1. INTRODUÇÃO.

Não é sem razão o debate que se trava em torno da justiça desportiva, notadamente sobre o alcance e o efeito das decisões exaradas por seus tribunais na solução das controvérsias relacionadas ou oriundas das várias modalidades esportivas.

No cerne dessa discussão desponta o problema fundamental, qual seja, a natureza jurídica da atividade dos órgãos de resolução de conflitos desportivos.

O presente estudo centrará foco na justiça aplicada aos conflitos gerados na área do futebol, esporte maior do nosso país e, especificamente, das controvérsias submetidas à jurisdição da Corte Esportiva de Arbitragem, mundialmente conhecida como Court of Arbitration for Sports e, para fins deste artigo, doravante denominada, simplesmente, CAS. A Cas é uma instituição de arbitragem independente, baseada em Lausanne, Suíça.

2. A SUJEIÇÃO DO CONFLITO À CAS.

Inicialmente, cabe mencionar que as regras gerais aplicáveis à CAS encontram-se ordenadas nos artigos 59 à 61 dos Estatutos FIFA.

Segundo o art. 59, a FIFA deve assegurar uma opção recursal à CAS, para resolver qualquer conflito entre a FIFA, as Confederações, Membros, Ligas, Clubes, Jogadores, Autoridades e Agentes Licenciados de jogo e Jogadores (em conjunto, “Partes”).

O procedimento arbitral envolvendo as Partes serão regulados pelas regras da CAS, cabendo a esta aplicar, no que toca ao direito substantivo, os vários regulamentos FIFA ou, se for o caso, os regulamentos das Federações, dos Membros, das Ligas e Clubes e, adicionalmente, a lei suíça.

Somente a Corte Esportiva de Arbitragem, como última instância, terá legitimidade para conhecer dos recursos contra decisões e sanções de natureza disciplinar, após o esgotamento de todas as apelações junto à FIFA, à Confederação, aos Membros ou à Liga.

No entanto, a CAS não conhecerá dos recursos que tratem de violações às regras do jogo, à suspensão por quatro jogos, ou até três meses, e à decisões exaradas por um tribunal arbitral independente e legitimamente constituído no âmbito de uma Associação ou Confederação. No Brasil, registre-se, esse tribunal arbitral não foi constituído, valendo como instância de resolução de disputas atinentes ao futebol a Justiça Desportiva que, no Brasil, encontra-se legitimada em sede constitucional, nos termos do art. 217, da Constituição Federal.

De conformidade com o artigo 61 do Estatuto FIFA, as Confederações, as Ligas e os Membros se obrigam a reconhecer a CAS como uma autoridade judicial independente 1 e a assegurar que suas autoridades, jogadores afiliados e membros cumpram as decisões proferidas no âmbito dessa Corte Desportiva.

Recursos à justiça comum são proibidos, exceto se previstos no regulamento FIFA. Neste particular, as questões passíveis de submissão à jurisidição ordinária se resumem àquelas oriundas das relações de trabalho.

Para o fim de assegurar a proibição mencionada, deverão as Associações inserir em seus estatutos uma cláusula vedando os clubes e membros de buscar a justiça estatal e, consequentemente, obrigando-as a submeter qualquer desavença à jurisdição da Associação, da correspondente Confederação ou da FIFA.

No caso brasileiro 2, a Federação de Futebol do Rio de Janeiro, tomada como exemplo aplicável às demais Federações 3, contempla em seu estatuto, as seguintes disposições:

Art. 71. As leis da Federação obrigam a todas as pessoas físicas ou jurídicas a ela direta ou indiretamente vinculadas, a partir da data de sua publicação no Boletim Oficial.

Art. 72. São leis da Federação, além deste Estatuto, os Códigos, Regulamentos, Regimentos e demais preceitos regularmente emanados dos Poderes e órgãos competentes.

Art. 73. Além das dipsoições da Legislação Federal do Desporto e das Leis Federais subsequentes, relativas à organização desportiva do País, serão obrigatoriamentecumpridas pela Federação, e suas filiadas, como parte integrante de sua legislação, as Deliberações e Resoluções da C.B.F., expedidas no uso das atribuições que lhes são próprias.

………….

Art. 74. Além dos Códigos elaboradospela C.B.F., órgãos e instituições Superiores do Futebol e do Desporto, disciplinares da organização, competência, jurisdição e funcionamento da Justiça Desportiva, a Federação adotará um Regulamento Geral, aprovado pela Assembléia Geral, contendo processos de registro, inscrição e transferência de atletas, de formação dos selecionados e das condições materiais, bem como, de técnicas necessárias ao exercício adequado das atividades esportivas na órbita estadual, além do já previsto neste Estatuto.

