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CONSULTA

Indaga-nos o Consórcio XY (“CXY” ou “Consulente”), constituído por X S.A. e Y S.A., por seus ilustres advogados, sobre a possibilidade de reunião de três procedimentos de arbitragem instaurados na Câmara AM de Arbitragem (“Câmara”) de conformidade com suas regras procedimentais (“Regulamento”).

Em sede administrativa, consoante decisão comunicada através de correio eletrônico, o Diretor Executivo da Câmara, após manifestação das Partes, indeferiu a solicitação de consolidação dos procedimentos de arbitragem feita por CXY, sob o fundamento de que embora uma das Partes – Alfa S.A. (“Alfa”) – encontre-se sempre no polo passivo, as demais Partes arroladas como demandadas, em cada um dos procedimentos, seriam distintas.

De todo modo, as empresas Beta S.A. (“Beta”) e Omega Ltda. (“Omega”) concordaram em consolidar dois dos procedimentos instaurados (ns. 2 e 3), o que, no entender do CXY, não é suficiente, dado ser imperativo a reunião de todos os três procedimentos, de forma a se evitar potenciais inconsistências ou controvérsias que resultarão de sentenças arbitrais conflitantes, à luz das questões postas nas respectivas arbitragens.

Os procedimentos de arbitragem em questão são os seguintes (“Procedimentos de Arbitragem”):

Pedido de Arbitragem n. 1

Requerentes: Beta e Omega.

Requeridos: CXY e Alfa.

Pedido de Arbitragem n. 2

Requerentes: Beta e Omega.

Requerido: CXY.

Pedido de Arbitragem n. 3

Requerente: CXY.

Requeridos: Consórcio Contal (“CC”) e seus integrantes, Beta, Omega e Alfa.

Segundo informa o Consulente, os Procedimentos de Arbitragem resultam de controvérsias oriundas do Contrato de Fornecimento de Bens e Serviços para Implantação de UHE e do Sistema de Transmissão Associado, firmado por CXY e CC, em conjunto com as empresas que os constituem, respectivamente, X e Y, de um lado, e, Beta, Omega e Alfa, de outro (“Contrato”) e, portanto, de única e idêntica cláusula compromissória e, ainda, envolvendo somente as pessoas que celebraram o Contrato.

No dizer de CXY, “Todos os Pedidos de Arbitragem têm como causa de pedir mediata o contrato havido entre CXY e CC para instalação do Empreendimento, usina hidrelétrica localizada no Rio Dourado. Outrossim, todos os Pedidos de Arbitragem têm como causa de pedir imediata o mesmo contexto fático e histórico, em relação aos quais surgem os questionamentos relativos ao adimplemento do Contrato e solidariedade entre partes. Os Pedidos de Arbitragem têm, por fim, as mesmas partes envolvidas, bem como pedidos entrelaçados e dependentes uns dos outros.[1]

A indicação dos membros dos respectivos Tribunais Arbitrais deu-se da seguinte forma:

 

Pedido de Arbitragem n. 1:

Em XX.XX.XXXX, o Diretor Executivo da Câmara indicou os três membros do Tribunal Arbitral, que será composto pelo Drs. Árbitro 1 e Árbitro 2 e pelo Prof. Árbitro 3 (Presidente).

Pedido de Arbitragem n. 2:

A Beta e a Omega indicaram, como co-árbitro, o Dr. Árbitro A; o CXY indicou, como co-árbitro, o Prof. Árbitro B; em seguida, os árbitros indicados pelas Partes escolheram o Prof. Árbitro C para a presidência do Tribunal Arbitral.

Pedido de Arbitragem n. 3:

O CXY indicou, como co-árbitro, o Prof. Árbitro B; a Alfa indicou, como co-árbitro, o Dr. Árbitro J; a Beta e a Omega concordaram com a indicação feita pela Alfa, sendo certo que, até esta data, os co-árbitros indicados pelas Partes ainda não escolheram o Presidente do Tribunal Arbitral.

