1. BREVE HISTÓRICO.

A cláusula compromissória, ou mais especificamente sua eficácia, foi o “calcanhar de Aquiles” no desenvolvimento da arbitragem no Brasil. Com a edição do Decreto n. 3.900, no ano de 1867, que tinha por finalidade dispor sobre o instituto no Brasil, seu art. 9º[1] pôs por terra a viabilidade de se instituir processo de arbitragem com base unicamente no pacto compromissório, exigindo, para tanto, a assinatura do chamado compromisso, no momento em que as partes já se encontravam em litígio.

Em outros termos, inserta no contrato uma cláusula de arbitragem e, surgida a controvérsia, sua instituição ficava a depender da manifestação expressa de vontade pelos contratantes em instrumento suplementar, a saber, o compromisso.

Este era, portanto, o único instrumento capaz de conferir eficácia à cláusula arbitral.

A ratio do Decreto n. 3.900/1867 consistia no entendimento de que, antes do surgimento do conflito, não era permitido aos contratantes optar pelo então Juízo Arbitral, pois ainda desconhecido o escopo da controvérsia, circunstância essa que, ao fim e ao cabo, violaria o direito de ação.

Essa regra legal levou juristas de renome como Waldemar Ferreira,[2] Alfredo Bernardes e Eduardo Espínola a irem além do que a realidade legal autorizava ao defenderem que o ajuste compromissório configuraria verdadeiro caput mortum, conquanto, na verdade, consubstanciava uma obrigação de fazer (pactum de contrahendo).

Por seu turno, Clóvis Beviláqua, enquanto consultor jurídico do Ministério das Relações Exteriores, instado a se manifestar sobre o Protocolo de Genebra e a consequente validade da cláusula compromissória em nosso ordenamento jurídico, pouco ou quase nada avançou, admitindo, tão somente, que dita convenção apenas obrigava as partes, mas não ao juiz, verbis:

A matéria do compromisso acha-se regulada, entre nós, pelo Decreto n. 3.900, de 26 de junho de 1867, e pelo Código Civil, arts. 1.037 a 1.048, sem falar nas leis processuais dos Estados. Nem o citado Decreto de 1867, nem o Código Civil, põe em relevo a cláusula compromissória (pactum de contrahendo), de modo que surge a dúvida se esta cláusula tem força de criar impedimento para que o juiz comum possa julgar, quando provocado por uma das partes, ou se é simples expressão da obrigação de fazer, que traça norma tão-somente às partes pactuantes e não aos órgãos do Poder Judiciário.

No meu entender, a verdade está com esta última opinião, porque a função do juiz é de ordem pública, é forma de soberania nacional, que não pode ser impedida, arredada ou modificada por convenção das partes.

Assim, no direito pátrio, a cláusula compromissória é válida, obriga as partes, como qualquer outra cláusula contratual, mas não obriga o juiz”.[3]

Com essa interpretação, aos pactuantes possibilitou-se, no máximo, a inserção de cláusula penal para o caso de inadimplemento da obrigação contratada, qual seja, a submissão da controvérsia ao Juízo Arbitral.

Destarte, frente aos obstáculos postos à inserção efetiva da arbitragem em nosso sistema legal, restou como saída mais adequada a edição de lei específica para dispor sobre o instituto, o que aconteceu em 1996, com a promulgação da Lei n. 9.307/96.

Com a vigência desse diploma legal, superou-se os embaraços que constrangiam os contratantes a optarem pela resolução de seus conflitos por arbitragem, assegurando-se à cláusula arbitral plena eficácia à luz do novo sistema implantado pela referida Lei.

A única exceção se impõe nas hipóteses dos contratos de adesão, na forma do art. 4º,
§ 2º da Lei de Arbitragem,[4] sendo certo, contudo, que, mesmo nesse particular, o pacto arbitral é válido e eficaz, subordinando seus efeitos tão somente à manifestação de vontade do contratante.

