vinculativa, sem necessidade de homologação, e cujos efeitos da sentença equiparam-se àqueles das decisões judiciais – eis aí a “equivalência ou paridade funcional” –, fato é que, ao fim e ao cabo, certas limitações dos árbitros e a possibilidade de exame dos casos de nulidade da sentença arbitral pela justiça estatal conduzem a uma “distribuição da jurisdição” entre o juiz togado e o árbitro.

Considerada essa temática, são vários e de diversas ordens os aspectos da distribuição da jurisdição entre o juiz estatal e o árbitro, da cooperação entre um e outro e dos limites da censura dos atos deste por aquele. Essa temática e essa distribuição regem-se por algumas diretrizes centrais, representadas (a) pelo respeito à vontade das partes que convencionaram a solução de seus litígios por árbitros, com derrogação da jurisdição estatal, (b) pela autonomia da arbitragem, (c) pelas naturais limitações do poder daqueles, o qual não pode chegar ao ponto de impor constrições a pessoas e bens, (d) pela necessidade de obstar os efeitos corrosivos do tempo-inimigo, oferecendo meios para que o sujeito possa obter com a desejável tempestividade uma tutela jurisdicional adequada à situação, e (e) pela garantia constitucional do controle jurisdicional, entendida como promessa de apreciação de litígios e pretensões pelo juiz natural residente no Poder Judiciário.[4]

Essa decantada distribuição da jurisdição com a colaboração, o afastamento e a intervenção da justiça estatal percebe-se, com maior clareza, ao dividirmos em fases a arbitragem: pré-arbitral, arbitral e pós-arbitral.

II. Fase Pré-Arbitral

Essa etapa principia com a assinatura pelas partes da convenção de arbitragem, haja vista os efeitos que se irradiam desse pacto: renúncia à justiça do Estado e submissão dos conflitos oriundos ou relacionados ao contrato à jurisdição extrajudicial. Sem embargo, mantém-se dormente até o surgimento do conflito.

A fase pré-arbitral prolonga-se até a aceitação da nomeação dos árbitros, momento no qual, devidamente constituído o Tribunal Arbitral, exsurge a jurisdição dos árbitros. Note-se que os árbitros somente detêm poderes jurisdicionais a partir do instante em que todos são confirmados. Sob outro ângulo, a aceitação para funcionar no painel não é ato procedimental suficiente a conferir vestes jurisdicionais à pessoa indicada.

Até sua confirmação essa pessoa nada mais é do que mero “árbitro em potencial”; ademais, aceito pelas partes ou confirmado pela instituição arbitral, somente passará a exercer funções jurisdicionais quando o último árbitro for definitivamente confirmado. Em outros termos, os efeitos da cláusula de arbitragem atingem sua completude jurídica no instante em que todo o Tribunal Arbitral é devida e adequadamente confirmado.

Portanto, entre o surgimento do conflito, a instauração da arbitragem e a completa formação do painel – período no qual a jurisdição escolhida ainda não desabrochou -, existem providências que demandam a cooperação do juiz togado, de forma a assegurar a eficácia da cláusula compromissória e, bem assim, a manifestação de vontade das partes.

São providências judiciais típicas dessa etapa que antecede a investidura jurisdicional dos árbitros (1) os provimentos cautelares, (2) os atos judiciais determinando a instituição da arbitragem, inclusive em razão (3) da prevalência do princípio kompetenz-kompetenz.

II.1. Tutelas de urgência

Dada a finalidade de tais medidas – garantir a utilidade e a eficácia da sentença final, pendente de completude jurídica a convenção de arbitragem, compete ao juiz togado decidir o pedido de urgência, sob pena de se denegar acesso à justiça. Esclareça-se, desde já, que, uma vez constituído o Tribunal Arbitral, o provimento judicial pode ser revogado, modificado, concedido ou mantido, tendo em vista que o meio de solução dos conflitos escolhido foi a arbitragem; ou melhor, as partes livremente optaram por retirar da justiça comum a análise e decisão sobre os conflitos resultantes das cláusulas e condições ajustadas contratualmente.

