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Pedro A. Batista Martins

I. Introdução

De início, é bom deixar registrado algumas premissas e boas verdades.

Primeiro, a arbitragem não substituirá – nunca – o Poder Judiciário. Muito embora jurisdições que se toquem e se entrelacem, trilham caminhos paralelos com vistas ao fim maior de administração da justiça e pacificação dos litígios. Em suma, guardam elas papel, estrutura e dinâmica próprias.

Segundo, a arbitragem não se presta a efetivamente desafogar o Poder Judiciário do excessivo número de processos judiciais, haja vista que, se algumas demandas são levadas à arbitragem, não é parcela de todo expressiva vis-à-vis aquelas encaminhadas aos tribunais estatais. E não se olvide, ademais, que questões arbitrais passaram a ser levadas à decisão dos juízes togados.

Por fim, uma verdade: arbitragem não sobrevive sem o apoio do Poder Judiciário. São duas as circunstâncias que permitem ao empresário optar pela arbitragem e escolher o local da sede: a qualidade da lei de arbitragem e o apoio do Poder Judiciário ao instituto. Esses dois aspectos indicam ser tal país “amigo da arbitragem” e encerram algo fundamental ao investidor: segurança jurídica.

Arbitragem e Poder Judiciário são, portanto, vias de realização da justiça que caminham em paralelo e em constante cooperação. Essa colaboração, notadamente conduzida pelos juízes togados, em várias fases da arbitragem, funda-se no fato de que dos cinco elementos que compõem a jurisdição (notio, vocatio, coertio, executio e iurisdictio), ao árbitro não é assegurado os poderes de coerção e execução.

Considerada essa temática, são vários e de diversas ordens os aspectos da distribuição da jurisdição entre o juiz estatal e o árbitro, da cooperação entre um e outro e dos limites da censura dos atos deste por aquele. Essa temática e essa distribuição regem-se por algumas diretrizes centrais, representadas (a) pelo respeito à vontade das partes que convencionaram a solução de seus litígios por árbitros, com derrogação da jurisdição estatal, (b) pela autonomia da arbitragem, (c) pelas naturais limitações do poder dos árbitros, (d) pela necessidade de obstar os efeitos corrosivos do tempo-inimigo, oferecendo meios para que a pessoa possa obter com a desejável tempestividade uma tutela jurisdicional adequada à situação, e (e) pela garantia constitucional do controle jurisdicional, entendida como promessa de apreciação de litígios e pretensões pelo juiz natural moldado no Poder Judiciário.

Essa decantada distribuição da jurisdição com a colaboração, o afastamento e a intervenção da justiça estatal percebe-se, com maior clareza, ao dividirmos em fases a arbitragem: pré-arbitral, arbitral e pós-arbitral.

II. Fase Pré-Arbitral

Essa etapa principia com a assinatura pelas partes da convenção de arbitragem, haja vista os efeitos que se irradiam desse pacto: renúncia à justiça do Estado e submissão dos conflitos oriundos ou relacionados ao contrato à jurisdição extrajudicial. Sem embargo, mantém-se dormente até o surgimento do conflito.

A fase pré-arbitral prolonga-se até a aceitação da nomeação dos árbitros, momento no qual, devidamente constituído o Tribunal Arbitral, exsurge a jurisdição dos árbitros. Note-se que os árbitros somente detêm poderes jurisdicionais a partir do instante em que todos são confirmados[1]. Sob outro ângulo, a aceitação para compor o painel arbitral não é ato procedimental suficiente a conferir vestes jurisdicionais à pessoa indicada.

Portanto, entre o surgimento do conflito, a instauração da arbitragem e a completa formação do painel – período no qual a jurisdição escolhida ainda não se revelou –, existem providências que demandam a cooperação do juiz togado, de forma a assegurar a eficácia da cláusula compromissória e, bem assim, a manifestação de vontade das partes.

São providências judiciais típicas dessa etapa que antecede a investidura jurisdicional dos árbitros (1) os provimentos cautelares, e (2) os atos judiciais determinando a instituição da arbitragem.

Quanto às tutelas de urgência, dada a finalidade de tais medidas – garantir a utilidade e a eficácia da sentença final, pendente de completude jurídica a convenção de arbitragem –, compete ao juiz togado decidir o pedido de urgência, sob pena de se denegar acesso à justiça. Esclareça-se, desde já, que, uma vez constituído o Tribunal Arbitral, o provimento judicial pode ser revogado, modificado, concedido ou mantido, tendo em vista que o meio de solução dos conflitos escolhido foi a arbitragem; ou melhor, as partes livremente optaram por retirar da justiça comum a análise e decisão sobre os conflitos resultantes das cláusulas e condições ajustadas contratualmente, para assegurá-las aos árbitros.

No que toca a imposição do conflito à arbitragem pelo juiz estatal, essa circunstância verifica-se nas hipóteses em que a cláusula compromissória contempla lacunas que não permitem a instauração da arbitragem sem a cooperação judicial. Ocorre com as chamadas cláusulas vazias, notadamente quando não há estipulação sobre a forma de nomeação de árbitros.

A atuação do juiz togado também se faz imperativa para remeter a parte à arbitragem quando ela busque a justiça estatal ao arrepio do pacto compromissório e, consequentemente, em afronta à boa-fé negocial.

Abro, no entanto, uma pequena e estreita exceção, exatamente para as hipóteses contempladas no art. II, 3, da Convenção de Nova Iorque[2], que permitem ao juiz estatal afastar a cláusula compromissória e, dessa forma, atrair a jurisdição para a resolução da controvérsia.