Uma vez estabelecida a cláusula compromissória, às partes cabe submeter à arbitragem o conflito que vier a surgir no curso da execução do contrato.[5]

2. NATUREZA PLURILATERAL DA CONVENÇÃO.

Registre-se que a convenção de arbitragem é de natureza consensual e afirma interesses comuns das partes. Não lança direitos contrapostos; ao contrário, o objetivo é de via única. É da índole dos contratos plurilaterais, onde os direitos e as obrigações são voltados para um único e comum objetivo, qual seja, solucionar a controvérsia, futura ou presente, pela via da arbitragem, com a consequente exclusão da jurisdição estatal. Trata-se de modalidade peculiar de contrato e que foge à tradicional normatividade a que se sujeitam os contratos em geral. Esse interesse comum reforça, sobremaneira, a vinculação das partes ao princípio da boa-fé, cientes, ademais, que os efeitos da convenção são de natureza constitutiva.[6]

Nesse sentido, compete às partes, e delas se espera, atendimento aos deveres laterais da boa-fé, nomeadamente o de colaboração quando da execução do pacto compromissório. A confiança, afinal, permeia o negócio jurídico cuja finalidade, reitere-se, é comum a ambas as partes. Assim sendo, torna-se passível de penalização a parte que desarrazoadamente se opõe à produção dos efeitos da cláusula, por marcante traço ilícito na conduta que se verifica após a conclusão do negócio jurídico.

A posição das contratantes ao celebrarem a cláusula compromissória é de partes em colaboração. O que ambas buscam, nesse momento, é criar um mecanismo que seja aplicável à solução de suas controvérsias, se e quando venham a surgir.[7]

Não bastasse isso, a cláusula compromissória deve irradiar lealdade e confiança. Como expõe Eduardo Silva Romero, confiança essa que se põe como princípio irradiador e centrífugo de todo o processo arbitral, e na qual a lealdade é o principal raio. Lealdade que pauta toda gama de relações que podem ser estabelecidas entre as partes, as partes e árbitros, as partes e as instituições e entre os próprios árbitros.[8]

3. EFEITOS E REQUISITOS DO PACTO.

Conforme definição contida no art. 4º da Lei de Arbitragem, “A cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato.

Infere-se dessa regra legal que a cláusula arbitral, uma vez fixada, há de ser cumprida, já que é apta a produzir efeitos jurídicos: positivo e negativo.

Quer-se dizer que cabe ao Judiciário negar curso a processo judicial quando a demandada demonstrar a existência de pacto compromissório (efeito negativo) ou remeter à arbitragem a parte relutante, notadamente nas hipóteses de cláusula “branca” ou “vazia” (efeito positivo).[9]

De outro lado, nada obsta, tampouco, que não se encontre inserta no próprio contrato, podendo constar de “documento apartado que a ele se refira”, nos termos do art. 4º, § 1º, da Lei 9.307/96.

Essas situações afiguram-se quando as partes contratantes decidem, por simplicidade ou para evitar incongruências, reportar-se a cláusulas de arbitragem já existentes em outro contrato a que estejam vinculadas ou, de certo modo, a condições gerais de contratação com pacto compromissório.

A liberdade de as partes se vincularem à cláusula arbitral por mera referência a outro instrumento privilegia a autonomia da vontade e a prevalência do conteúdo sobre a forma.

Conforme aduz Cézar Fiuza, “No mais das vezes, a cláusula compromissória vem inserida em contrato, do qual é parte integrante. Inexiste, porém, empecilho a que seja pactuada em instrumento separado. Em matéria comercial, não seria de se estranhar que, ao invés de estar expressamente inserida em contrato, resulte de menção impressa em letra, em fatura, ou que resulte de condições gerais vigentes em certa praça. (…) Entendo que, desde que indubitavelmente expressa no documento, não há como alegar-se vício de consentimento, não havendo protesto da parte que recebeu o documento”.[10]

Diga-se que não há exigência na Lei 9.307/96 de que o ajuste arbitral esteja assinado, mas sim que venha contemplado por escrito. A expressa previsão da cláusula compromissória é requisito formal de sua validade, nos termos do art. 4º da Lei de Arbitragem. Esse pressuposto norteia várias legislações estrangeiras e convenções internacionais. Difícil provar-se a existência dessa previsão contratual se não contemplada por escrito. Contudo, é de se realçar que, em se tratando de arbitragem cujo reconhecimento ou execução da sentença arbitral sujeitar-se-á à Convenção de Nova Iorque de 1958, entendem alguns que o seu art. II(2) requer, em princípio, que o ajuste arbitral seja assinado.[11] A Lei brasileira, como já referido acima, não erige a assinatura como formalidade para a validade da convenção.

Por seu turno, o art. 1º da Lei 9.307/96 expõe os requisitos essenciais de validade e eficácia da convenção de arbitragem, a saber: deve ser acordada por pessoas capazes (elemento subjetivo) e envolver direitos patrimoniais disponíveis (elemento objetivo).

A questão da capacidade é tratada nos arts. 166 (casos de nulidade) e 171, §§ 3º e 4º (hipóteses de anulabilidade) do Código Civil. Já os direitos disponíveis não se encontram previstos ou conceituados de forma bastante evidente em regras legais próprias.