Diante da exposição fático-jurídica, passemos ao delineamento das questões que envolvem a consolidação de processos arbitrais, cientes de que se trata de matéria, no meu melhor entendimento, não explorada pela doutrina brasileira e, por outro lado, ainda não submetida ao crivo judicial.

PARECER

1. Tecnicamente, consolidação é a reunião de dois ou mais processos arbitrais em única arbitragem e sob o comando de um Tribunal Arbitral que irá apreciar e, ao final, decidir todos os pedidos objeto dos requerimentos contidos nas arbitragens que se encontravam separadas.

O objetivo da consolidação de diferentes processos de arbitragem é manifesto: visa permitir maior eficiência na condução do procedimento e evitar conflito ou inconsistências resultantes de sentenças proferidas por tribunais arbitrais distintos sobre matérias que deveriam ser julgadas de forma uníssona.[2]

A eficiência encerra a adoção de um procedimento capaz de extrair maior rendimento com redução de custos e dispêndios de tempo e dinheiro. Mira a melhoria do rendimento procedimental, como, exemplificativamente, a centralização da produção de prova oral e pericial nas mãos de um mesmo painel de árbitros, a redução de tempo das testemunhas, custos de locomoção e hospedagem e, mesmo, de honorários de advogados.

Sendo um só o painel de árbitros, as provas, naturalmente, não necessitarão ser produzidas mais do que uma vez, bem como os fatos e direitos que lhes são comuns restarão analisados por um tribunal arbitral, ao invés de dois ou três. A economia processual é, pois, razoável fundamento lógico e jurídico a recomendar a reunião de processos de arbitragem instaurados de forma isolada.

O julgamento uniforme das demandas, por seu turno, é fator fundamental no campo da administração da justiça. Volta-se para a utilidade da sentença arbitral. É corolário da segurança jurídica e da eficácia das decisões e, por certo, matéria de extrema relevância jurídica.

É, portanto, sob essa ótica de grandeza jurídica que a consolidação ou reunião dos Procedimentos de Arbitragem deve ser encarada.

Falo em reunião ou agrupamento posto que, ao fim e ao cabo, é esse o objetivo do Consulente ao buscar a união dos Procedimentos de Arbitragem. Não quer ele a consolidação típica em que todos os procedimentos são unificados sob um mesmo número e procedimento, mas, ao contrário, deseja CXY, tão somente, e a fim de se conferir eficiência e segurança jurídica aos distintos processos arbitrais, que sejam eles, muito embora mantidas suas identidades de Partes e pedidos, e, assim, distinguidos entre si pelos seus respectivos números de ordem, agrupados sob a égide de único painel de árbitros. Trata-se das chamadas arbitragens paralelas.

Repita-se: não quer CXY a consolidação dos Procedimentos de Arbitragem, em seu formato puro e típico, mas, unicamente, que sejam agrupados e submetidas suas questões e pedidos individualizados em cada um dos Procedimentos de Arbitragem a painel de árbitros com formação única de seus membros, em prol da utilidade da sentença final e da economia processual.

Sendo esse o interesse do Consulente, em muito se esvaem as críticas ou obstáculos apontados pela doutrina em desfavor da consolidação de processos de arbitragem. Isso porque, a par da lógica e da razoabilidade subjacentes ao sistema da consolidação, persistem certas questões que podem afetar a sua implementação.[3]

Entretanto, diga-se de antemão, mesmo não se tratando de adoção da típica consolidação de processos arbitrais, ainda que assim fosse, tenho que os tais obstáculos não afetariam a utilização da consolidação pura no caso concreto[4] e, portanto, tornam-se diminutos no tocante ao agrupamento dos Procedimentos de Arbitragem almejados por CXY.

2. De conformidade com a doutrina estrangeira, a perda da confidencialidade é uma das possibilidades observadas pelos árbitros, Câmaras ou tribunais judiciais para indeferir pedidos de consolidação.

