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Pedro A. Batista Martins[1]

Curioso perceber o enorme avanço da arbitragem no Brasil, a partir de 1996, com a edição da Lei n. 9.307 (Lei de Arbitragem ou Lei Marco Maciel) e, notadamente, após o reconhecimento de sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, em 2001.

Historicamente, o instituto da arbitragem foi integrado ao cenário legal brasileiro como meio de solução de conflitos oriundos de determinadas matérias contratuais (i.e. seguro e locação de serviços), especificamente previstas em leis promulgadas na primeira metade do século XIX (1831 e 1837).

Na sequência, restou cristalizada com a entrada em vigor do Código Comercial, de 1850.

O comércio de então já demandava solução para seus conflitos pautada em regras mais flexíveis, e com tribunal formado por especialistas que pudessem, inclusive, julgar, com base nos usos e costumes próprios desse importante segmento da economia.

O Código Comercial previa a possibilidade de se adotar a solução arbitral para uma série de disputas e, dentre elas, aquelas de repercussão interna corporis das sociedades de que tratava.

Interessante notar que os conflitos entre sócios e os relativos à liquidação e partilha do acervo social deveriam, necessariamente, ser resolvidas por arbitragem. Em outros termos, essas controvérsias não podiam ser levadas ao Poder Judiciário. A jurisdição era exclusiva e compulsoriamente conferida ao chamado juízo arbitral.

Percebe-se, assim, que naquela época a arbitragem compulsória não era mal vista ou rejeitada.

E deveria ser? Não creio, pois específicos e pontuais conflitos podem e devem ser resolvidos por árbitros.

Devem, pelo fato de certas características e naturezas da controvérsia demandarem especialistas com disponibilidade de tempo para a análise da matéria. Podem, pela certeza de o Poder Judiciário não encerrar o monopólio da justiça.

Com efeito, justiça traduz-se na solução adequada e legítima do conflito, podendo se dar por negociação, conciliação, mediação, juízo estatal, arbitragem, e tantos outros meios fartamente utilizados mundo afora. A própria renúncia ao direito em que se funda a ação põe fim ao conflito por mera manifestação de vontade dos interessados.

O que importa é a licitude e legitimidade do meio adotado. Nem mais, nem menos.

Quando a questão é decidida por um terceiro, como na arbitragem, o relevante é as partes terem assegurado o direito à ampla defesa e ao contraditório. Nesse sentido, o que o Estado deve garantir aos seus jurisdicionados é o acesso a uma justiça cujos julgadores sejam imparciais e o procedimento esteja impregnado do devido processo legal. Se assim é, e assim for, inexiste empecilho á arbitragem compulsória.

Retornando ao Código Comercial, especificamente à arbitragem societária, alegra perceber o quão modernos eram os legisladores de então, se comparados aos atuais.

À época não se estabeleceu condições ou obstáculos para a introdução de cláusula compromissória no contrato social. Valia a maioria, pois as vantagens da arbitragem eram reconhecidas.

Os sócios e a sociedade, cientes e conscientes dos benefícios do instituto, demandavam a solução arbitral para suas disputas.

Já nos dias de hoje, com pesar, a visão inverteu-se.

Muito embora não neguem o valioso papel da arbitragem para a solução dos conflitos societários, incoerentemente, os legisladores impuseram duas barreiras à sua inserção no contexto das companhias: quórum qualificado e direito de recesso. Em pouquíssimas palavras, uma pena.

Caminhando no tempo, observamos o grave revés sofrido pela arbitragem, ainda na segunda metade do século XIX, pelas mãos de José Thomaz Nabuco de Araújo, então integrante do Gabinete de Olinda e pai do saudado Joaquim Nabuco.

Por sua iniciativa a arbitragem obrigatória é banida e, pior, com o intuito de dispor sobre a arbitragem voluntária, os efeitos da cláusula compromissória inserta em qualquer contrato (portanto, não somente naqueles previstos no Código Comercial) passaram a estar condicionados à assinatura de um novo instrumento – o compromisso -, após deflagrada a disputa.