…………..

Art. 97. Omissis

………….

Parágrafo Segundo. Além das leis, as resoluções da C.B.F. serão cumpridas pela Federação e suas filiadas, obrigando a reforma deste Estatuto, quando conflitante com qualquer de seus dispositivos, mas de cumprimento imediato.

Com efeito, impera no mundo jurídico do desporto futebolístico um sistema de normas que vincula as Federações de Futebol às regras emanadas pela CBF e por outros órgãos e instituições superiores de futebol. Nesse sistema encontra-se introduzido mecanismo específico de solução dos conflitos relacionados a essa modalidade de esporte.

Dada a amplitude do mundo do futebol e das várias dezenas de países cujas respectivas confederações são associadas à FIFA, não se há de negar a propriedade de se fixar um sistema normativo de resolução de conflitos para as controvérsias atinentes a essa prática esportiva.

Afinal, existem, hoje, 205 países filiados à FIFA (mais que os 191 filiados à ONU) e o mercado movimenta, em média, US$ 300 bilhões/ano, o que corresponde ao PIB da Argentina. 4

  • surpreendente o número de países onde o futebol se pratica oficialmente. O mercado gera um volume de recursos superior ao PIB de muitos países do mundo. A FIFA, hoje, é uma organização que congrega inúmeras nações de todas as partes do planeta.
  • flagrante a diversidade de raças, etnias e de cultura dos povos praticantes do futebol o que, por si só, ressalta e legitima a imperatividade na adoção de princípios e regras peculiares e, ademais, de um sistema próprio de solução de interesses, como forma de se harmonizar, no âmbito internacional, a disciplina do esporte e conferir um mínimo de coerência a suas decisões.

Para tanto, os mandamentos da FIFA devem ser impostos a todos os seus filiados, independentemente das peculiaridades de cada nação e país, como um órgão supranacional de regência do esporte. Suas regras se equiparam, assim, a um tratado internacional no que diz ao seu alcance e efeitos.

Quero realçar, com essa analogia, que o ordenamento FIFA objetiva a harmonização de uma prática e sua confirmação em nível internacional.

Afinal, estamos diante de uma modalidade esportiva transnacional que reclama, por isso, e pela diversidade cultural dos filiados FIFA, uma consistência jurídica, sob pena de inviabilização de sua prática internacional de forma regular e ordenada.

  1. A APLICAÇÃO DO DIREITO PRIVADO ÀS RELAÇÕES DESPORTIVAS.

Conquanto essa modalidade esportiva contenha um forte apelo popular, me parece que sua regência e execução se perfaçam sob a égide privada do direito.

Não nego o interesse do Estado na prática desportiva, como ocorre em outras formas de expressão popular, mas esse interesse não é ilimitado a ponto de alcançar relações jurídicas de cunho privado.

O fomento, a proteção e o incentivo das práticas desportivas constam como dever constitucional do Estado, à teor do art. 217 da Constituição Federal. É obrigação do Estado desenvolver e assegurar o direito de acesso ao desporto.

As Federações e a Confederação Brasileira de Futebol são entidades de interesse público mas que se sujeitam, nas suas relações, substancialmente, ao direito privado. São entidades autônomas, quanto a sua organização e funcionamento (art. 217, I, CF).

Em função do interesse público latente sofrem certa atenção das autoridades governamentais, do mesmo modo como ocorre com as companhias abertas, por força da poupança popular e do poder que elas concentram.

Mas tal interesse ou suas relações não as transforma em entidades de fim público, a ser regida pelo direito inerente à coletividade.

Ao contrário, as entidades desportivas dirigentes e as associações são autônomas, regendo sua organização e seu funcionamento pelo direito privado, exceto expressão em contrário.

De acordo com o art. 217, I, da Constituição Federal, “É dever do Estado fomentar práticas desportivas formais, como direito de cada um, observados, I. A autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento.”

Na mesma linha, o art. 2o., II, da Lei n. 9.615, de 24.03.1998, “O desporto, como direito individual, tem como base os princípios…II. Da autonomia, definido pela faculdade e liberdade de pessoas físicas e jurídicas organizarem-se para a prática desportiva.”

Ainda nesse sentido, a referida lei dispõe, em seu arts. 13, par. único e 16, caput, respectivamente, que, “O Sistema Nacional do Desporto congrega as pessoas físicas e jurídicas de direito privado, com ou sem fins lucrativos…” e “As entidades de prática desportiva e as entidades nacionais de administração do desporto, bem como as ligas de que trata o art. 20, são pessoas jurídicas de direito privado, com organização e funcionamento autônomo, e terão as competências definidas em seus estatutos.”