Outra razão levada em consideração para se concretizar ou não a consolidação diz com o potencial aumento de tempo na solução da controvérsia, já que o curso do procedimento, uma vez consolidado, tornar-se-á mais complexo do que se analisados os procedimentos de forma individualizada.

Por fim, outro aspecto abordado para afastar a adoção da consolidação diz com a eventual frustração do direito das Partes de participarem, diretamente, do processo de escolha de árbitros.

Postas as causas e razões de se decidir ou não pela consolidação de procedimentos arbitrais, conforme atesta a doutrina internacional, passo à análise de cada uma das citadas inconveniências para desmistificá-las à luz do caso concreto.

3. Sem que se precise entrar no mérito de a Lei brasileira de arbitragem impor a confidencialidade somente aos árbitros (art. 13, par. 6º), e ser esse pressuposto tratado por parte da doutrina, sem embargo, como inerente ao instituto, o fato é que no presente caso as controvérsias objeto dos Procedimentos de Arbitragem originam-se do mesmo Contrato e envolvem as mesmas Partes contratantes.

Partes essas que integram dois consórcios constituídos para o fim de executar obras e fornecimentos de bens e serviços atinentes a certo empreendimento hidrelétrico. Fornecimentos e obras que se entrelaçam e cujas condições, direitos, deveres e obrigações são de conhecimento de todos os envolvidos, contratante e contratado, e empresas que os constituem.

Destarte, em razão do objeto do vínculo contratual e da coincidência de Partes[5], não há que se falar em perda de confidencialidade, dado que (i) todas as Partes têm ciência dos termos e condições contratuais, (ii) os fornecimentos de bens e serviços e a execução de obras são obrigações que tocam direta ou indiretamente todas as Partes envolvidas e, (iii) consequentemente, eventuais falhas e inadimplementos contratuais acabam por ser de conhecimento dos Consórcios e, por via indireta, de seus membros.

Logo, não se pode falar em perda de confidencialidade quando esta se mantém íntegra, visto se tratar de questões que dizem respeito unicamente às Partes contratantes. Em outros termos, impertinente a alusão à perda de confidencialidade quando as questões arbitradas não extrapolam a esfera dos direitos e obrigações das únicas pessoas que celebraram o Contrato no qual se insere a cláusula compromissória.

Quanto ao potencial incremento de tempo por força da complexidade procedimental das arbitragens que, instauradas isoladamente, restam por ser consolidadas, essa perspectiva deve ser, primeiramente, ponderada pela economia processual que a centralização dos procedimentos gera, conforme anteriormente mencionado.

Superada essa primeira consideração, a complexidade procedimental pode, de algum modo, fazer sentido nas hipóteses em que não há real inconveniência ou efetivo prejuízo a que os conflitos sejam processados de forma destacada e isolada por cada tribunal arbitral.

A título de exemplo, o credor pode, eventualmente, exigir do fiador o pagamento de indenização pelo inadimplemento do devedor principal, enquanto este e o seu fiador debatem em outra arbitragem as razões do (des)cumprimento contratual. Nesses casos, fiador e credor poderão acertar, posteriormente, eventuais débitos e créditos.

Na presente situação, como dito por CXY, há questões manifestamente colidentes que não podem ser analisadas e decididas isoladamente[6], como acontece nas situações em que a consideração da possível delonga do procedimento de arbitragem é autorizada para fins de afastar a consolidação.

No caso concreto, demora haverá, por certo, na eventualidade de não se proceder ao agrupamento ou à consolidação dos Procedimentos de Arbitragem, visto que a prolação de sentenças arbitrais colidentes resultará em questionamentos perante o Poder Judiciário, após o esgotamento de todo o percurso da via arbitral; em franca desarmonia com os fins almejados pelas Partes quando da opção pela via arbitral de resolução de conflitos e, consequentemente, pela não interferência do Poder Judiciário.