Com duas rápidas penadas, apagam-se as luzes da ribalta passando a arbitragem ao escuro do ostracismo, onde permaneceu por mais de 100 anos.

Por essa razão, forçoso avançar bastante no tempo, até chegarmos à década de 1980, quando um início de esperança desponta sem que se alcance, contudo, resultado prático.

Esforços vindos do Poder Executivo, nomeadamente do Ministério da Justiça, resultam na elaboração de três anteprojetos de lei os quais, entretanto, não conseguem reavivar a arbitragem. Isso porque, permaneceram – os três anteprojetos – engavetados, não tendo sido, sequer, encaminhados à tramitação no Congresso Nacional.

Ventos favoráveis começam a soprar no início da década de 1990, por meio de legislações do setor público, área essa que passou a demandar maior volume de investimentos e vislumbrou na arbitragem mecanismo facilitador para a captação de recursos.

Estávamos na era das privatizações, e o governo Fernando Henrique Cardoso, preocupado em atrair grandes players do mercado nacional e internacional para incrementar a competitividade do certame e, dessa forma, alcançar o sucesso financeiro na alienação das estatais, vê na arbitragem instrumento relevante para a atração de investimentos, dado ser componente expressivo na equação econômico-financeira dos contratos.

Com efeito, as legislações voltadas para as atividades das estatais a serem privatizadas passam a dar tratamento especial à arbitragem ao incluí-la dentre as cláusulas essenciais dos contratos de concessão. Diga-se, ainda, não por mérito próprio do instituto, e sim por interesse governamental.

É nesse cenário que a Lei Marco Maciel é editada e retira a arbitragem do fundo do poço onde, infelizmente, restou adormecida por mais de um século.

Nesse momento, é sempre bom lembrar o incansável trabalho e esforço empenhados por Petrônio Muniz, homem a quem coube comandar a chamada Operação Arbiter.

Operação essa que não somente redundou na promulgação da Lei de Arbitragem, mas, também, manteve-a indene a ataques – alguns sorrateiros – já após sua constitucionalidade ter sido declarada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal. Tudo com muita cordialidade, alegria e, acima de tudo, enorme vitalidade e tenacidade.

Do mesmo modo, reserva-se a Marco Maciel, honrado e festejado homem público, papel de grande importância no percurso do anteprojeto até sua conversão na Lei n. 9.307/96. Sua sagacidade foi fundamental para a inserção do instituto no sistema legal brasileiro.

Fica aqui minha particular, breve e modesta homenagem a esses próceres da arbitragem no Brasil.

Com a Lei Marco Maciel, e a sua constitucionalidade resolvida, a arbitragem toma incrível rota ascendente, apoiada por empresários, juristas, jovens advogados e pelo Poder Judiciário.

Propagam-se as conferências, os seminários e os debates sobre a nova lei, acompanhados de artigos e livros e do crescente número de estudiosos, a ponto de serem lançadas duas revistas jurídicas dedicadas ao instituto.

É também nesse momento inicial que aparece o grupo de interessados em mediação. Esse grupo, de excepcional qualidade, convivia com aquele de entusiastas da arbitragem, naturalmente em maior número, aproveitando os vários eventos para propagar os méritos da mediação.

Não tardou para o querido pessoal da mediação “deixar a carona” no trem arbitral, para ganhar merecida vida própria.

Aliás, impressiona observar como o pessoal da mediação foi conquistando espaço ao longo do tempo e, com dedicação e persistência, difundindo e semeando a cultura da mediação em campo, à época, por demais inóspito e arredio.

Com certeza, e para minha satisfação, o esforço e a perseverança não foram em vão. A luta de guerrilha resultou na edição de lei própria e no reconhecimento da valiosa contribuição da mediação para a pacificação social.