Afiguram-se os direitos indisponíveis, salvo exceções,[12] como aqueles irmanados à personalidade tida como o conjunto de elementos imanente ao indivíduo ou à pessoa. Podemos citar, entre outros, a honra, a vida, o estado da pessoa e a integridade física. Por suposto, não são direitos passíveis de submissão à arbitragem, dado não comportarem disponibilidade, notadamente por não encerrar natureza econômica ou patrimonial.

Certos atos e contratos da administração, nomeadamente os que envolvem interesse público primário, também se enquadram no conceito jurídico de indisponibilidade, ao contrário dos chamados interesses derivados resultantes de negócios jurídicos nos quais a atuação do Estado resulta de seu poder de gestão.

Diga-se, a rigor, que os direitos indisponíveis não permeiam a vasta maioria das relações cotidianas, e, com certeza, aquelas de origem negocial. Pode-se dizer com isso que a indisponibilidade é regra de exceção no mundo jurídico o que, a contrario sensu, permite enorme difusão da arbitragem como meio de resolução de conflitos. Outrossim, é importante não confundir indisponibilidade com ordem pública. Tudo aquilo que recai na indisponibilidade é de ordem pública, mas o contrário não é verdadeiro para os fins e efeitos do direito arbitral. Equivoca-se quem sustenta que a matéria de ordem pública é inarbitrável. Ao árbitro não é vedado decidir questões que contemplem ordem pública, mas, tão somente, conflitos que tenham por objeto direito indisponível. E, para o direito arbitral, ordem pública e indisponibilidade são institutos distintos que não se comunicam para efeito da exceção de inarbitrabilidade. Tudo o que é indisponível é de ordem pública. Contudo, nem tudo o que é de ordem pública será de cunho indisponível. O árbitro não tem jurisdição para resolver conflitos de direito indisponível. Mas, por certo, tem autoridade e iurisdictio para apreciar e julgar matérias que enfrentem questões de ordem pública. O árbitro não está autorizado, isto sim, a violar normas de ordem pública.[13]

Por fim, vale realçar que a validade da cláusula compromissória não pressupõe que o representante legal da sociedade parte do contrato seja titular de poderes específicos para vincula-la à cláusula compromissória. Não se afigura como condição extravagante ou cuja excepcionalidade pudesse condicionar a prática do ato.

Tampouco quando o contrato é assinado por pessoa cujos poderes foram outorgados por procuração. Desnecessário que o outorgante confira poderes específicos ao outorgado para tal finalidade. A ausência de tais poderes não afeta a eficácia do negócio jurídico encetado na convenção de arbitragem.

Conforme já tivemos a oportunidade de opinar:

“Não creio que, nos dias de hoje, se possa afirmar, convincentemente, que a arbitragem consubstancia um negócio jurídico extraordinário, de efeitos extravagantes e de natureza tão sensível, a ponto de reclamar especial e extrema atenção dos contratantes.

Nada disso. Sabe-se que a arbitragem é o meio de resolução de conflitos mais utilizado no comércio internacional:

É, hoje, a regra nos negócios internacionais e sua previsão tem se mostrado cada vez mais intensa nos contratos de índole doméstica.

A legislação editada no país, na última década, não deixa margem de dúvida quanto a esse entendimento, antes, o afirma.

Veja as leis do petróleo, das telecomunicações, das concessões e permissões de serviços públicos, a de concessão de serviços aquaviários, dos portos e, mais recentemente, a que dispõe sobre as Parcerias
Público – Privada.

Todas admitem ou, mesmo, induzem, a utilização da arbitragem como meio adequado de resolução dos conflitos, notadamente, nas relações em que o próprio Estado é parte.

(…)

Em outras palavras, a arbitragem, com toda a legislação que sucedeu sua revigoração, no ano de 1996, saiu da marginalidade para tornar-se, em certa medida, um negócio jurídico normal, tal qual o ajuste que fixa a eleição de foro nos contratos.

Por sinal, a analogia da eleição de foro com a escolha da arbitragem parece pertinente e razoável dada a finalidade resultante de tais pactos. E não quero crer que a escolha da justiça estrangeira requeira poderes especiais na outorga de procuração.

Da mesma forma que a opção pela via arbitral, regulada e autorizada em lei, não extrapola os limites ordinários de gestão.

(…) [C]reio que a questão dos poderes especiais para o procurador firmar convênio de arbitragem se sustenta em fonte ultrapassada.

A cláusula compromissória não é hoje aquela anomalia concebida e temida nos idos de 1800 e 1900.