II.2. Imposição de submissão do conflito à arbitragem

Essa situação verifica-se nas hipóteses em que a cláusula compromissória contempla lacunas que não permitem a instauração da arbitragem sem a cooperação judicial. Ocorre com as chamadas cláusulas vazias, notadamente quando não há estipulação sobre a forma de nomeação de árbitros.

A atuação do juiz togado também se faz imperativa para remeter a parte à arbitragem, quando ela busque a justiça estatal ao arrepio do pacto compromissório e, consequentemente, em afronta à boa-fé negocial.

II.3. Prevalência do princípio kompetenz-kompetenz

Como se sabe, a arbitragem funda-se no princípio “competência-competência” que implica na atribuição aos árbitros de examinar e decidir sobre sua própria competência (rectius, jurisdição). Em suma, o árbitro é o primeiro juiz a decidir sobre sua jurisdição. Com isso, obsta-se emulação de partes que vislumbram a possibilidade de se refugiar na justiça estatal, por via de questionamentos sobre a validade ou mesmo existência da convenção de arbitragem. Com a adoção desse princípio aliado ao da autonomia da cláusula compromissória, essas preliminares processuais não devem impedir a instauração da arbitragem.

Abro, no entanto, uma pequena e estreita exceção, exatamente para as hipóteses contempladas no art. II, 3, da Convenção de Nova Iorque.[5]

Os três casos admissíveis – cláusula arbitral nula e sem efeito, inoperante ou inexequível – devem ser avaliados mediante profunda análise no limite do extremo, dado o caráter extraordinário que seus efeitos encerram, qual seja, desconsiderar o princípio universal da kompetenz-kompetenz, um dos pilares do instituto da arbitragem.

Com efeito, ao implicar exceção ao quase absoluto pressuposto da competência-competência, deve ser tratada de forma restritiva e excepcional.

Pode-se afirmar, destarte, não ser amplo ou ilimitado o exame pelo órgão judicial da ocorrência das hipóteses objeto da ressalva em questão. Ao reverso, a análise é adstrita, pois voltada a uma situação jurídica patente à primeira vista. Em outras palavras, há de se demonstrar a alegação de improcedência da sujeição ao rito arbitral com dados e elementos evidentes e convincentes a uma simples mirada. Estamos no campo de uma verossimilhança soberana.[6]

Nula e sem efeito a cláusula compromissória, importa na existência de vícios atinentes à declaração de vontade. São eles, basicamente, a incapacidade do agente, fraude, coação e declaração falsa.

A inoperância implica na efetiva perda de eficácia do pacto compromissório, por força de ato da parte, prática de certo ato ou sua omissão. Resulta, normalmente, de renúncia expressa ou tácita das partes, evidente, por exemplo, quando o aditamento do contrato torne ineficaz ou modifique a vontade anterior das partes, ou pela propositura ações judiciais envolvendo matérias ou questões oriundas do contrato, sem que qualquer das partes tenha arguido a existência de cláusula de arbitragem.

Inexequível é a impossibilidade de se dar curso à arbitragem. Como exemplos, a impossibilidade de o único árbitro pré-indicado e aceito pelas partes exercer a função; inexistência da Câmara Arbitral acordada na convenção de arbitragem; o procedimento de indicação do árbitro é suficientemente falho ou a autoridade escolhida se recusar a nomear os árbitros. Em suma, é a frustação na execução do objeto da cláusula compromissória.

Em resumo, tratam-se de circunstâncias extremas que impedem ou desautorizam a instauração da arbitragem, e cujos vícios que encerram tais hipóteses devem ser manifesto, patente ou flagrante em um exame meramente prima facie.

