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Pedro A. Batista Martins

“Fala-se muito no conservadorismo dos juristas, mas a melhor maneira de conservar consiste em renovar e reformar as instituições, adaptando-as ao novo contexto no qual vivemos, para que elas possam exercer adequadamente as suas funções”. (Arnoldo Wald – A Estabilidade do Direito e o Custo Brasil).

1. Vivemos hoje a chamada democratização social, causa de vários fenômenos econômicos e políticos e – por que não! – também os de efeitos legais, como a emblemática mitigação da rígida conceituação da soberania.

2. Em poucas palavras, essa democratização social significa maior participação dos indivíduos e das associações de interesse na formação de decisões políticas, administrativas e legais. Trata-se de verdadeira democratização cidadã.

3. Esse fenômeno se contrapõe, diretamente, ao Estado Absoluto do século XIX e, de certo modo, ao Estado Intervencionista vivenciado por nós, brasileiros, nas últimas décadas, e reflete a atuação cívica dos indivíduos em vários campos de interesse social.

4. Com a “débacle” do sistema estatal, apresenta-se um vácuo de liderança onde, forçosamente, evolui a participação de grupos cidadãos no desfecho de causas comuns, reforçada pela retomada da valorização do ser humano.

5. Como consequência, o Estado deixa de ser o único e cômodo veículo de manifestação social para tornar-se agente com funções de supervisão dos atores e das atuações da coletividade.

6. Esse é o cenário que já se delineia no campo social e que, com maior integração dos indivíduos e organização dos grupos representativos, logrará nobres êxitos.

7. Direcionando o foco para o terreno dos princípios e regras de convivência e de conduta humana, percebemos que esse novo século nasce engrandecido pelo surgimento da terceira geração do direito, cuja concretização, apesar de ainda gradual, trará inequívoca melhoria na evolução das relações comunitárias.

8. Assegurados, historicamente, os direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais, surge o moderno direito social, cujo objetivo final é o desenvolvimento e o ser humano seu valor supremo.[1]

9. Supremo, mas não absoluto, pois não é com egocentrismo que se implementará essa nova geração do direito. Deve o indivíduo ser encarado sob a ótica da fraternidade, pois o que se impõe a esse mundo de múltiplas convivências é a solidariedade.

10. Abraçado a essa terceira geração, surge ampliado o direito constitucional de acesso à justiça; contudo, sua concretização há de ser plena, efetiva e com a participação dos indivíduos na sua administração.

11. Tal alargamento do escopo desse legado natural encontra eco na contemporânea conceituação do due process of law, não mais analisado, unicamente, sob o ponto-de-vista processual; agora, é regra constitucional de salvaguarda do direito material, que visa a tutela dos direitos e garantias fundamentais do ser humano.[2]

12. Sem dúvida, os modernos direitos sociais renegam o Estado anestesiado, cômodo e inócuo. A inatividade da máquina estatal é rechaçada, pois o justo desejo de uma efetiva e ampla prestação positiva colide frontalmente com a inércia e a ineficiência hoje realçadas[3]. Daí reclamarem os indivíduos participação nas decisões de caráter estatal.

13. Está aí o embricamento do cenário contemporâneo da democratização social com a cunhada terceira geração do direito.

14. As exigências dos indivíduos como usuários dos serviços estatais redundam no direito à prestação, no direito à participação, mas, para o alcance desse desiderato político-legal, há que se desenvolver e praticar o princípio maior da solidariedade.

15. Daí minha visão de que a justiça do século XXI estará ligada aos avanços dos meios alternativos de solução de conflitos (ADR), cujos mais conhecidos são a mediação, a conciliação e a arbitragem.

16. Isso porque, quando falamos em solidariedade, encontramo-la nas ADR, onde o consenso e a boa-fé são de sua essência.

17. Se a ansiedade social é aplacada pela exigência e obtenção de rápida resposta à prestação da tutela pretendida, eis novamente as ADR a instrumentalizar esse justo pleito, evitando a ruptura definitiva daqueles envolvidos na disputa.

18. O recuo do Estado intervencionista, ao convergir com o ímpeto participativo dos indivíduos em esferas decisórias – antes exclusividade estatal – veio, naturalmente, desaguar na cabeceira das ADR, onde a administração da justiça é levada a efeito pelo povo.

19. Não é sem razão que a crise universal da justiça é, contemporaneamente, combatida pelo movimento da terceira onda, via implementação e ampliação das ADR.[4]

20. Entretanto, para que possamos lograr sucesso no campo das ADR, é preciso flexibilizar o arcaico conceito de jurisdição para dele extrairmos elementos justos, atuais e tão nobres quanto aquele que ainda hoje prevalece.

21. Ao lado do conteúdo estritamente jurídico da jurisdição, devemos iluminar seus escopos social e político, intrínsecos ao princípio e sobremaneira eficazes a esse século que se inicia.[5]

22. Concisa e objetivamente falando, como salienta o Prof. Cândido Dinamarco, é imperativo acabarmos com o fetichismo da jurisdição!