A arbitragem já não é mais vista como um negócio atípico que acarreta um encargo relevante para a parte. Não se traduz na assunção de uma obrigação exorbitante e de impacto expressivo no patrimônio da contratante.

(…)

A cláusula de arbitragem, simplesmente, elege uma via de solução de controvérsia que não implica no afastamento do controle do estado.

(…)

A contratação de cláusula de arbitragem é negócio jurídico de efeitos meramente processuais, de pouca ou nenhuma expressão material, e encerra simples eleição de via jurisdicional para a solução de conflitos. Em muito se assemelha à cláusula de eleição de foro.

(…)

Por todos esses motivos, e outros tantos, tenho por desnecessária a outorga de poderes especiais ao procurador que contrata a cláusula de arbitragem em nome do outorgante”.[14]

4. OS PRESSUPOSTOS DO ARTIGO 8º DA LEI 9.307.

A cláusula compromissória, muito embora inserta em um contrato, deste se destaca. Quer-se dizer que o conteúdo jurídico dessa convenção é autônomo dos demais termos e condições estampados no instrumento contratual.

Aparentemente incoerente, na realidade, nada há de contraditório nessa afirmação; afinal, o ajuste compromissório é um contrato em si, um microssistema jurídico que se assenta em um contrato que contempla um objeto distinto daquele ajuste. Em outras palavras, o contrato, de fato e de direito, instrumentaliza convenções e acordos diversos e autônomos entre si.

Essa autonomia autoriza que se aplique às controvérsias atinentes ao conteúdo e alcance da cláusula compromissória direito distinto daquele a que se submetem os conflitos oriundos da outra relação que o mesmo contrato encerra.

Esse princípio – autonomia – resulta no fato de a nulidade do contrato em que o pacto arbitral estiver inserto não implicar, necessariamente, a nulidade da cláusula de arbitragem.

Conforme indica o art. 8º da Lei nº 9.307/96, autônoma a relação jurídica condensada na cláusula compromissória, é o árbitro, consequentemente, o primeiro “juiz” para decidir questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem. Destarte, a alegação de nulidade do contrato não leva, necessariamente, à nulidade do pacto de arbitragem. Esse sobrevive de modo a assegurar aos árbitros jurisdição para decidir sobre o vício do instrumento contratual.[15]

O pressuposto da autonomia aliado ao princípio da competência-competência (kompetenz-kompetenz) expressos no art. 8º são fundamentais para a plena eficácia da cláusula compromissória.

O mesmo conceito aplicado aos vícios contratuais impõe-se à cláusula compromissória. A alegação de invalidade, inexistência ou ineficácia da cláusula compromissória não implica automaticamente a perda de seus efeitos; o que ocorre também quando imperfeita ou ambígua a sua redação.

Havendo estipulação compromissória, a arbitragem deverá ser instituída, mesmo se aparentemente patológica, pois a discussão sobre sua existência, validade e eficácia se processa em sede de arbitragem. O rigor imposto pelo legislador quanto aos efeitos do ajuste arbitral, reforçado pelos princípios da autonomia da cláusula e da “competência-competência”, permite concluir que, mesmo que imperfeita a sua redação (excetuados os casos de manifesta extravagância), ou aparentemente sem qualquer efeito jurídico, a arbitragem deverá ser instituída, haja vista que o debate sobre essas circunstâncias se processa perante o tribunal arbitral.

5. A EXCEÇÃO CONTIDO NO ART. II(3) DA CONVENÇÃO DE NOVA IORQUE

Como vimos acima, o legislador da Lei brasileira de arbitragem, de forma a resgatar a arbitragem do obscurantismo em que se encontrava até então, nomeadamente por força do Decreto n. 3.900/1867 que conferiu à cláusula compromissória a frágil natureza de mero pactum compromittendo, criou sistemática jurídica bastante rigorosa quanto à sua validade e eficácia.

A cláusula é válida até prova – limitada – em contrário, questão essa que deve ser aferida pelos árbitros. Se levada à discussão para o Poder Judiciário, deve o juiz (salvo situação excepcional, como veremos abaixo) extinguir o processo sem julgamento de mérito, à luz do efeito negativo que dela irradia-se.

É, sem dúvida, rigoroso o sistema legal imposto pela lei em proveito da validade e da eficácia do pacto arbitral.

E não se diga que a robustez jurídica favorável à cláusula compromissória resta mitigada com a entrada em vigor da Convenção de Nova Iorque (CNI) em 23.07.2002.