Em descompasso, no todo, com as técnicas impostas às relações processuais como ratio determinante e assecuratória de uma tutela jurisdicional justa e adequada. Afinal, a disciplina da consolidação nada mais é do que corolário da segurança jurídica e do correto exercício da jurisdição. Encerra, assim, um interesse público (interest rei publicae) que, ao repudiar interesses egoístas, conduz a consolidação à esfera da ordem pública.

As razões que a orientam, e a sua própria finalística, não se pode negar, transcendem a conveniência das Partes e visam a higidez do processo. O Direito, por certo, não tolera sentenças colidentes como as que podem surgir do caso em exame, vez que atentam contra a ordem pública e são, portanto, passíveis de análise pelo Poder Judiciário.

Com efeito, composição da lide não haverá se inaplicada a consolidação – ou o agrupamento – aos Procedimentos de Arbitragem em questão, uma vez que, colidentes as sentenças arbitrais, serão elas questionadas judicialmente; o que significa dizer, ao fim e ao cabo, que os Procedimentos de Arbitragem instaurados não solucionarão os conflitos postos, mas, ao contrário, projetarão novas e indesejadas lides.

Por fim, a questão da indicação de árbitro pelas Partes. Conquanto esse direito seja realçado no campo da arbitragem, e deva ser, no limite, preservado, o fato é que não se trata de um direito absoluto, vez que pode ser protegido através de outros mecanismos, nomeadamente a adoção do princípio da igualdade.[7]

A Lei brasileira de arbitragem põe às claras a relatividade de tal direito[8] ao autorizar que a nomeação de árbitro seja efetivada pelo juiz togado, e não diretamente pelas Partes envolvidas na arbitragem, conforme art. 7º, par. 4º, art. 13 e art. 16, par. 2º. O mesmo ocorre na Lei Modelo da UNCITRAL – adotada por várias legislações estrangeiras – em seus arts. 6 (2), 7 (2) e (3) e 13. Nessa toada, o próprio Regulamento da Câmara, escolhido de comum acordo pelas Partes para regular os Procedimentos de Arbitragem, transfere a escolha do(s) árbitro(s) para o seu Diretor Executivo, nos termos do art. @, parágrafos 1º e 2º, direito esse, por sinal, já exercido pelo Diretor Executivo no âmbito do Procedimento de Arbitragem n. 1.

Portanto, não há que se amplificar o direito das partes de nomear árbitro quando, se sabe, não se consubstancia dito direito em valor jurídico extremo à luz da salvaguarda que encerra o princípio da igualdade, pressuposto esse que se encontra assegurado no Regulamento da Câmara.

As razões acima, creio, são suficientes para afastar os obstáculos vislumbrados, muitas vezes, à adoção da consolidação de processos arbitrais e, repita-se, com muito mais ênfase, ao singelo pedido de agrupamento dos Procedimentos de Arbitragem.

4. E não se sustente a ausência de consentimento expresso para se obstar o pretendido agrupamento (e mesmo a consolidação, fosse o caso), pois essa manifestação pode constar – como consta – implícita no contexto em que se funda a cláusula compromissória.[9]

Muito embora a cláusula compromissória inserta no Contrato que vincula as Partes nos Procedimentos de Arbitragem em questão nada disponha sobre a consolidação (ou agrupamento) de arbitragens instauradas isoladamente, dela também não extrai qualquer objeção à sua implementação. O mesmo resulta do Regulamento da Câmara que, a par de silenciar quanto à consolidação de processos arbitrais, deixa uma senda aberta para a sua solução ao tratar de arbitragens multipartes e, nessas hipóteses, estabelecer os meios e modos de se resolver a questão de nomeação de árbitro, aspecto fundamental que aflora nas arbitragens que envolvem múltiplas Partes e, com frequência, nas ocorrências de consolidação como já mencionado. Em outros termos, a indicação do árbitro far-se-á pela vontade coletiva das partes de um mesmo polo ou, na ausência de consenso, por indicação do Diretor Executivo da Câmara de todos os integrantes do tribunal arbitral, nos termos do art. @, parágrafo 2º, in fine.[10]

Quer isso dizer que o direito de indicar árbitro, como visto acima, resta mantido para todas as Partes, de maneira uniforme, e, na ausência de consenso, desponta e prevalece o princípio da igualdade, já que caberá ao Diretor Executivo a nomeação de todos os três árbitros que comporão o tribunal arbitral.