Observa-se, portanto, que a sistemática da análise limitada pelo Judiciário e da verificação ampla pelos árbitros encarna o espírito de cooperação do juiz togado na fase pré-arbitral aliada à rapidez da solução ictus oculi nessa esfera judicial amparada por uma verificação profunda pelos árbitros, com ampla produção probatória, que, ao final, e de forma também célere, decidirá a questão por meio de uma decisão prévia específica sobre a controvérsia.[7]

III. Fase Arbitral

Confirmada a composição do Tribunal Arbitral, é dos árbitros, e somente deles, o exercício dos poderes jurisdicionais.[8]

Desse modo, investidos da iurisdicto e dado início à fase arbitral, a longa manus do Estado não deve interferir no curso do procedimento, exceto se solicitada pelos árbitros, especificamente para com eles colaborar na imposição das medidas determinadas pelo Tribunal Arbitral. Em síntese, a ausência de poderes coercitivos pelos árbitros demanda a interação arbitragem/justiça estatal de modo a tornar efetiva a resolução do conflito por arbitragem e, portanto, eficaz a vontade das partes.

São exemplos de medidas de apoio judicial o incumprimento por uma parte de provimento cautelar determinado pelos árbitros, a relutância na produção probatória por uma das partes ou mesmo por terceiros e ao comparecimento forçado (sob vara) de testemunha à audiência.

Com efeito, segundo a communis opinio doctorum, durante a fase arbitral o Poder Judiciário torna-se órgão de apoio e cooperação com o Tribunal Arbitral, com a finalidade comum de realização adequada e eficiente da justiça. Há, nessa fase, uma ação harmoniosa do órgão judiciário com o Tribunal Arbitral, em um evidente sistema integrativo das duas jurisdições.

III.1. A questão do Mandado de Segurança

Esse tema tem sido objeto de algum debate na doutrina brasileira, visto tratar-se o mandado de segurança de remédio que visa coibir atos de autoridade que perpetre violação ou ameace transgredir direitos líquidos e certos do cidadão.[9]

Diante de tudo o que se registrou acima, parece inconcebível admitir-se a intervenção estatal no curso da fase arbitral, notadamente para controlar as decisões interlocutórias proferidas pelos árbitros. A rigor, o sistema legal arbitral transfere essa atividade judicial para momento posterior à entrega da tutela jurisdicional e, assim, após o exaurimento da jurisdição dos árbitros.

Em outras palavras, o controle judicial do ato praticado pelos árbitros no curso do procedimento deve, a rigor da sistemática que o instituto encerra, ser implementado através das vias próprias, e quando esgotado o exercício da jurisdição, sejam elas a ação de nulidade ou anulação, exceção de pré-executividade, impugnação à execução de sentença arbitral e outras que se mostrem apropriadas.

Sem embargo, bom que se diga, a se admitir o manejo do mandado de segurança, tal remédio – de caráter excepcional – não deverá ser utilizado de maneira generalizada como forma de combate a qualquer circunstância ou por mera insatisfação da parte com a decisão do Tribunal Arbitral, mas, única e tão somente, em hipóteses manifestamente teratológicas.

IV. Fase Pós-Arbitral

Esgotado o procedimento arbitral, com a entrega da sentença definitiva e eventual decisão sobre embargos arbitrais ou pedidos de esclarecimentos, aí sim, a justiça estatal pode ser chamada a intervir no produto dele resultante, ou seja, reprovar ou não a sentença arbitral.

O caminho é o da ação judicial fundada nas hipóteses estampadas em cada legislação. No entanto, diverge a doutrina quanto à natureza jurídica dessa ação; para alguns, a ação a ser proposta é a de nulidade da sentença arbitral, enquanto para outros, trata-se de ação de anulação.

Em síntese, a ação seria de anulação porque mesmo na presença de vícios de nulidade a decisão produz plenos efeitos, mantendo-se hígida a declaração, a constituição e a condenação que dela resultam, até que venham a ser anulados. Nesse sentir, a ação seria de anulação para obstar a eficácia da sentença arbitral, posto que, ainda com vícios, seus efeitos não cessam até pronunciamento judicial. Conforme a lição de Barbosa Moreira:

No rigor da técnica, diz-se nulo o ato eivado de defeito que, segundo a lei, lhe tolhe desde logo a validade, independentemente de qualquer outro ato – o qual, caso sobrevenha, terá natureza meramente declaratória. Por isso mesmo, se é de verdadeira nulidade que se cuida, o juiz pode (rectius: deve) leva-la em conta, de ofício, “quando conhecer do ato ou dos seus efeitos”, conforme se lê na parte inicial do art. 146, parágrafo único, do Código Civil. Afigura-se impróprio cogitar de providência destinada a “anular” ato “nulo”; “anular” e “tornar nulo”, e não se torna nulo algo que nulo já é. De outro modo, passam-se as coisas se o caso é de simples anulabilidade: o ato anulável precisa ser anulado; e, enquanto não o for, deve ser tratado como se válido fosse. O ato anulatório terá natureza constitutiva. (…)

A observação terminológica não se faz aqui por puro amor à boa técnica. Ela se relaciona com um problema exegético de certa delicadeza. A Lei n. 9.307 adota mecanismo de controla judicial da validade (não da justiça) da sentença arbitral. Enumera no art. 32 oito hipóteses em que, nos termos do caput, a sentença “é nula”; e inclui entre elas, repita-se, a da sentença que “não contiver os requisitos do art. 26”. Todavia, o art. 33 e seus parágrafos regulam uma ação a ser proposta “pela parte interessada”, perante o “órgão do Poder Judiciário competente”, para a “decretação da nulidade”; o § 1º fixa para a propositura o prazo de 90 dais, seguintes ao recebimento da sentença ou de seu aditamento. Embora o texto não o diga, tudo faz crer que se está diante de prazo de decadência, após o qual já não será lícito ao interessado pleitear em juízo a “decretação da nulidade”.(…)

Isso aponta no sentido da mera anulabilidade da sentença. Aliás, se tivermos em mente o fato de que esta gera situação equiparável à da coisa julgada material, ressaltará a analogia entre a ação do art. 33 e a rescisória; ora sentença transitada em julgado, rescindível que seja, não é nula: até que se rescinda, valerá e surtirá efeitos, como se nenhum defeito contivesse. Em semelhante perspectiva, a “decretação da nulidade”, no texto da Lei n. 9.307, melhor se traduzirá por “anulação”. Constitutiva, e não meramente declaratória, será a sentença que acolha o pedido do autor.[10]

Já os que defendem que a medida apropriada é a de nulidade, argumentam que a tese da anulação é peculiar ao campo do direito privado, sendo que arbitragem insere-se na seara do direito público-processual, “onde o ato nulo é ineficaz, até quando desconstituído por decisão judicial. A razão dessa diferença está em que em direito público há uma relação vertical de autoridade e sujeição, e por isso não se concede ao sujeito atingido por ele a capacidade de simplesmente desconsiderar o ato do agente público, sem se sujeitar ao seu cumprimento. Não há nulidades pleno jure em direito público. Em direito púbico há reações de sujeição, sendo esta superiormente definida como impossibilidade de evitar os atos de exercício do poder (Carnelutti).” Enfim, realidade distinta daquela que prevalece no direito privado, onde as partes postam-se em uma relação horizontal, pautada na livre manifestação e autonomia da vontade que não encerram ato de autoridade ou poder de uma parte sobre a outra. “Por isso, em direito privado há a possibilidade de recusar o cumprimento a um ato eivado de nulidade de pleno direito, e no processual sequer existe esse conceito (…) porque os atos do juiz são provimentos, atos imperativos, repugnando ao sistema que possa o particular, mediante seu próprio juízo, refutar a eficácia do comando recebido. A sentença nula produz efeitos apesar disso e só um ato de órgão jurisdicional pode tolher-lhe a eficácia, aplicando-lhe, como se diz, a sanção de nulidade.[11]

De todo modo, o fim a que se destina a intervenção judicial na fase pós-arbitral é o de desautorizar a produção dos efeitos da sentença emanada pelo Tribunal Arbitral. Com efeito, ação de nulidade ou de anulação, fato é que nesse momento exsurge a possibilidade de intervenção do Estado. Essa intervenção, via anulação ou nulidade da sentença arbitral deve, por certo, ser avaliada cum grano salis pelo órgão julgador.