A CNI, notadamente seu art. II(3), não altera a blindagem jurídica que cerca a eficácia da cláusula arbitral assegurada pela Lei n. 9307/96.

A questão que se debate resulta do contido na parte final do referido artigo cujo teor é o que segue: “O tribunal de Estado signatário, quando de posse de ação sobre matéria com relação à qual as partes tenham estabelecido acordo nos termos do presente artigo [cláusula compromissória], a pedido de uma delas, encaminhará as partes à arbitragem, a menos que constate que tal acordo é nulo e sem efeitos, inoperante ou inexequível”.

Veja-se, de antemão, que a regra geral prevista no referido dispositivo é a da validade e eficácia da cláusula compromissória, ao estabelecer que o juiz togado, frente a uma convenção deve (shall, no texto em inglês) remeter as partes à arbitragem.

Destarte, pode-se afirmar que a ressalva feita ao final do referido dispositivo há de ser vista como uma regra excepcional e interpretada à luz do conteúdo de cunho geral.

Prevendo o contrato a resolução de conflito por arbitragem, o juiz estatal extinguirá o processo sem julgamento de mérito, exceto se constatar que a convenção é nula e sem efeitos, inoperante ou inexequível.

Ressalte-se, desde já, que esta exceção ou ressalva contida na CNI não poderá ser interpretada de forma ampla e irrestrita, pois, afinal, o pacta sunt servanda, a autonomia da cláusula compromissória e o princípio kompetenz-kompetenz, aliados à blindagem jurídica impressa na Lei n. 930796, são pressupostos que sustentam o instituto e, por isso, não podem ser olvidados.

À evidência, são ditames e princípios que conferem rigoroso substrato jurídico e legal ao instituto da arbitragem. Por sinal, a própria CNI é clara ao determinar em seu art. II(1) que “cada Estado signatário deverá reconhecer o acordo escrito pelo qual as partes se comprometem a submeter à arbitragem todas as divergências que tenham surgido ou possam vir a surgir entre si no que diz respeito a um relacionamento jurídico definido, seja ele contratual ou não, com relação a uma matéria passível de solução mediante arbitragem”.

Veja-se, por consequência lógica, que a ratio da CNI é a de conferir plenos efeitos ao pacto arbitral e, não, o de mitiga-los.

Nessa toada, pode-se afirmar que o escopo da avaliação pelo juiz togado quanto à nulidade, inoperância e inexequibilidade da convenção é bastante restrito. O raio de verificação é limitado. Isso porque sua atuação encerra um julgamento prima facie da questão suscitada. Volta-se a um dado ou fato patente à primeira vista.

O que a CNI autoriza com a exceção lançada na parte final do art. II(3) é um exame judicial com o fito de apurar antes do início do processo de arbitragem uma situação patente ou manifesta que conduza à adoção da regra excepcional inscrita na parte final do artigo em questão.

Trata-se de uma verificação ex ante de caráter limitado ao critério prima facie, em harmonia com o fato de que, nas fases que antecedem a prolação da sentença arbitral (término da jurisdição dos árbitros), o papel do Poder Judiciário é de cooperação, e não de intervenção. Nem mais; nem menos.

6. VINCULAÇÃO DO CESSIONÁRIO.

Ressalte-se que os efeitos da cláusula arbitral, salvo ressalva, atingem sucessores a título universal e singular. Do mesmo modo, também os cessionários são alcançados pelo conteúdo jurídico dessa convenção.

Nesse particular, o princípio da autonomia, presente nos mais diversos sistemas legais e também no nosso (art. 8º da Lei), não obsta esse efeito de direito. Significa dizer que, muito embora a cláusula arbitral tenha “vida própria”, podendo ser caracterizada como um pacto adjeto, na cessão da posição contratual acompanha ela a mesma sorte do negócio jurídico adquirido pelo cessionário, por força da natureza instrumental do contrato.

No entendimento de Carreira Alvim, apoiado nas lições de Massimo Zaccheo e Rileva Bianca, “Problema da maior importância, na arbitragem, é a questão relativa à transferência do contrato a terceiros, devido ao caráter vinculante da cláusula compromissória. A solução poderia tender no sentido negativo, não só por ser o terceiro estranho à estipulação da cláusula, como, também, por inexistir expressa aceitação dela; mormente quando ela vem pactuada em instrumento apartado. No entanto, a doutrina tende no sentido positivo, em vista da instrumentalidade da cláusula em relação ao contrato, sobretudo do seu caráter unitário, compreensivo da cláusula e do contrato cedido ao terceiro. (…) No que tange à exigência de expressa aceitação pelo terceiro da cláusula compromissória, deve-se considera-la absorvida pela relação (per relacionem) decorrente da aceitação do contrato pelo mesmo. Neste caso, a cláusula compromissória entra em linha de conta, não como um negócio jurídico independente do contrato a que acede, senão como uma cláusula no sentido próprio ou parte de uma complexa regulamentação contratual. A cláusula compromissória se aplica aos compromitentes, e, consequentemente, a quem assume a posição jurídica de um deles, em razão da cessão do contrato, importando na transferência, pelo cedente ao cessionário, dos direitos e obrigações contratuais no seu complexo unitário.[16]