Releva citar, ainda, de conformidade com a lei em apreço, o teor de seu art. 27, par. 9o, verbis: “É facultado às entidades desportivas profissionais [entidades de prática desportiva envolvidas em competições de atletas profissionais, as ligas em que se organizarem e as entidades de administração de desporto profissional] constituírem-se regularmente em sociedade empresária, segundo um dos tipos regulados nos arts. 1.039 a 1.092 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.”

Extrai-se do ordenamento legal que os sujeitos das relações desportivas não são autoridades, no sentido público do termo e, tampouco, seus pactos e decisões se caracterizam por atos de cunho eminentemente administrativo.

São entes autônomos e suas relações têm por objetivo interesses de ordem particular, cujas obrigações e direitos são governados pelo ordenamento privado.

Sujeitam-se, assim, ao princípio da autonomia da vontade. Consequentemente, tais entidades governam seus próprios interesses e se vinculam às obrigações e aos deveres contraídos contratualmente. A elas se impõe o pacta sunt servanda. O contrato é lei entre as partes por efeito do poder de auto-regulação.

E, assim sendo, os pactos firmados pelas Federações e pela Confederação criam, extinguem ou modificam direitos.

A autonomia dessas entidades e a sujeição ao direito privado, reforçam a natureza constitutiva dos acordos que executam.

  1. IMPERATIVIDADE DA SOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DOS CONFLITOS.

Partindo-se da autonomia das instituições dirigentes do desporto e da sua sujeição ao direito privado, cabe examinar a validade e o alcance da proibição, estabelecida pela FIFA e seguida pelas Federações e pela CBF, de se recorrer à justiça comum das decisões proferidas pela justiça desportiva nacional e pela CAS.

Preliminarmente, impacta o intérprete o contido nos parágrafos 1º e 2º, do art. 217, da Constituição Federal, verbis:

§ 1º O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei.

§ 2º A justiça desportiva terá o prazo máximo de sessenta dias, contados da instauração do processo, para proferir sentença final.”

Extrai-se do texto normativo que o acesso ao Judiciário, no que toca aos conflitos desportivos, sujeita-se a um prévio exaurimento da instância da justiça desportiva.

Trata-se de pressuposto do direito de ação já visto anteriormente em nossa Carta de 1967, cujo art. 153, § 4º estabelecia que, “o ingresso em juízo poderá ser condicionado a que se exaurem previamente as vias administrativas, desde que não exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de 180 dias para a decisão sobre o pedido.”

Entretanto, essa condição, já nos idos de 1970 foi extremamente contestada pela doutrina e, após uma fase judicial de decisões favoráveis à tese do esgotamento da via administrativa, a jurisprudência deu uma guinada no sentido oposto, mitigando o texto legal por força da prevalência de outros princípios constitucionais.

O que pretendo com essa retrospectiva é demonstrar o significado da norma contida no art. 217, §§ 1º e 2º da Constituição Federal. Destarte, conquanto o texto legal estabeleça uma condição de admissibilidade para a propositura de ação judicial, esta não tem efeitos absolutos.

Ademais, ao contrário do que possa parecer ao intérprete, também não se trata de dispositivo que imponha a solução do conflito pela via judicial, após o esgotamento da via desportiva.

Numa primeira mirada, vê-se que a norma legitima a justiça desportiva e instiga a adoção, por esse órgão, de um procedimento célere, que não ultrapasse 60 dias.

Numa segunda mirada, nota-se que o prazo de 60 dias condiciona a admissibilidade jurídica de o interessado pleitear seus direitos na justiça comum.

Pode-se, portanto, extrair do comando constitucional dois aspectos de natureza processual: a competência da justiça desportiva e o prazo de esgotamento dessa via de solução de conflitos, como pressuposto para o acesso à justiça estatal.

Sem entrar no mérito da condicionante, o fato é que nenhum dos dois dispositivos constitucionais importa na imposição de solução dos conflitos oriundos ou relacionados ao futebol, necessariamente, pela via judicial, mesmo porque tal imperatividade atentaria contra os princípios e valores do Estado Democrático de Direito.

Nesse particular, registre-se que, não bastasse a riqueza de valores expressos nos primeiros artigos da nossa Constituição, a própria lei que institui normas gerais sobre desporto faz questão de, também, salientar, em seu art. 1o, que essa prática se inspira “nos fundamentos constitucionais do Estado Democrático de Direito”.

No caso brasileiro, a disposição máxima permitida por esse princípio fundamental, se encontra lançada no art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal que assim dispõe: “A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.