23. De outro lado, também, mister aprendermos a conviver com a liberdade. De nenhum efeito prático o ressurgimento de um cenário livre à atuação do particular, pelo refluxo do papel estatal, se os indivíduos relutam em adentrá-lo por receio do novo, pela ausência do Estado-Providência e medo de serem levados a responder, isoladamente, pelas obrigações contraídas sob a égide da autonomia da vontade, sem paternalismos e benesses.

24. É preciso reaprender a conviver com a liberdade, após intermitentes anos de ditaduras e intervenções estatais.

25. Sem dúvida o Brasil, nesse século XXI, superará largamente a fase de engatinhamento na utilização dos meios alternativos de solução de conflitos e avançará, sobremaneira, na melhoria dos serviços de administração da justiça. Se não por manifestação oriunda do seio de sua própria administração, ao menos por força dos anseios da coletividade.

26. Ademais, com sua fértil cultura e a miscigenação do seu povo, trará ao mundo relevante criatividade nesse campo moderno de apaziguação das disputas de interesse.

27. Até porque, é imperativa a mudança na rota do acesso à justiça, ainda hoje, “samba de uma nota só” com a monopolização pelo Estado de serviço essencial de interesse público.

28. Senão, vejamos!

29. Enquanto na Alemanha existem 3.000 habitantes por juiz e na Itália 8.000 hab./juiz, no Brasil temos a média de 25.000 hab./juiz. Note-se que o ideal, conforme pesquisa internacional, gravita em torno de 800 hab./juiz.

30. Na Alemanha a Suprema Corte costuma julgar em torno de 6.000 processos por ano. Já nos EUA, a mais alta Corte aprecia e julga, por ano, ao redor de 130 processos. No Brasil, o Supremo Tribunal, no ano de 1996, proferiu 32.000 decisões, aproximadamente, 3.000 por Ministro.[6]

31. Registre-se que a média do Superior Tribunal de Justiça, mutatis mutandis, é a mesma do STF.

32. No segmento laboral, o Japão apresenta, historicamente, 1.000 reclamações por ano, enquanto a Inglaterra 66.000/ano.

33. Incrivelmente, no Brasil, a média gira em torno de 6.000 reclamações trabalhistas por dia, com um custo ao Erário Público equivalente a R$ 720,00 (aproximadamente US$ 400) por processo que percorra todas as vias (crucis) judiciais.

34. Frente a esses dados que, longe de serem detrimentos ao Poder Judiciário, o enaltecem dada a espantosa produtividade de seus membros, põe-se a indagação do direcionamento de maiores recursos e agigantamento desse Poder fundamental ao Estado.

35. Infelizmente, temos de nos render à realidade. Tal pretensão, apesar de justa, é inviável! O Estado não suporta aumento de orçamento do Judiciário, pois somente a Justiça do Trabalho recebeu em 1996 duas vezes o orçamento destinado ao Ministério da Agricultura e quatro vezes o direcionado ao Ministério das Minas e Energia.

36. Ressalte-se, ainda, que de 1989 a 1997 as despesas de pessoal do Judiciário quintuplicaram. Em 1998, a folha salarial cresceu 51%. Entre 1990 e 1996 a participação do Judiciário nos gastos de custeio e investimento passou de 2,9% para 7,8% do total dos três poderes, o que resulta em aumento médio de 27% ao ano.[7]

37. É hora de aceitarmos e convivermos com os ventos da modernidade.

38. A par da utilização das ADR, devemos também lograr resultados no aprimoramento das regras do direito adjetivo.

39. Esse é mero instrumento de atingimento da tutela jurisdicional. Tratemo-lo como meio de concretização do direito material e não como ciência absoluta.[8]

40. Minimizemos os ritos e deixemos florir a essência do contido no artigo 244 do Código de Processo Civil, eleito a mais bela regra do direito processual civil mundial.[9]

41. É hora de reeducarmos os operadores do direito.[10] Os advogados não podem mais servir de representantes autômatos do litígio. Na qualidade de peça fundamental na administração da justiça, são devedores de prestação de serviços jurídicos cada vez mais qualificados. Estamos frente à advocacia reparadora do século XXI, onde o contencioso é a última instância.

42. Imperiosa a manutenção da relação comercial e, para isso, imprescindível a boa-fé no aconselhamento jurídico.

43. Há que se acabar com a máxima “o advogado forma-se, deforma-se e conforma-se com o contencioso” ressaltada pelo Desembargador Claudio Vianna de Lima.

44. Nesse sentido, cabem aplausos à iniciativa do Ministério da Educação ao estabelecer como referência ao perfil delineado para o graduando oriundo do Exame Nacional do Curso de Direito de 1998 “capacidade de desenvolver formas extrajudiciais de prevenção e solução de conflitos individuais e coletivos”.[11]

45. O mesmo se diga do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que incluiu a arbitragem como matéria do concurso de ingresso na magistratura.

46. De outro modo, a criação de Câmaras de Mediação e Arbitragem vinculadas a instituições de renome, o apoio financeiro às ADR.