A autonomia da cláusula de arbitragem não pressupõe que a cessão de um contrato implica a necessidade de o cessionário expressar duas vontades, a saber, quanto ao conjunto das regras contratuais e outra específica quanto à cláusula compromissória nele inserida. Com a cessão é de se pressupor que o cessionário aceitou todas as condições e termos nele contidos, exceto na hipótese de expressa ressalva. A vontade não se aperfeiçoa em duplicidade, bastando uma única vontade.[17]

Como já mencionado, embora de natureza autônoma, a cláusula de arbitragem serve-se do caráter instrumental do contrato para vincular seus efeitos ao cessionário que, destarte, ao incorporar a posição contratual do cedente, a ela – arbitragem – também se sujeita.

Como bem salientam Fouchard, Gaillard e Goldman, “It would be inconceivable for an arbitration agreement to be assigned without the assignment of the underlying contract. If it were otherwise, the assigned arbitration agreement would have no object. (…) In other words, the assignee of a contract who enjoys the benefit of the rights assigned cannot avoid the application of the arbitration clause contained in that contract. No specific acceptance is required from the assignee. Rather, an express provision is required to exclude the arbitration clause from the assignment of the main contract.[18]

Também nas cessões de participações acionárias cuja sociedade emitente contemple, em seus estatutos sociais, cláusula de arbitragem, o adquirente das ações estará vinculado aos efeitos e ao alcance do referido dispositivo estatutário, do mesmo modo que o acionista cedente, pouco importando se este ou outros titulares de ações (i) tenham votado contrariamente à sua inclusão, (ii) não tenham comparecido à assembleia ou, (iii) se dela participaram, manifestaram conduta neutra, abstendo-se.

Do mesmo modo, também irrelevante a aceitação expressa do adquirente de participação acionária para sua vinculação e sujeição aos efeitos da convenção de arbitragem contida nos estatutos sociais da companhia. Uma vez que a aquisição de ações de companhias pressupõe o prévio conhecimento do estatuto social e, sendo sua consequência jurídica a subordinação do novo titular da participação acionária a todos os seus termos e condições, não há como o cessionário ressalvar ou se esquivar de qualquer das regras nele contidas. Ou muito bem se sujeita ao todo estatutário ou muito bem não adquire as ações da sociedade. Não há meio termo.

7. A REDAÇÃO DA CLÁUSULA.

Por se tratar de negócio jurídico que afasta o usual julgamento do conflito pelo Poder Judiciário, é recomendável que as partes deem especial atenção à redação da cláusula de arbitragem.

A convenção arbitral é alcunhada de midnight clause por não raro ser a última das condições acordada e integrada ao contrato. Essa particularidade deve ser revista sob pena de a sua execução afetar, até mesmo, a equação econômico-financeira da transação. Destarte é recomendável que o pacto imprima de maneira clara o seu conteúdo jurídico, de modo a que seu cumprimento independa de maiores esforços pelo interessado. A adoção de regulamentos de câmaras ou centros de prestígio facilitam sobremaneira a submissão célere do conflito à análise dos árbitros, não olvidando as partes, contudo, de verificarem os dispositivos do regulamento incorporado por referência.

Importante, principalmente, a forma e o procedimento de indicação de árbitro na hipótese da relutância da outra parte em fazê-lo. Regras sobre o processamento de arbitragens multipartes e a consolidação de procedimentos também podem ser relevantes.

Deixando as partes, no entanto, de desenhar o procedimento aplicável ao conflito, essa circunstância não implicará a ineficácia da cláusula compromissória. Tratando-se de convenção em que tão somente remete os potenciais conflitos à solução por arbitragem (cláusula compromissória vazia ou branca), essa terá curso, mas dependerá, para tanto, da colaboração das partes. O art. 6º da Lei de Arbitragem indica o caminho a ser amigavelmente percorrido e que antecederá a instituição da arbitragem.[19]

Ausente a cooperação de uma das partes fato esse que poderá redundar em penalidade , o art. 7º indica o passo subsequente a ser adotado pela parte adimplente de modo a dar início ao procedimento.[20]

Contudo, a redação da cláusula pode encerrar imperfeição, contradição ou dubiedade. Nesses casos, há de ser dada interpretação ao seu conteúdo e à vontade das partes, à luz, se necessário, da sistemática contratual.