Mais ainda, no presente caso, o agrupamento dos Procedimentos de Arbitragem não envolveria pessoa distinta das que se encontram vinculadas aos efeitos da cláusula compromissória. A cláusula de arbitragem está inserta em único Contrato em que as Partes contratantes são as mesmas que integram os distintos processos arbitrais. Não se pretende reunir procedimentos com pessoas que não são Partes da mesma cláusula compromissória. Muito ao contrário.

Do mesmo modo, não há que se falar em regras de procedimento diferentes daquelas livremente acordadas pelas Partes. O Contrato é o mesmo, assim como é a cláusula compromissória, a sede da arbitragem, o idioma, a Câmara e as regras de procedimento.

Repita-se: não se trata de analisar a consolidação (ou, no caso, agrupamento) de processos arbitrais fundados em contratos autônomos, com diversidade de (i) partes, (ii) cláusula compromissória, (iii) câmara de arbitragem, (iv) regimento de custas, (v) idioma, (vi) lei aplicável, e/ou (vii) regra procedimental, hipóteses que implicam maiores preocupações e cuja complexidade impõe aprofundado exame que pode levar a uma natural restrição à sua implementação.

Ora, diante dessas considerações é de se inferir que, embora não tenha constado expressamente da cláusula compromissória a disciplina da reunião dos Procedimentos de Arbitragem, também dela – cláusula compromissória – não consta nenhuma objeção ou vedação à consolidação ou agrupamento das disputas originadas da execução do Contrato e que possam ter dado causa à instauração, isolada, dos Procedimentos de Arbitragem.

Ademais, os Procedimentos de Arbitragem que se quer agrupar não apresentam os elementos dificultadores da consolidação (menos ainda do agrupamento), sendo justo supor que nada obsta a sua efetivação quando as circunstâncias assim demonstrarem, como é a hipótese do caso concreto. Ou, mais ainda, quando as circunstâncias assim impuserem, dada a relevância jurídica da reunião dos procedimentos.

Assim como alguns aspectos que envolvem o alcance e os efeitos de uma cláusula compromissória, apesar de nem sempre encontrarem-se explícitos no dispositivo contratual, podem dele ser extraídos (v.g. local da sede; lei de regência; número de árbitros), da mesma forma nada obsta que a possibilidade ou não de consolidação conste implícita no pacto arbitral.

Essa interpretação extrai-se da estrutura contratual e da relação que vincula as Partes, bem como do texto da cláusula compromissória. E, ainda, com base em considerações de eficiência e consistência quanto aos resultados da consolidação.[11]

No caso concreto, existe apenas uma relação jurídica entabulada em único instrumento contratual, no qual se insere uma cláusula compromissória. Evidencia-se, portanto, uma unicidade do ato e do negócio jurídico como um todo. Unicidade material, dado ser uma só a relação negocial; unicidade processual, por ser una a cláusula de arbitragem; e, unicidade formal, por força de os vínculos de direito material e processual encontrarem-se encartados em somente um instrumento contratual.

Esses fatos, por si só, já são hábeis a conduzirem o intérprete na senda da viabilidade da pretensão do Consulente.

5. Mas, pode-se avançar e aprofundar ainda mais nessa vereda.

São Partes dessa relação dois consórcios; um, na qualidade de contratante (CXY) e o outro, de contratado (CC). O consórcio, como sabido, não tem personalidade jurídica (art. 278, parágrafo 1º, Lei n. 6.404/76), caracterizando-se por uma comunhão de objetivos e interesses das sociedades que o integram.