47. De entidades nacionais aliadas ao Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID, demonstram confiança no projeto brasileiro de desenvolvimento dos meios alternativos, iniciado ainda no começo da década de 90, graças à determinação insuperável do Dr. Petrônio Muniz e ao apoio insubstituível do então Senador Marco Maciel.

48. Tenho plena esperança que a criatividade brasileira entrelaçada a sua gene apaziguadora dará impulso salutar e qualitativo à justiça do Século XXI, com a implementação dos vários meios de solução dos conflitos de interesse.

  1. “O fortalecimento da soberania popular é que se põe, na presente quadra histórica, como importante. Soberano é o cidadão e não o Estado. Atente-se a que a cidadania, por sua vez, é cada vez mais supranacional. O direito de participar do poder político não mais se restringe ao território de um Estado, estendendo-se principalmente porque ele se exerce para assegurar a a dignidade da pessoa humana – princípio essencial de qualquer ordenamento – e, onde esta tiver sido atingida, há que haver um cidadão disposto a colaborar com o ameaçado ou lesado em seu direito para a pronta defesa, independente da nacionalidade… A matéria dos direitos humanos, que dominam o cenário jurídico nas últimas décadas, vem comprovar que a soberania estatal não se sobrepõe ao direito que resguarde o homem em sua condição universal. O cuidado daquele tema constitui, irretorquivelmente, uma superação da soberania estatal absoluta e intangível ao questionamento do resto do mundo”. (Carmem Lucia Antunes Rocha, “Constituição, Soberania e Mercosul”, RDA n° 213, p. 57).
  2. O Pleno, na ADIn n° 1.158-8, em decisão do Min. Celso Mello, consagrou essa visão moderna do devido processo legal: “(…) Todos sabemos que a cláusula do devido processo legal – objeto de expressa proclamação pelo art. 5°, LIV, da Constituição – deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só no aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário ou irrazoável. A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou, como no caso, destituída do necessário coeficiente de razoabilidade”.
  3. A Emenda Constitucional n° 19, de 4.6.98, impõe uma justiça eficiente no interesse dos jurisdicionados (“Art. 3°… [Art. 37] A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência…”), que, infelizmente, não vem redundando em ganhos práticos para a sociedade
  4. Vale conferir o estudo do Prof. Mauro Cappelletti, objeto do Relatório de abertura do Simpósio Jurídico W. G. Hart sobre a Justiça Civil e suas alternativas, realizado em Julho 1992, in Revista Forense, Vol. 326, p. 121 e segs.
  5. Essa finalística da jurisdição é abraçada por Ada Pellegrini Grinover.
  6. Segundo fontes jornalísticas de 27 de outubro de 1999 (Revista Veja, p. 35), os 11 ministros do STF bateram mais um recorde em 1999: julgaram cerca de 53.000 processos. Isso significa mais de 4.800 processos por ministro, que, em princípio, terão lido 78.500 páginas por semana, cada um, o equivalente a 46 Bíblias. Não obstante, a remessa diária chegou a 200 novos processos.
  7. Estudo de Armando Castelar Pinheiro, economista do Banco Nacional de Desenvolvimento Social – BNDES (O Globo, coluna política Panorama Econômico, jornalista Miriam Leitão, 20.2.99).
  8. Para ilustração sarcástica, alguns trechos da obra “Tempo e Processo”, de José Rogério Cruz e Tucci, RT, 1998, p. 15: “Cappelletti chegou a comparar a presteza da justiça italiana ao trabalho de um relógio quebrado, que deve ser “batido e sacudido” (“hit and shaken”) para continuar em movimento…Desde os tempos de Justiniano – anota Calamandrei – “quando se concebiam os meios processuais para impedir que os litígios se tornassem poene immortales, o processo era imaginado como um organismo vivo, que nasce, cresce e, por fim, se extingue por morte natural com o julgado” [diria eu, ou por morte natural do demandante].Verifica-se, efetivamente, que um número considerável de processos à espera do julgamento assemelha-se à expectativa, para alguns crentes, da chegada do Messias…!
  9. Segundo consagrou o IX Congresso Mundial de Direito Processual, realizado em Portugal.
  10. Como já manifestado em cenário pretérito, “…[é] do Direito que hão de vir as soluções. Esta é, pois, a hora do jurista, que não pode ficar apegado a instituições que fenecem, colocando-se de costas para o futuro, por amor a uma ordem que não é mais ordem. Cumpre-lhe, com seu pensamento crítico, e sua fé na justiça, retomar a liderança que lhe cabe no processo, tentar a abertura de caminhos novos, trazer sua contribuição ao mundo que nasce, participar da grande aventura de torná-lo mais humano e solidário”. Texto do Prof. Alfredo Lamy Filho ressaltando, à época, a premente necessidade de modificação da lei das S.A.
  11. Portaria n° 163, de 27.2.98, publicada no D.O.U. de 2.3.98, Seção 1, págs. 2 e 3.

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