Estamos na seara das cláusulas patológicas ou doentes, cuja implementação demandará debates e, portanto, certa insegurança jurídica quanto a sua validade e/ou eficácia.

Essas cláusulas podem ser classificadas como cláusulas arbitrais (i) inválidas ou (ii) suscetíveis de validade. As primeiras são cláusulas redigidas de tal forma incongruente, que da leitura não se pode aferir tratar-se de cláusula compromissória, tais como quando, apesar de receber a denominação de cláusula arbitral, preveja procedimento que mais se assemelha à conciliação ou à mediação, bem como quando estabelece, na verdade, uma avaliação pericial. Cláusulas assim redigidas não permitem que se infira que as partes elegeram a arbitragem para solucionar a controvérsia existente e serão consideradas nulas e de nenhum efeito no que concerne à instância arbitral.[21]

Já as ditas cláusulas suscetíveis de validação são aquelas que apresentam imperfeições ou ambiguidades cuja análise mais detalhada e a sistemática que dela se extrai permitem ao intérprete apontá-las como válidas e eficazes para os fins a que se destinam. Pactos que remetem as partes à arbitragem e também ao juízo comum, os que indicam a denominação equivocada da câmara e outros tantos com imperfeições ou contradições podem ter sua validade e eficácia confirmadas, de modo a produzirem os efeitos jurídicos que dela se extraem.

O intérprete na análise desses pactos deve levar em consideração que, na dúvida, o fiel da balança há de pender para a resolução da disputa por arbitragem. Na dúvida, pró-arbitragem.

Importante, ainda, salientar que situação complexa surge nos contratos de grande envergadura, onde costumeiramente ocorrem subcontratações na prestação de serviços e de fornecimento de equipamentos, dentre outras relações negociais. Com a diversidade de circunstâncias jurídicas e a existência de vários ajustes e acordos paralelos ao contrato principal, é necessária a igualdade das cláusulas arbitrais, e que se harmonizem nos acordos irradiados daquele principal, de modo a homogeneizar o procedimento, com regras harmônicas e, sendo o caso, tribunal único.[22]