No entanto, nenhuma das duas previsões constitucionais (arts. 217 e 5o), implicam em uma exigência de submissão à justiça comum das matérias e conflitos envolvendo as Partes em suas relações de direito, no que tocam às questões sujeitas à disciplina desportiva.

E é daqui, dessa singularidade brasileira contida no retrocitado art. 5o, XXXV, da Constituição Federal que procurarei demonstrar a validade das regras constantes dos Estatutos FIFA, e daquelas que a estas vinculam as Federações nacionais e a CBF e que, consequentemente, excluem do Poder Judiciário a análise de controvérsias atinentes ou relacionadas as relações jurídicas atinentes ao futebol, com as mitigações que essa exclusão merece.

5. A VALIDADE DA SUBMISSÃO À CAS.

O prazo de 60 dias conferido pela Constituição à Justiça Desportiva deve-se, primordial e explicitamente, à busca de uma solução rápida para os conflitos oriundos da prática desportiva.

Nas palavras de Uadi Lammêgo Bulos, “o dispositivo [§ 2º, art. 217, CF] funda-se na necessidade de solução rápida de conflitos, pois a lentidão poderá motivar as torcidas para o caos e a baderna.” 5

Visa, também, evitar inúmeras intervenções judiciais através das, conhecidas, liminares com impactos negativos inimagináveis para o esporte e, não raro, de efeito irreversível.

Segundo a doutrina, a introdução constitucional do período de carência de 60 dias “visa impedir a paralisação de campeonatos por meio de liminares, mandados de segurança e ações cautelares inominadas … O intuito do legislador constitucional neste dispositivo foi evitar a concessão de liminares pela justiça comum em efeitos irreversíveis e na maioria das vezes danosos às competições e disciplina desportiva.” 6

Contudo, atrelado a esse elemento explícito que se extrai do contido no art. 217, §§ 1º e 2º, Constitução Federal, o intérprete poderá dele aferir outro aspecto, este implícito, motivador da introdução desse comando constitucional.

Por certo, as peculiaridades e especificidades da prática desportiva impõem a análise e o trato dos seus conflitos por um órgão ou pessoas enfronhadas com suas regras e regulamentos.

O direito, como um todo, o que inclui o direito desportivo, vem ampliando, com velocidade incrível, áreas e disciplinas jurídicas inexistentes ou inexpressivas nas últimas dezenas de anos.

Na década de 1960, por exemplo, o direito tributário constituía uma disciplina simples, vinculada ao direito financeiro. Hoje, direito tributário e direito financeiro são disciplinas distintas, complexas e de amplo alcance. E mais, o tributarista se especializa em impostos diretos ou indiretos e, ainda, se subespecializa em IPI, ICMS, imposto de renda pessoa física, imposto de renda pessoa jurídica, etc.

Na década de 1970, não se lecionava direito do consumidor ou da defesa econômica, hoje disciplinas específicas e com ordenamentos próprios.

Mais recentemente, já se passou a discutir, amplamente, direito comunitário, direito das telecomunicações, do petróleo e da energia, direito envolvendo a Organização Mundial do Comércio – OMC, negociação e o direito arbitral. Sem se falar nas relações consumadas via comércio eletrônico e o debate que se trava ao redor das regras de direito a elas aplicáveis.

Destarte, cada vez mais e intensamente, o direito amplia suas fronteiras exigindo do operador um grau de conhecimento muitas vezes alcançável pelo estudo e atualização permanentes que o leva, necessariamente, à especialização.

Nesse particular, o direito desportivo não é exceção. Já na década de 1960, Lyra Filho advertia que, “a própria justiça desportiva adquire feição específica, a ponto de não poder ser diretamente aferida pelos tribunais comuns, na consulta exclusiva dos textos do direito geral e no desconhecimento dos códigos e dos regulamentos que derivam da órbita institucional do desporto.” 7

Para Álvaro Melo Filho, “há um evidente despreparo do Judiciário para o trato das questões jurídico-desportivas que exigem dos julgadores o conhecimento e a vivência de normas, práticas e técnicas desportivas a que, normalmente, não estão afeitos e familiarizados, criando, desse modo, um perigo extraordinário em termos de denegação de justiça, pois há peculiaridades da codificação desportiva compreendidas e explicadas somente por quem milita nos desportos.” 8

A mesma preocupação foi levantada pelo jornalista Sergio Franco, em artigo publicado há 26 anos atrás, em 1979, verbis; “

Não haja dúvida: se o Poder Judiciário começar a envolver-se na disciplina das competições e a examinar decisões dos tribunais desportivos, muito breve os jóqueis estarão discutindo em juízo as punições que lhes são aplicadas pela comissão de corridas do hipódromo, as decisões da liga náutica, e os campeonatos vão ser definidos nas tribunas das cortes judiciárias mais do que nas canchas dos estádios. E é certo que não ficaríamos nisso … 9 (ibidem, p. 227).