À luz das nuances que encerram o instituto consorcial, regra geral, todas as pessoas que se encontram unidas em consórcio firmam os instrumentos contratuais relevantes, como de fato ocorreu na assinatura do Contrato e de seus aditivos.

Destarte, conquanto os contratantes sejam os respectivos consórcios – CXY e CC –, as empresas que os constituem também integraram a relação jurídica.

Nessa toada, não se pode negar que, desde a gênese do vínculo contratual, era de conhecimento das Partes – CXY, de um lado e, de outro, CC, integrado pelas empresas Beta, Omega e Alfa – que os conflitos resultantes da execução do Contrato implicariam em uma arbitragem multiparte e tinham, inclusive, pleno conhecimento da cláusula compromissória invocada por elas próprias nos pedidos de instauração de arbitragem.

Conhecimento esse que reforça o dever de lealdade processual e de colaboração na estruturação e disciplinamento dos Procedimentos de Arbitragem.

Difícil, portanto, justificar a negativa de se agrupar (ou mesmo, consolidar) os Procedimentos de Arbitragem, ainda mais quando cientes as Partes da unicidade material, processual e formal em que se funda, desde a sua gênese, a relação jurídica que as vincula.

Por sinal, é esse um dos típicos casos em que a autorização para a consolidação de arbitragens extrai-se, de forma substanciosa, do contexto em que se encerra a cláusula compromissória.

Nesse sentido, registra Gary B. Born: “The role of implied agreement to consolidation has particular importance where three (or more) parties agree to the same arbitration agreement contained in the same underlying contract, but do not expressly deal with issues of consolidation and joinder/intervention. In these circumstances, there is a substantial argument that the parties have impliedly accepted the possibility of consolidation of arbitrations under their multiparty arbitration agreement and/or joinder of other contracting parties into such arbitrations (…) On this theory, the parties’ joint acceptance of a single dispute resolution mechanism, to deal with disputes under a single contractual relationship, reflects their agreement on the possibility of a unified proceeding to resolve their disputes, rather than requiring fragmented proceedings in all cases”.[12]

Note-se que, mesmo no caso em que vários instrumentos contratuais traduzem uma unicidade negocial, a consolidação das diversas arbitragens que resultam da transação é o caminho lógico e razoável, como atesta Philippe Leboulanger: “When the agreements make up one single business transaction, the interplay between the undertakings cannot be ignored, as there exists within the contractual context a kind of freedom of circulation of obligations and interrelated debts. Whenever obligations were undertaken for the accomplishment of a single goal and are economically interdependent, the different disputes should be appreciated on an overall basis”.[13]

No mesmo sentido Fouchard, Gaillard e Goldman: “However, it is generally legitimate to presume that by including identical arbitration clauses in the various related contracts, the parties intended to submit the entire operation to a single arbitral tribunal”.[14]

Em linha com a doutrina é de se ressaltar a seguinte decisão de tribunal arbitral CCI: “Le tribunal arbitral justifie la recevabilité d’une demande unique d’arbitrage par deux séries de raisons. D’abord, il se fonde sur la volonté des parties. L’adoption d’une clause compromissoire dans um second contrat lié au premier n’implique pas que les parties aient voulu souscrire à la procédures arbitrales différentes pour chaque contrat. Le tribunal trouve de surcroît dans l’attitude des parties préalablement à l’arbitrage des índices de leur volonté de voir régler leurs différents dans um contentieux arbitral unique. Um accord transactionnel avait ainsi prévu que les litiges éventuels seraient réglés d’après la clause d’arbitrage du contrat cadre. La second ligne de raisonnement du tribunal arbitral se rapporte au lien de connexité entre les contrats litigieux. Le tribunal releve que les contrats avaient été conclus pour l’exécution entre les mêmes parties d’une opération unique du commerce international. D’autres arbitres ont également jugé que l’interdépendance es questions litigieuses et le caractere homogène de l’operation envisagée s’opposait à ce que deux tribunaux arbitraux soient constitués d’après chaqu

e clause d’arbitrage, le jugement de toutes les demandes par um unique tribunal arbitral étant seul de nature à donner effet à la volonté des parties”.[15]

Vê-se, às claras, ser plenamente legítima a pretensão do Consulente que, por sinal, se encaixa, justamente, nas circunstâncias em que a consolidação e, por certo, o agrupamento são de todo admitidos.