Sua importância consta estampada no Capítulo das Normas Fundamentais do Processo Civil, cujo art. 3º, parágrafos 2º e 3º do Código informa cumprir ao Estado promover, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos, e, para tanto, elenca a mediação como um desses métodos a ser implementado pelos operadores do Direito.

Por certo, não há dúvida sobre a relevância da mediação como meio eficaz de resolução de desavenças e impasses. Essa realidade é corroborada pelos organizadores deste livro, pois nele arbitragem e mediação caminham juntas e, pelos temas dos articulistas, denota-se a eficácia da mediação na solução de variados e inúmeros conflitos.

E não é somente na área de família e sucessões que a mediação ganha musculatura. É também valiosa para a resolução amigável das controvérsias de natureza contratual e empresarial e, não se olvide, das querelas que tocam o setor público.

Enfim, vida longa e profícua à mediação!

De volta à arbitragem, inesquecível e memorável o apoio a ela dado pelos Ministros do Superior Tribunal de Justiça. De sua jurisprudência firme e consistente, emergiu a tão almejada segurança jurídica, e com ela o país passa a ser considerado “amigo da arbitragem”.

Tudo isso – e não é pouco – traduz-se em um grande facilitador para o incremento do tráfego comercial e da captação de recursos estrangeiros, e foi devidamente vocalizado nas conferências e fóruns de debates internacionais e nacionais. E por todos aplaudida a guinada positiva no ambiente arbitral brasileiro.

Nessa esteira, a ratificação da Convenção de Nova Iorque, em 2002, foi outra clara indicação dos novos ventos que levavam para ainda mais distante o malfadado passado recente, e arejavam o porvir.

Outrossim, com a transferência do Supremo Tribunal Federal para o Superior Tribunal de Justiça, em 2004, da competência para reconhecer e homologar sentenças arbitrais estrangeiras, essa Corte alterou jurisprudência, antiga e retrógrada, para modernizá-la, sob novos ares e liberta de indesejável conservadorismo.

Com efeito, dos 75 processos atinentes ao reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras julgados entre 2005 e 2016, o Superior Tribunal de Justiça denegou apenas 7 deles. Somente no período de janeiro de 2013 a outubro de 2016 foram julgados 31 processos, sendo 28 deles assegurado o exequatur.

Nesses acórdãos, a Corte firmou o entendimento de que a ela descabe rever o mérito da sentença arbitral e que as partes podem ser notificadas da instauração do processo arbitral de acordo com as formalidades previstas na lei aplicável. Nesse particular, como cediço, a lei brasileira de arbitragem, de forma inovadora, permite que essa notificação seja efetivada por qualquer meio de comunicação, desde que a parte brasileira tenha assegurado tempo razoável para apresentar sua defesa.

Ademais, assentou entendimento de que a existência de ação judicial no foro brasileiro não impede a homologação de sentença arbitral estrangeira. Não bastasse, argumentos fúteis ou não relevantes de a sentença arbitral estrangeira violar a ordem pública foram devida e categoricamente rechaçados.

Em leading case, não foi dado curso no território nacional à decisão arbitral anulada pela justiça estatal do país da sede da arbitragem.

Em linha com a contemporaneidade, o Superior Tribunal de Justiça entendeu que sentença arbitral que contenha fundamentação sucinta, mas apta a permitir a análise dos requisitos incidentes na análise do pedido de homologação não afronta a ordem pública. É suficiente, no caso, a estrutura da fundamentação aplicada às sentenças do local da sede da arbitragem.

Por fim, os pedidos de homologação denegados o foram, basicamente, por força da falta de comprovação da existência de convenção de arbitragem.

A par da firme posição do Superior Tribunal de Justiça em favor da arbitragem, não é rara, ainda, a participação de seus ministros em simpósios sobre arbitragem e em cujas apresentações e debates são expostos pontos de vista positivos ao instituto, em subliminar mensagem para as demais instâncias do Poder Judiciário. No mesmo sentido, os artigos e as entrevistas de ministros atuais e aposentados da Corte.