A doutrina e os interessados, como se vê, há muito se preocupam com as particularidades das matérias desportivas e o conhecimento especializado que se espera do julgador, sob pena da realização inadequada da justiça.

E essa preocupação não passou despercebida do legislador. Com efeito, o constituinte se mostrou sensível às especificidades das normas desportivas e, ainda, à importância da rapidez na resposta aos impasses desportivos.

Daí, me parece encontrar o intérprete no dispositivo constitucional, como sua ratio iuris, a imperiosa celeridade no trato dos conflitos desportivos e a relevância de seu julgamento por tribunais especializados, dada a especificidade do direito desportivo. Daí a competência da justiça desportiva, presumidamente especializada, e do prazo de 60 dias para a solução das controvérsias da espécie.

Numa visão holística do esporte, nomeadamente do futebol, temos que esses mesmos princípios norteiam as autoridades esportivas internacionais, com o acréscimo de elementos que se impõem na análise transnacional desse esporte.

Ao transbordar fronteiras e atingir um número de países e povos com raças, religiões, sistemas legais, políticos e de governo tão díspares quanto conflitantes, torna-se premente dotar o direito do desporto futebolístico de uma harmonização e de uma proteção jurídica próprias, sob pena de sua inviabilização como esporte mundial.

O objetivo há de ser o de resguardar o interesse maior e geral do futebol mundial e, para isso, imperativo que se afastem ou se previnam potenciais ingerências políticas das autoridades dos muitos países filiados à FIFA.

Destarte, no âmbito doméstico, nosso ordenamento tem por fonte a celeridade e a especialidade, enquanto que, no campo internacional, além destes elementos, o direito desportivo futebolístico se norteia, também, pela harmonização da prática e pela prevenção da consumação, sempre tentadora, de interferências no esporte, justamente pelo fim maior de preservação do seu interesse mundial.

Note-se, como já ressaltado, que a ingerência de autoridades estatais dos países filiados sofre forte conotação política e advém de idiossincrasias nacionais, inadmissíveis numa disciplina de caráter transnacional.

Com fundamento nesses pressupostos a FIFA estabeleceu, no art. 61, de seus estatutos, as seguintes regras:

1. As Confederações, os membros e as ligas se comprometem a reconhecer a CAS como instância jurisdicional independente e se obrigam a adotar todas as medidas necessárias para que seus membros, jogadores e oficiais acatem a arbitragem da CAS. Esta obrigação se aplica igualmente aos agentes organizadores de partidas e aos agentes de jogadores licenciados.

2. É proibido recurso perante os tribunais ordinários, exceto se permitido pela regulamentação FIFA 10.

3. Para a aplicação do aqui previsto, as associações deverão incluir em seus estatutos disposição segundo a qual seus clubes e membros não poderão recorrer aos tribunais ordinários e deverão submeter qualquer controvérsia aos órgãos jurisdicionais da associação, confederação ou da FIFA”.

Nos termos do estatuto FIFA, os conflitos relacionados ou oriundos do mundo futebolístico deverão ser resolvidos por arbitragem, nos termos do regulamento da Court of Arbitration for Sports.

A FIFA, como entidade maior do esporte mundial, na defesa dos interesses dessa prática, impõe a todos os seus filiados, sob a pena máxima de exclusão de seus quadros, a submissão à arbitragem da CAS, de todos aqueles entes ou pessoas naturais a ela vinculados, direta ou indiretamente, com o conseqüente afastamento do Poder Judiciário das questões envolvendo o esporte por ela comandado.

No que trata à jurisdição brasileira, essa disposição estatutária há de ser encarada sob duas óticas, interna e externa.

A primeira, diz com a imperatividade da submissão da entidade nacional ao estatuto FIFA e, notadamente, às regras da CAS e, a segunda, com a exclusão do Poder Judiciário brasileiro, face o teor do art. 5º, XXXV, da CF.

Vejamos, primeiramente, o aspecto interno, de vinculação da entidade nacional aos mandamentos exarados pela FIFA.

Nos termos da Constituição Federal, “é dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um, observados: I. A autonomia das entidades desportivas, dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento” (art.217, I).

O princípio norteador das entidades desportivas e associações é, pois, a autonomia. Essas instituições são plenamente livres para manejar sua organização e seu funcionamento. São livres para se auto-regularem. Cabe a elas definir sua forma de organização e o sistema que governará seu funcionamento.