Os três casos admissíveis – cláusula arbitral nula e sem efeito, inoperante ou inexequível – devem ser avaliados mediante profunda análise para, no limite do extremo – dado o caráter extraordinário que seus efeitos encerram –, desconsiderar o princípio universal da kompetenz-kompetenz, um dos pilares do instituto da arbitragem.

Como se sabe, esse princípio implica na atribuição aos árbitros para examinar e decidir sobre sua própria competência (rectius, jurisdição). Em suma, o árbitro é o primeiro juiz a decidir sobre sua jurisdição. Exceção a esse quase absoluto pressuposto – que é o art. II, 3, da Convenção de Nova Iorque – deve ser tratada de forma estrita e excepcional.

Pode-se afirmar, destarte, não ser amplo ou ilimitado o exame pelo órgão judicial da ocorrência das hipóteses objeto da ressalva em questão. Ao reverso, a análise é adstrita, pois voltada a uma situação jurídica patente à primeira vista. Em outras palavras, há de se demonstrar que a cláusula arbitral é nula e sem efeito, inoperante ou inexequível com dados e elementos evidentes e convincentes a uma simples mirada. Estamos no campo de uma verossimilhança soberana.

Com efeito, a sistemática da análise limitada pelo Judiciário e da verificação ampla pelos árbitros encarna o espírito de cooperação do juiz togado na fase pré-arbitral aliada à rapidez da solução ictus oculi nessa esfera judicial amparada por uma verificação profunda pelos árbitros, com ampla produção probatória, que, ao final, e de forma também célere, decidirá a questão por meio de uma decisão prévia específica sobre a controvérsia.

III. Fase Arbitral

Confirmada a composição do Tribunal Arbitral, é dos árbitros, e somente deles, o exercício dos poderes jurisdicionais. Desse modo, investidos da iurisdicto e dado início à fase arbitral, a longa manus do Estado não deve interferir no curso do procedimento, exceto se solicitada pelos árbitros, especificamente para com eles colaborar na imposição das medidas determinadas pelo Tribunal Arbitral. Em síntese, a ausência de poderes coercitivos pelos árbitros demanda a interação arbitragem-justiça estatal de modo a tornar efetiva a resolução do conflito por arbitragem e, portanto, eficaz a vontade das partes.

São exemplos de medidas de apoio judicial o incumprimento por uma parte de provimento cautelar determinado pelos árbitros, a relutância na produção probatória por uma das partes ou mesmo por terceiros e ao comparecimento forçado (sob vara) de testemunha à audiência.

Com efeito, segundo a communis opinio doctorum, durante a fase arbitral o Poder Judiciário torna-se órgão de apoio e cooperação com o Tribunal Arbitral, com a finalidade comum de realização adequada e eficiente da justiça. Há, nessa fase, uma ação harmoniosa do órgão judiciário com o Tribunal Arbitral, em sistema integrativo das duas jurisdições.

IV. Fase Pós-Arbitral

Esgotado o procedimento arbitral, com a entrega da sentença definitiva e eventual decisão sobre embargos arbitrais, aí sim, a justiça estatal pode ser chamada a intervir no produto dele resultante, ou seja, reprovar ou não a sentença arbitral.

O caminho é o da ação judicial fundada nas hipóteses estampadas na lei. Essa intervenção deve, por certo, ser avaliada cum grano salis pelo julgador.

Isso porque, o princípio relevante a considerar é o da preservação da sentença arbitral. Afinal, o painel de árbitros é livremente escolhido pelos demandantes, fundados na confiança que depositam nos indicados, o que implica certo grau de responsabilidade das Partes – maior do que quando se submetem à jurisdição pública, onde jamais podem indicar o julgador – e o emprego dilatado da boa-fé no manejo por estas da ação de desconstituição dos efeitos da sentença arbitral.

Enfim, há que se prestigiar o princípio da segurança das relações jurídicas. Ao optarem pela arbitragem, as Partes manifestam a intenção de afastar o Poder Judiciário e de resolver a disputa por uma via não recursal e, via de regra, acatar a decisão arbitral. Portanto, atenta contra à segurança jurídica, à boa-fé e à legítima expectativa a busca da intervenção judicial para anular decisão arbitral cujo conteúdo, basicamente, não atende aos interesses da parte perdedora.

Em suma, é razoável, justificável e, mais ainda, recomendável que o Poder Judiciário verifique, atentamente, as razões que fundamentam os pedidos de desconstituição dos efeitos da sentença arbitral, impondo as penalidades cabíveis à parte emulativa para, com isso, assegurar aos contratantes a plenitude teleológica do pacto expresso na convenção de arbitragem. Garantir que a manifestação de vontade cristalize, ao fim e ao cabo, o que as partes de boa-fé almejam e legitimamente esperam ao afastar a jurisdição estatal: resolver os conflitos oriundos ou relacionados ao contrato por, e unicamente por arbitragem.

  1. Art. 19. Considera-se instituída a arbitragem quando aceita a nomeação pelo árbitro, se for único, ou por todos, se forem vários.
  2. Art. II, 3. O tribunal de um Estado signatário, quando de posse de ação sobre matéria com relação à qual as partes tenham estabelecido acordo nos termos do presente artigo, a pedido de uma delas, encaminhará as partes à arbitragem, a menos que constate que tal acordo é nulo e sem efeitos, inoperante ou inexeqüível.