Selma Ferreira Lemes Carlos Alberto Carmona Pedro Batista Martins
No próximo ano, a Lei de Arbitragem, Lei n. 9.307/96, completará 30 anos de vigência. Para uma quase balzaquiana, traçar seu histórico, seja na forma de um livro, seja na de uma peça de teatro, permite percorrer seu roteiro em capítulos representados por seus atores.
1º Capítulo – Lei de Arbitragem
No dia 23 de setembro de 1996, nasce a Lei de Arbitragem (“Lei”), com uma estrutura singela – 44 artigos -, que levou mais de quatro anos de gestação legislativa. Foi pelas mãos do então Senador e, posteriormente, Vice-Presidente da República Marco Antônio Maciel, autor do Projeto de Lei no Senado, e de Petrônio R. Muniz, que travamos no Congresso Nacional o bom combate.
A simplicidade da Lei desde cedo se fez notar por sua ampla absorção do princípio da autonomia privada, da flexibilidade procedimental, da faculdade de indicar árbitros (as), escolha da lei aplicável, eficácia imediata da sentença arbitral e o respeito aos princípios do devido processo legal. A oxigenação produzida neste mecanismo adequado de solução de controvérsias, que sempre esteve presente no ordenamento jurídico brasileiro, se fez sentir como fênix: saiu das cinzas para renascer à luz do sol.
No início, foi necessário desbravar o desconhecido e explicar o que a Lei trazia de novo, deixando claro que a chave para entender a arbitragem era tratá-la como um microssistema, com princípios e conceitos próprios, que se distanciavam das regras do Código de Processo Civil. A Lei tomou como base legislações forâneas e a Lei Modelo da UNCITRAL (Comissão da Organização das Nações Unidas para o Desenvolvimento do Direito Comercial Internacional).
2º Capítulo – Envolvimento da Academia
Não tardou para que a Academia aderisse em peso à iniciativa, com a inserção da disciplina de arbitragem nas grades curriculares dos cursos jurídicos e, com ela, a mediação, bem como o conjunto de métodos adequados de solução de controvérsias. O resultado desta iniciativa projetou-se na ampla produção acadêmica, com trabalhos de conclusão de curso de graduação (“TCC’s”), dissertações de mestrado e teses doutorais, que repercutiram rapidamente em publicações jurídicas, em seminários e congressos.
O entusiasmo dos (as) estudantes foi contagiante e as participações em competições de arbitragem contribuíram para que descobrissem a importância da oralidade nas audiências, a objetividade e o poder de síntese na elaboração das peças processuais. Muitos (as) dos (as) advogados (as) que hoje atuam em arbitragens se formaram nessa escola, atestando profissionalismo e eficiência.
3º Capítulo – Poder Judiciário
A Lei passou pelo teste de constitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (“STF”), por força de incidente de inconstitucionalidade no bojo do reconhecimento de uma sentença arbitral estrangeira (SEC n. 5206-7), durante sua vacatio legis. Nela se discutia a constitucionalidade de alguns de seus artigos. Em dezembro de 2001, em julgamento por maioria, ratificou-se a constitucionalidade integral da Lei que, a partir de então, passou a ser aplicada de forma ampla. Pode-se dizer que, após o aval do STF, vivenciamos uma revolução silenciosa na forma da prestação jurisdicional.
Nessa construção, o Poder Judiciário reafirmou a importância da arbitragem e ratificou seus princípios e conceitos, especialmente depois que o STJ assumiu a competência para gerenciar o reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras. A colaboração se inicia na fase pré-arbitral, durante a arbitragem ou na fase de execução da sentença arbitral. Também desempenhando papel corretor de desvios na sua aplicação, que felizmente são ínfimos, como demonstram as pesquisas realizadas pelo CBAr, no que concerne às ações de anulação de sentença arbitral.
Em 2021, na II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios promovida pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho de Justiça Federal (“CJF”) em Brasília, seu relatório salientou a necessidade da ressignificação do papel do Judiciário na sociedade contemporânea e a priorização do protagonismo da atuação estatal para determinadas espécies de litígios. Mencionou a necessidade de se difundir amplamente na sociedade os métodos adequados de solução de conflitos e ressalta sua importância na evolução do Direito, pois se franqueia o acesso à Justiça, mas ela é lenta e há a necessidade de entregar à sociedade formas mais eficientes de solução pacífica de conflitos.
4º Capítulo – Reforma da Lei de Arbitragem
Em 2015, por meio da Lei n. 13.129, a Lei foi alterada para introduzir em seu texto matérias consolidadas pela jurisprudência, bem como para disciplinar novos temas, como a carta arbitral, a previsão da prescrição e a participação da Administração Pública na arbitragem, com a previsão expressa da autorização da solução de conflitos por arbitragem nos contratos públicos.
Após a atualização da Lei, o setor público passou a ser um dos maiores players da arbitragem, como apontam as estatísticas das mais importantes câmaras e centros de arbitragem do Brasil.