Isso porque, o princípio relevante a considerar é o da preservação da sentença arbitral.[12] Afinal, o painel de árbitros é livremente escolhido pelos demandantes, fundados na confiança que depositam nos indicados, o que implica às Partes um certo grau de responsabilidade – maior do que quando se submetem à jurisdição pública, onde jamais podem indicar o julgador – e o emprego dilatado da boa-fé no manejo da ação de desconstituição dos efeitos da sentença arbitral.

No mesmo sentido, há que se prestigiar o princípio da segurança das relações jurídicas. Ao optarem pela arbitragem, as Partes manifestam a intenção de afastar o Poder Judiciário e de resolver a disputa por uma via não recursal e, via de regra, acatar decisão arbitral. Portanto, atenta contra à segurança jurídica, à boa-fé e à legítima expectativa a busca da intervenção judicial para anular decisão arbitral cujo conteúdo, basicamente, não atende aos interesses da parte perdedora.

Por fim, uma das razões que leva as partes a resolverem o conflito por arbitragem é a sua confidencialidade. Ao apelar para a anulação, essa previsão restará contrariada, exceto se concedido o segredo de justiça.

Por tudo, e outras razões mais, é possível a adoção de medidas punitivas à parte que, por mero descontentamento com a decisão dos árbitros, arvora-se na propositura de ação com vistas à reprovação judicial da sentença, com fundamento em argumentos frívolos, frágeis ou meramente emulativos.

Veja-se, nessa linha de raciocínio, trechos da decisão da Corte de Apelação norte americana, 11º Circuito, de 28.02.2006: “Não existe evidência de que o advogado da Hércules induziu o árbitro a desconsiderar a legislação, e, de fato, Harbert nem mesmo sugeriu que tal tivesse acontecido (…) Não existe, em síntese, evidência de que o árbitro, manifestamente, desconsiderou a lei. A única flagrante desconsideração da lei neste caso é a recusa de Harbert de acatar o entendimento deste Circuito que muito restringe a revisão judicial de decisões arbitrais. (…) A recusa de Harbert em admitir que não há fundamento na lei para desafiar a decisão arbitral gera um custo para a parte com quem Harbert acordou a convenção de arbitragem e, também, para o sistema judicial. Ao litigar no presente caso perante a corte distrital e agora junto a esta Corte, sem adequada base legal, Harbert privou Hércules e o sistema judicial em si dos principais benefícios da arbitragem. Ao invés de reduzir os custos, a resolução da presente disputa tem custado mais do que se não tivesse tido a arbitragem. Ao invés de ter sido resolvida rapidamente, a questão se alonga mais do que se fosse solucionada fora da arbitragem. Ao invés de ter sido resolvida fora da justiça estatal, o conflito tem demandado tempo e esforço desta Corte e da distrital. Quando a parte não vitoriosa na arbitragem assume o posicionamento de nunca aceitá-la e arrasta a discussão pelo sistema judicial sem qualquer fundamentação razoável que lhe faça prevalecer, o acordo de arbitragem resta violado (…) As Cortes não podem evitar que as partes tentem converter a perda arbitral em vitória judicial, mas nós podemos e devemos insistir em que, se a parte logo após a prolação da decisão arbitral questiona esse sentença judicialmente sem razão legal para assim fazer, que a parte, então, sofra sanções. A ameaça real de sanções deve desencorajar as ações de nulidade sem fundamentação e ajudar a cumprir com os propósitos pró-arbitragem contida na lei federal americana. Esta é uma ideia valiosa a ser considerada.”[13]

Em suma, é razoável, justificável e, mais ainda, recomendável que o Poder Judiciário verifique, atentamente, as razões que fundamentam os pedidos de desconstituição dos efeitos da sentença arbitral de modo a impor as penalidades cabíveis à parte emulativa e, com isso, assegurar aos contratantes a plenitude teleológica do pacto expresso na convenção de arbitragem. Enfim, garantir que a manifestação de vontade cristalize, ao fim e ao cabo, o que as partes de boa-fé almejam e legitimamente esperam ao afastar a jurisdição estatal: resolver todos os conflitos oriundos ou relacionados ao contrato por, e unicamente por arbitragem.