Na dicção de Pinto Ferreira, “No que se refere às entidades desportivas, a atribuição de poder ou competência e conseqüentemente de autonomia se encontra na Constituição da República (art. 217, I). A autonomia se concretiza mediante dois princípios fundamentais: a) a possibilidade de atuação livre dentro dos limites fixados pelo texto constitucional; b) a possibilidade de contrapor a livre deliberação e vontade contra uma eventual vontade de outra entidade do governo, Executivo ou Legislativo, em sentido contrário. Sendo uma garantia constitucional, fica a autonomia amparada pelo Poder Judiciário.” 11

É ampla e vigorosa a auto-regulação vez que está assegurada pela Constituição Federal. A autonomia é definida pela lei nº 9.615/98, como a faculdade e liberdade de pessoas físicas e jurídicas organizarem-se para a prática desportiva (art. 2º, II).

Ressalte-se que, de conformidade com a mesma lei, a prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto (art. 1º, § 1º).

Por essa norma, infere-se que o direito internacional desportivo e as regras da prática futebolística operam efeitos de direito, se aceitas pela entidade nacional.

É justamente o caso dos Estatutos FIFA, cujas normas são acatadas pela entidade que a ela, espontaneamente, se filia.

Mutatis mutandis, a vinculação às cláusulas dos estatutos FIFA se assemelha a obediência do acionista aos estatutos sociais da companhia de que é acionista. A opção é daquele que pretende integrar a entidade. Esta não obriga ninguém. Ao contrário, seu prestígio é que atrai o interesse das associações regionais. Mas as regras devem ser únicas, para todos os filiados, sob pena de se impossibilitar a reunião associativa.

Reunião essa que realça aspectos dos mais dignos do direito e da convivência humana, como a solidariedade, a fraternidade, o lazer e o pluralismo. Reunião essa que visa integrar pessoas e comunidades do país e estas com as de outras nações, no exato cumprimento da finalística do desporto. 12

A entidade brasileira ao buscar a filiação à FIFA o faz por livre e espontânea vontade, baseada no seu interesse pessoal e com fundamento na autonomia que tem para se organizar e funcionar.

Ressalte-se, ademais, que tais entidades desportivas se sujeitam ao direito privado (art. 13, § único, lei nº 9.615/98) e, independentemente da forma jurídica como estejam constituídas, equiparam-se às das sociedades empresárias, notadamente para efeitos tributários, fiscais, previdenciários, financeiros, contábeis e administrativos (art. 27, § 13, lei nº 9.615/98, com a redação dada pela lei nº 10.672, de 2003).

Além de se sujeitarem ao direito privado, a lei nº 9.615/98, em seus art. 4º, § 2º (com a redação dada pela lei nº 10.672/2003) e 16, afirma e confirma que a organização desportiva do País está fundada na liberdade de associação.

Essa liberdade associativa, juntamente com a autonomia para se auto-regular e a sujeição ao regime de direito privado, me parece, conferem legitimidade à entidade nacional de se filiar à FIFA e, conseqüentemente, se sujeitar ao ordenamento constante de seus estatutos, inclusive o que afasta a justiça comum em prol da solução dos conflitos pela arbitragem da CAS.

Todo esse substrato legal torna válida a filiação e eficazes as regras estatutárias da FIFA. Em outros termos, a entidade nacional se vincula e, assim, se obriga por proceder nos exatos termos dos estatutos FIFA.

Mormente quando se sabe que a escolha e a manifestação de vontade foram exercidas por opção própria, livremente, não sendo a filiação, de modo algum, imposta à entidade nacional.

Segundo o art. 10, dos Estatutos FIFA, “Toda associação responsável por organizar e supervisionar o futebol em seu país poderá se converter em membro da FIFA …” (grifei).

Tanto tem a opção de se integrar à FIFA como de seus quadros se retirar. Tudo em linha com o art. 5º, XX, da CF, verbis: “ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”.

Desse modo, sob a exegese interna da norma constitucional, a entidade desportiva brasileira pode se filiar à FIFA, para todos os fins de direito. E, ao se filiar, obriga-se a cumprir o correspondente estatuto e demais normas regulamentares.

Quanto a exegese externa, que diz respeito ao afastamento do Poder Judiciário brasileiro, tenho que tal opção é possível, sem embargo de ressalva de estilo.

Como já foi visto, o art. 217, §§ 1º e 2º, CF, não impõe a submissão dos conflitos desportivos à justiça comum, após o esgotamento da via administrativa. Apenas estabelece um período de carência para o acesso à justiça estatal, isso se outra forma de resolução de conflitos não for estabelecida.