Evoluindo no tempo, a primeira década do século XXI revelou a integração da arbitragem ao setor público, por via de leis específicas, e a consequente participação da administração direta e de empresas públicas em processos arbitrais.

Em 2015, o novo Código de Processo Civil, de forma similar à mediação, eleva a arbitragem a instrumento fundamental do processo civil (art. 3º, parágrafo 1º), reafirmando a relevância do instituto no mundo da resolução das disputas.

O mesmo diploma aproveita para codificar alguns dos regramentos próprios ao instituto. A título de exemplo, confere à carta arbitral eficácia jurídica de comunicação entre a jurisdição arbitral e a estatal, e reafirma a prevalência do princípio kompetenz-kompetenz.

Nessa toada, reitera ser a sentença arbitral título executivo judicial, e ter efeito meramente devolutivo a sentença judicial que remete a parte relutante à arbitragem.

No mais, afirma, também, que o reconhecimento de sentenças arbitrais estrangeiras deve conformar-se às regras dos tratados e outras previstas na lei e, subsidiariamente, ao contido no capítulo próprio do referido Código.

Sem dúvida, o novo Código de Processo Civil codifica e cristaliza pressupostos de enorme valia para a arbitragem, e reforça o valor do instituto como mecanismo saneador dos conflitos.

Enfim, passados mais de 20 anos da edição da Lei Marco Maciel e de centenas de processos arbitrais, anima perceber o quanto árbitros, instituições, advogados e partes angariaram em experiência e têm ajudado a consolidar e aperfeiçoar a prática arbitral no país.

É notável a evolução administrativa de câmaras de arbitragem, notadamente do pessoal de apoio. Também visível a melhoria dos aparatos, estruturas e regulamentos dessas instituições.

Outrossim, a qualidade dos profissionais envolvidos nesse ramo do Direito é inegável. Os advogados têm tido papel de relevo no aperfeiçoamento do exercício da advocacia na seara do contencioso arbitral.

Por seu turno, o chapéu de árbitro permite ver o outro lado da lua, de onde se revelam as idiossincracias tão particulares a nós, advogados. Trata-se, nada obstante, de experiência ímpar que somente a arbitragem é capaz de proporcionar.

Mas, não deitemos em berço esplêndido, pois a evolução da arbitragem no Brasil não se traduz somente em acertos. Conquanto em menor número, erros são detectados e não podem deixar de ser encarados por todos os seus operadores. Devem ser descortinados e avaliados, pois alguns dos equívocos são sensíveis ao futuro da arbitragem.

E o que aflige é que muitos não admitem, outros não querem ver ou saber e outros tantos contestam sem qualquer base ou experiência. Por isso, ainda que seja desconfortável e incômodo, e em franca minoria há que se vocalizar essas imperfeições, pois o fim, por certo, há de justificar.

Sem embargo, o futuro da arbitragem está em boas mãos. Os jovens encamparam com coração e alma esse instituto tão dinâmico e célere quanto o espírito próprio da juventude. Jovens e arbiragem têm identidade e características similares. Quando se cruzam, ocorre o match!

Os estudantes e os jovens advogados disputam, com louvor, competições em fóruns nacionais e internacionais, criam grupos de estudos e debates e dão os primeiros passos na elaboração de artigos e participação em eventos, fatos esses que evidenciam a efetiva consolidação da arbitragem no Brasil.

Quando ainda sub judice a constitucionalidade da Lei n. 9.307/96, eu já afirmava “a arbitragem pegou”, e, com o brilhantismo, dedicação e entusiasmo dessa turma jovem, posso também afirmar, sem medo de errar que a arbitragem veio para ficar.

Lisboa, abril de 2018.

Pedro A. Batista Martins

  1. Originalmente publicado em Temas de Mediação e Arbitragem III. (Coordenação NASCIMBENI, Asdrubal Franco; BERTASI, Maria Odete Duque; RANZOLIN, Ricardo Borges Ranzolin (coords.). Belo Horizonte: Lex, 2019.