  1. Palestra proferida na III Conferência Internacional de Arbitragem, em 20 de outubro de 2014, Luanda, Angola.
  2. No Brasil, conforme estudos do Conselho Nacional de Justiça de 2011 e 2012, o Setor Público Federal, Estadual e Municipal e os bancos públicos respondiam por mais de 60% dos processos acumulados em 31.03.2010 nas Justiças Estadual, Federal e Trabalhista, e por mais de 15% dos processos iniciados em 2011 (mais de 10% na Justiça Comum e mais de 25% nos Juizados Especiais).
  3. “Justice Étatique et Justice Arbitrale”, Etudes offertes à Pierre Bellet. Paris: Litec, 1991, p. 426.
  4. Cândido Dinamarco, A Arbitragem na Teoria Geral do Processo. São Paulo: Malheiros, 2013, pp. 209-210.
  5. Art. II, 3. O tribunal de um Estado signatário, quando de posse de ação sobre matéria com relação à qual as partes tenham estabelecido acordo nos termos do presente artigo [cláusula compromissória], a pedido de uma delas, encaminhará as partes à arbitragem, a menos que constate que tal acordo é nulo e sem efeitos, inoperante ou inexequível. (g.n.)
  6. Pedro A. Batista Martins, “Arbitrabilidade e as Ressalvas constantes do Artigo II (3), da Convenção de Nova Iorque”, Arbitragem comercial internacional: a convenção de Nova Iorque e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 130.
  7. Ibidem pp. 134-135.
  8. Salvo exceção acordada pelas partes, como ocorre em arbitragens internacionais em que tutelas de urgência podem ser obtidas junto a tribunais judiciais de mais de um país.
  9. Nos termos do Art. 1º da Lei n. 12.016, de 07 de agosto de 2009: “Conceder-se-á mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça”.
  10. MOREIRA, José Carlos Barbosa . Estrutura da Sentença Arbitral, coord. MARTINS, Pedro A. Batista; GARCEZ, José Maria Rossani. in: Reflexões sobre arbitragem: in memoriam do Desembargados Cláudio Vianna de Lima, LTr, 2002, pp. 345,347, São Paulo – SP.
  11. Cândido Dinamarco, op. cit., pp. 244-246.
  12. Cf. processo n. 2000.001.137.439-0, Medida Cautelar Inominada e Ação de Rito Ordinário, Doux S/A v. W.M. Empreendimentos Societários Ltda. e Outros, 01.06.2002.
  13. Tradução livre. No original, em inglês: “There is no evidence that the attorney for Hercules urged the arbitrator to disregard the law, and Harbert does not even suggest that happened. (…) There is, in short, no evidence that the arbitrator manifestly disregarded the law. The only manifest disregard of the law evident in this case is Harbert´s refusal to accept the law of this circuit which narrowly circumscribes judicial review of arbitration awards. (…) Harbert’s refusal to accept that there is no basis in the law for attacking the award has come at a cost to the party with whom Harbert has entered into the arbitration agreement and to the judicial system. In litigating this case without good basis through the district court and now through this Court, Harbert has deprived Hercules and the judicial system itself of the principal benefits of arbitration. Instead of costing less, the resolution of this dispute has cost more than it would have had there been no arbitration agreement. Instead of being decided sooner, it has taken longer than it would have to decide the matter without arbitration. Instead of being resolved outside the courts, this dispute has required the time and effort of the district court and this Court. When a party who loses an arbitration award assumes a never-say-die attitude and drags the dispute through the court system without an objectively reasonable belief it will prevail, the promise of arbitration is broken (…) Courts cannot prevent parties from trying to convert arbitration losses into court victories, but it may be that we can and should insist that if a party on the short end of an arbitration award attacks that award in court without any real legal basis for doing so, that party should pay sanctions. A realistic threat of sanctions may discourage baseless litigation over arbitration awards and help fulfill the purposes of the pro-arbitration policy contained in the FAA. It is an idea worth considering” (B.L.Harbert International, LLC vs. Hercules Steel Company, docket n. 04-03255-CV-HS-S).