No caso da FIFA, a regra do art. 61, de seus estatutos é clara em submeter os conflitos próprios do futebol à arbitragem da CAS.

A opção pela arbitragem não fere o contido no art. 5º, XXXV, CF, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da constitucionalidade da lei nº 9.307/96, que dispõe sobre a arbitragem.

Os limites da arbitragem encontram obstáculo intransponível, somente, nos conflitos de direito indisponível. Não me parece que esse limite crie qualquer restrição à solução das controvérsias relacionadas ou oriundas das relações do desporto futebolístico pela CAS.

Por outro lado, creio também que as funções institucionais do Ministério Público da União não resultam em embaraço ou entrave à arbitragem da CAS.

Nos termos do art. 5º, II, d, da Lei Complementar nº 75, de 20.5.93, cumpre ao referido órgão “zelar pela observância dos princípios constitucionais relativos … ao desporto”.

É, pois, função constitucional do Ministério Público da União assegurar, à nação brasileira, o cumprimento dos princípios constitucionais do desporto pelas autoridades públicas.

Com efeito, cabe ao Ministério Público da União velar pelo pressuposto maior do desporto nacional, lançado na seção constitucional dedicada à essa prática – art. 217 – que se resume ao dever do Estado de fomentar práticas desportivas formais e não formais. Dentre essas práticas públicas, consolidadas como dever constitucional do Estado, encontra-se a destinação de recursos públicos para a promoção prioritária do desporto educacional e, em casos específicos, para a do desporto de alto rendimento, a proteção e o incentivo às manifestações desportivas de criação nacional e o incentivo do lazer pelo poder público, como forma de promoção social.

No campo desportivo, são esses os princípios sujeitos à competência institucional do Ministério Público, em linha com o art. 127, caput, da Constituição Federal que define essa instituição como órgão essencial à função jurisdicional do Estado, incumbido da defesa dos interesses sociais e individuais indisponíveis.

Nesse sentido, quando a Constituição Federal estabelece o dever do Estado de destinar recursos públicos para a promoção do desporto educacional, sobreleva-se nesse dever o interesse social, de um lado, e o direito indisponível do indivíduo de acesso a essa prática. Do mesmo modo que o lazer é um direito indisponível que deve ser velado pelo Ministério Público da União, seu incentivo, pelo Estado, se conforma à função da referida instituição, como forma de defesa dos interesses sociais.

São estes os princípios constitucionais que informam o dever do Estado na seara desportiva e os limites da atuação do Ministério Público.

De resto, prevalece a liberdade associativa e a autonomia das entidades desportivas, direitos que se inserem no regime privado e, conseqüentemente, na esfera jurídica dos direitos disponíveis.

Daí porque há de ser considerada válida e eficaz a submissão de conflitos oriundos ou relacionados às relações desportivas, notadamente aqueles ligados ao futebol, à resolução pela via da arbitragem. Tanto sob o ângulo objetivo quanto subjetivo da natureza do ato.

No que diz com a arbitrabilidade objetiva, pode-se sustentar que as disputas postas à solução pela CAS são, todas elas, regra geral, de direito patrimonial disponível. Dizem com as controvérsias entre a FIFA, as confederações (grupos continentais ou regionais de associações), membros (associação), ligas (ente subordinado a uma associação), clubes, jogadores, oficiais (todo membro de uma comissão, árbitros, gerente desportivo, treinador e qualquer outro responsável técnico, médico ou administrativo da FIFA em uma confederação, associação, liga ou clube), agentes de partidas e os agentes de jogadores licenciados.

Dessas relações jurídicas uma infinidade de disputas se originarão envolvendo direitos passíveis de sujeição à arbitragem, pelo cunho patrimonial ou mesmo técnico das questões.

Dirão com a aplicação e a violação a regras legais e desportivas e a cláusulas contratuais. Resultarão de término ou cumprimento insatisfatório de obrigações pactuadas de comum acordo. Terão por causa incumprimento na execução de serviços e de obrigações de fazer e de não fazer. Terão por objeto matérias envolvendo direito de imagem, contratos de agenciamento e de prestação de serviços. Poderão incidir em contratos de atletas com seus agentes ou com seus clubes. Enfim, são inúmeras as relações jurídico-desportivas que poderão resultar em conflitos envolvendo, maciçamente, direitos de cunho disponíveis.

Salvo especificidades do caso concreto, todas as matérias são arbitráveis, sendo certo que a sentença arbitral poderá ser de cunho declaratório ou constitutivo e contemplar uma condenação. Poderá o árbitro, ainda, impor sanção à parte, seja como suporte na legislação aplicável, seja por litigância de má-fé.