5º Capítulo – Advogados (as)
A ampliação no mercado de trabalho para os (as) advogados (as) foi enorme, abrindo-se as portas da arbitragem para solucionar questões referentes a direitos patrimoniais disponíveis. Os (as) advogados (as) passaram a oferecer a seus clientes mais uma opção para resolver disputas, especialmente comerciais e societárias, a ponto de não se verificar mais no mercado acordos de acionistas sofisticados sem previsão de arbitragem. Idêntica situação se verifica com contratos de construção mais requintados ou com disputas entre acionistas, especialmente de companhias que procuram um selo de governança corporativa.
Ademais, são os (as) advogados (as) que, preponderantemente, exercem as funções de árbitros (as) e compõem tribunais arbitrais.
6º Capítulo – A Instituição do Comitê Brasileiro de Arbitragem – CBAr
Em 2001, foi criado o CBAr como instituição difusora da prática arbitral, nos moldes do célebre Comitê Francês de Arbitragem. Desde então, o CBAr passou a ser o representante científico da arbitragem brasileira, atuando em prol da correta aplicação do instituto. Seu Congresso anual congrega o mundo jurídico da arbitragem nacional e internacional. A Revista Brasileira de Arbitragem, veiculada de forma impressa e digitaltem difusão mundial por meio da plataforma Kluwer. Possui comissões técnicas que estudam a arbitragem sob diversas óticas e atua intensamente no acompanhamento de projetos de lei que tangenciam a arbitragem.
7º Capítulo – Instituições Arbitrais
Fortaleceram-se, na última década, as grandes Câmaras de Arbitragem, importantes impulsionadoras da prática arbitral, com regulamentos que facilitam o procedimento arbitral permitindo que as partes, ao elegerem a Câmara, conheçam desde logo as regras a serem seguidas. Mais que isso, os centros de arbitragem, com seus modernos hearing centers, fornecem suporte operacional com instalações adequadas e corpo técnico especializado.
Digno de nota é o papel que tais instituições exercem na autorregulamentação da arbitragem, publicando códigos de ética e aprimorando os questionários de árbitros (as). Atentas às demandas da prática arbitral, atualizam seus regulamentos de arbitragem e estabelecem regras para a arbitragem expedita, árbitro de emergência e produção autônoma de prova. Como se isso não bastasse, estas mesmas instituições providenciam normas para regular dispute boards e procedimentos de mediação.
Atenta ao potencial do desenvolvimento da arbitragem no Brasil, a CCI, em 2017, escolheu São Paulo para instalar seu terceiro escritório fora de Paris, depois de Nova Iorque e Hong Kong. A experiência do Brasil tem sido estudada como um modelo para a expansão da arbitragem em outras regiões na Asia e na África.
Saliente-se que, em 2025, o Brasil, nas estatísticas das arbitragens CCI, representou o segundo país no mundo em números de arbitragens, depois dos Estados Unidos.
8º Capítulo – Arbitragem Setorial
A arbitragem passou a fazer parte do universo trabalhista a partir de 2017, com a alteração no art. 507-A da CLT. Na área do Desporte, por meio do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (“CBMA”) com regulamento específico, passou-se a solucionar controvérsias desportivas no Brasil, em vez de serem remetidas para o Tribunal Arbitral do Esporte (“TAS”), na Suíça. O mesmo pode ser dito sobre a solução de controvérsias no campo da comercialização de energia elétrica e no âmbito das companhias integrantes do Novo Mercado.
9º Capítulo – Imprensa e Mídia
O Jornal Valor Econômico, desde o início da vigência da Lei, quando a matéria era pouco abordada na imprensa, teve a iniciativa, já em 2003, de publicar uma série de 10 artigos que tratavam do uso da arbitragem, em diversos matizes, durante um mês. A repercussão foi imensa, sendo que, no Congresso Nacional, a Comissão Parlamentar do Mercosul passou a divulgar referidos artigos na forma de apostila, numa clara demonstração da importância da matéria.
O conhecido Migalhas também tem se dedicado a divulgar uma grande quantidade de artigos e comentários sobre a matéria. Revistas periódicas (físicas e digitais) foram criadas para recolher artigos científicos e comentários sobre a arbitragem.
Em tempos de mídia moderna, o Canal Arbitragem constitui um veículo admirável de difusão da arbitragem, ultrapassando os lindes nacionais, organizando encontros e seminários de arbitragem, bem como propiciando ampla programação científica disponível na internet.
10º Capítulo – Pessoas jurídicas e físicas (partes no procedimento arbitral)
O empresariado nacional prontamente percebeu que a opção pela arbitragem para contratos de médio e grande porte e de matérias complexas contribuía para a realização de seus negócios com economia nos custos de transação. Passaram a prestigiar o instituto, elegendo-o em seus contratos.
Conclusão
O que se pode concluir dos capítulos reproduzidos, percorrendo a caminhada da construção da arbitragem no Brasil por seus atores, é que a sociedade brasileira – todos e cada um à sua maneira -, contribuiu e contribui para este exitoso resultado.
Ao mesmo tempo, temos que estar alertas para não permitir que atitudes hostis ou casuísticas prejudiquem o que foi construído.
Oxalá possamos continuar a ser protagonistas dessa história de cidadania participativa. |