Pedro A. Batista Martins

  1. Segundo esse dispositivo, “a cláusula de compromisso, sem a nomeação dos árbitros, ou relativa a questões eventuais, não vale senão como promessa e fica dependente para sua perfeição e execução de novo e especial acordo das partes, não só sobre os requisitos do art. 8º, senão também sobre as declarações do art. 10º”.
  2. De acordo com esse autor, “A cláusula compromissória, nos termos em que costuma ser exarada nos contractos, é inteiramente inócua, inútil, sem força obrigatória. Constitui verdadeira anomalia que os formulários consagram, e que os fazedores de contractos foram respeitando como cousa antiga e veneranda” (Apud Álvaro Mendes Pimentel, in Da Cláusula Compromissória no Direito Brasileiro, Rio de Janeiro, Typ. Jornal do Commércio, 1934, p. 17).
  3. Aspectos Jurídicos da Arbitragem Comercial no Brasil, Pedro A. Batista Martins, Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1990, pp. 46/47.
  4. Art. 4º, §2º. “Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”.
  5. Cf. arts. 3º a 8º da Lei n. 9.307/96.
  6. Ibidem.
  7. Cláusula Compromissória como Negócio Jurídico: Análise de sua Existência, Validade e Eficácia, Giovanni Ettore Nanni, in Temas Relevantes do Direito Civil Contemporâneo: reflexões sobre os 10 anos do Código Civil. Renan Lotufo; Giovanni Ettore Nanni; Fernando Rodrigues Martins (coords). São Paulo, Atlas, 2012, p. 509.
  8. Ibidem.
  9. Cf. arts. 6º e 7º da Lei n. 9.307/96.
  10. Teoria Geral da Arbitragem, Belo Horizonte, Del Rey, 1995, pp. 111/112.
  11. Cf. International Commercial Arbitration, Philippe Fouchard, Emmanuel Gaillard e Berthold Goldman, Kluwer, The Hague, 1999, pp.273/277 e Comparative International Commercial Arbitration, Julian Lew, Loukas Mistelis e Stefan Kröll, Kluwer, The Hague, 2003, p. 113/115.
  12. Por exemplo, situações jurídicas envolvendo herança; certas questões de direito tributário.
  13. Apontamentos sobre a Lei de Arbitragem, Rio de Janeiro, Forense, 2008, p. 4.
  14. Parecer, in Revista de Arbitragem e Mediação. São Paulo, Revista dos Tribunais, ano 2, n. 7, out./dez. 2005, pp. 174/187.
  15. Tratado Geral de Arbitragem interna, Belo Horizonte, Mandamentos, 2000, pp. 238/239. De acordo com Julian Lew, Loukas Mistelis e Stefan Kröll, “Parties are generally free to assign their contractual rights to a third party. Where those rights are covered by an arbitration agreement the prevailing view in international arbitration is that the assignee automatically becomes a party to the arbitration agreement. Courts in various countries, such as France, England, Sweden and Germany, have consistently held that the assignee can sue and be sued under the arbitration agreement. (…) The reason for this automatic assignment is that arbitration agreement is not personal covenants but form part of the economic value of the assigned substantive right.” (op. cit., pp. 147/148). Ressalte-se que há exceções à regra.
  16. De acordo com decisão da Suprema Corte sueca, “In support of the fact that the new party should be bound, it was argued that in the reverse case the remaining party would have its position substantially altered. It must be assumed that the remaining party – as well as the other original contractor – wanted their disputes to be resolved by arbitration. The original contract should not therefore be able to unilaterally free itself from the arbitration clause by a contract assignment. If the purchaser does not agree to the arbitration clause, it can always refuse to acquire the assignor’s right.” (Fouchard, Gaillard e Goldman, op. cit., pp. 428/429).
  17. Fouchard, Gaillard e Goldman, op. cit., pp. 427-428.
  18. Art. 6º “Não havendo acordo prévio sobre a forma de instituir a arbitragem, a parte interessada manifestará à outra parte sua intenção de dar início à arbitragem, por via postal ou por outro meio qualquer de comunicação, mediante comprovação de recebimento, convocando-a para, em dia, hora e local certos, firmar o compromisso arbitral.Parágrafo único. Não comparecendo a parte convocada ou, comparecendo, recusar-se a firmar o compromisso arbitral, poderá a outra parte propor a demanda de que trata o art. 7º desta Lei, perante o órgão do Poder Judiciário a que, originariamente, tocaria o julgamento da causa”.
  19. Art. 7º. “Existindo cláusula compromissória e havendo resistência quanto à instituição da arbitragem, poderá a parte interessada requerer a citação da outra parte para comparecer em juízo a fim de lavrar-se o compromisso, designando o juiz audiência especial para tal fim.

    § 1º O autor indicará, com precisão, o objeto da arbitragem, instruindo o pedido com o documento que contiver a cláusula compromissória.

    § 2º Comparecendo as partes à audiência, o juiz tentará, previamente, a conciliação acerca do litígio. Não obtendo sucesso, tentará o juiz conduzir as partes à celebração, de comum acordo, do compromisso arbitral.

    § 3º Não concordando as partes sobre os termos do compromisso, decidirá o juiz, após ouvir o réu, sobre seu conteúdo, na própria audiência ou no prazo de dez dias, respeitadas as disposições da cláusula compromissória e atendendo ao disposto nos arts. 10 e 21, § 2º, desta Lei.

    § 4º Se a cláusula compromissória nada dispuser sobre a nomeação de árbitros, caberá ao juiz, ouvidas as partes, estatuir a respeito, podendo nomear árbitro único para a solução do litígio.

    § 5º A ausência do autor, sem justo motivo, à audiência designada para a lavratura do compromisso arbitral, importará a extinção do processo sem julgamento de mérito.

    § 6º Não comparecendo o réu à audiência, caberá ao juiz, ouvido o autor, estatuir a respeito do conteúdo do compromisso, nomeando árbitro único.

    § 7º A sentença que julgar procedente o pedido valerá como compromisso arbitral”.

  20. Selma Lemes, Cláusulas Arbitrais Ambíguas ou Contraditórias e a Interpretação da Vontade das Partes, in Reflexões sobre Arbitragem: in memoriam do Desembargador Cláudio Vianna de Lima, Pedro A. Batista Martins; José Maria Rossani Garcez (coords.), São Paulo, LTr, 2002, p. 189.
  21. Cláusula Compromissória, in Aspectos Fundamentais da Lei de Arbitragem, Pedro A. Batista Martins, Selma Ferreira Lemes, Carlos Alberto Carmona, Rio de Janeiro, Forense, 1999, p. 220.