A sentença da CAS deverá produzir todos os efeitos de direito, com uma ressalva: desde que não viole elementos essenciais de ordem pública, notadamente o devido processo legal e demais pressupostos de natureza constitucional. Eis aqui a ressalva de estilo que mencionei anteriormente.

Quanto a arbitrabilidade subjetiva, não vemos obstáculos a sua plena validade. 13

Tanto as federações se vinculam à cláusula arbitral que venha a ser ditada pela CBF quanto esta está obrigada aos efeitos do art. 61 dos Estatutos FIFA, que impõe a obrigação de as partes a estas ligadas (confederações, membros, etc.) reconhecerem a CAS como instância jurisdicional independente e de submeterem a ela as disputas existentes entre as Partes, vedado recurso perante os tribunais ordinários, salvo as questões de direito trabalhista.

O que o Estatuto FIFA estabelece se coaduna com o sistema jurídico da arbitragem no Brasil. Obrigação de instituir a arbitragem e cláusula sem recurso. Não há a imposição de arbitragem, pois é faculdade das organizações de se filiarem ou não à FIFA.

Em outros termos, não há que se sustentar que o Estatuto FIFA implica em uma arbitragem obrigatória. A arbitragem se impõe, imperativamente, para aqueles que optarem por se filiar à FIFA. A escolha é manifestação livre da vontade da Confederação e, indiretamente, das Federações. Contudo, uma vez afirmada, torna-se impositiva a submissão das questões controversas à arbitragem da CAS. E tal fato jurídico em nada atenta contra o ordenamento e os princípios do sistema legal brasileiro.

A sentença exarada no âmbito da CAS será definitiva no que toca ao mérito, podendo, como sustentei acima, ser rescindida por via de ação anulatória se violar elemento essencial de ordem pública.

Quanto as regras da CAS, pode-se dizer que legitimam a idoneidade do procedimento da solução de conflitos e, dessa forma, assegura o princípio do acesso à justiça protegido, entre nós, em sede constitucional. A CAS, por suposto, garante o acesso a uma tutela jurisdicional adequada e justa.

Os árbitros são escolhidos pelas partes e devem ser, e se manter, independentes e podem ser impugnados pelo interessado. As partes podem ser representadas ou assistidas por pessoas de sua livre escolha. Todos os procedimentos arbitrais devem ser informados aos interessados.

O direito de defesa é amplo e exercido por meio de alegações escritas, oitivas de testemunhas e indicação de expertos.

A decisão arbitral é definitiva e vincula as partes e não poderá ser impugnada por via de uma ação de nulidade, sob o argumento de que as partes não têm domicílio, residência habitual ou estabelecimento na Suiça ou caso tenham excluído expressamente o direito de impugnação judicial.

Todo esse arcabouço jurídico oferece às Partes a possibilidade de acesso a uma justiça idônea, onde o devido processo legal é assegurado e, dessa forma, se alinha aos princípios que norteiam o instituto da arbitragem mundo afora e, inclusive, no Brasil.

Pedro A. Batista Martins

 

 

1 A expressão não é tecnicamente adequada mas quer indicar que a arbitragem sujeita às regras da CAS tem natureza jurisidcional.

2 O Regulamento da CBF não se encontra disponibilizado, nesse momento, dado estar pendente de modificações e aprovações de modo a se compatibilizar com as novas regras da FIFA, inclusive a sujeição à CAS.

3 Os Estatutos das outras Federações de Futebol incluem disposições os mesmos efeitos vinculativos às regras exaradas pela CBF e por outras entidades superiores do esporte.

4 Cf. Paulo Trengouse Laignier de Souza, in Princípios de Direitos Desportivos, pg. (Introdução). 5 Constituição Federal Anotada, São Paulo, Saraiva, 2.000, p. 1.214.

6 Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil, vol. 8, São Paulo, Saraiva, 1998, pp. 763 e 767.

7 Apud, Álvaro Melo Filho, Desporto Constitucionalizado, Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 26, n. 101, jan/mar 1989, p. 229.

8 op.cit. pp. 226/227.

9 Ibidem, p.227.

  1. A exceção se refere, basicamente, às questões trabalhistas.
  2. Apud, Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, op. cit., pp. 746/747.
  3. Segundo o art. 3º, III, da lei nº 9.615/98, “O desporto pode ser reconhecido em qualquer das seguintes manifestações: III. desporto de rendimento, praticado segundo normas gerais desta Lei e regras de prática desportiva, nacionais e internacionais, com a finalidade de obter resultados e integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outra nação.”
  4. Ressalve-se a estipulação compromissória fixada, diretamente em contrato de adesão.

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