6. Com efeito, não se pode intuir que, à vista do imbricamento de questões jurídicas cruciais, cuja análise e julgamento por tribunais arbitrais distintos podem resultar em sentenças de eficácia conflitante, o desejo de uma parte possa levar o intérprete a desautorizar a reunião dos Procedimentos de Arbitragem.

Daí a contundência de Fouchard, Gaillard e Goldman: “The injustice of such outcome [risk that a different arbitral tribunal is constituted and that contradictory awards may result] is all the more severe for the fact that the parties will all have signed the same arbitration agreement. This suggests that all of the issues should be decided by the same arbitral tribunal, whenever it is not incompatible with the requirement of equality between the parties in the constitution of the arbitral tribunal. That requirement would not be met were the third party obliged to accept the choice of arbitrators made by the first two parties”.[16]

O mencionado princípio da igualdade, diga-se mais, projeta-se na estruturação dos Procedimentos de Arbitragem, de modo a assegurar a todos os envolvidos um julgamento justo e adequado, e, portanto, eficiente e eficaz juridicamente.

Com efeito, não é suficiente a manifestação contrária de uma parte para se afastar a reunião dos Procedimentos de Arbitragem, a exemplo do que ocorreu no caso objeto da consulta formulada. O posicionamento contrário de uma parte não pode ser encarado como óbice intransponível à reunião das arbitragens. A autonomia da vontade, embora relevante no campo da arbitragem, não é um bem jurídico absoluto. Conquanto importante para o instituto, a vontade deve estar embasada em fundamentos sólidos e associada a uma realidade fático-jurídica razoável, sob pena de se transmutar em mera emulação. Sob pena de se extravasar a boa fé e de a manifestação da vontade exceder os limites do exercício regular de um direito.

A autonomia da vontade manifestada no ajuste de cláusula compromissória, não se pode olvidar, gera deveres e obrigações que devem ser cumpridos à luz da boa fé – balizador do exercício do direito – e de seus deveres acessórios, nomeadamente lealdade[17] e colaboração.

Ao acordarem na solução de conflitos pela via arbitral, as Partes, por suposto, optaram pela celeridade e afastamento do Poder Judiciário. Este traço característico das manifestações volitivas da espécie colide, frontalmente, com a conduta de Partes que se opõem à pretensão do Consulente de consolidar os Procedimentos de Arbitragem (ou agrupá-los) cujo efeito é, justamente, o de conferir coerência procedimental e eficácia à sentença arbitral.

Por tudo, hão de ser repudiados esforços contrários à consolidação quando a apreciação das questões postas nos Procedimentos de Arbitragem mostra ser mais eficiente se levada a cabo por único painel arbitral e, ainda, dado o grave risco de as sentenças deles resultantes colidirem entre si.

Questões essas cruciais ao profícuo desenrolar de qualquer procedimento arbitral não podem ser olvidadas pelos árbitros ou pela Câmara (nos limites de suas funções), dado que a estes se impõe o dever de diligência que importa, dentre outros, imprimir os melhores esforços no sentido de assegurar às Partes a eficácia da decisão arbitral. Esse dever exsurge das circunstâncias que encerram o instituto da arbitragem e onde sobressaem a celeridade e a especialidade do árbitro as quais, aliadas ao claro desejo das Partes de evitarem a lide judicial, conduzem os árbitros e a instituição de arbitragem a buscarem, no possível, a concretização do referido dever. E tal se sobreleva pelo fato de a sentença arbitral não ser passível de recurso e que o remédio final é a busca judicial de sua anulação.

Diante de todo o exposto, tenho que a hipótese sob exame encarna o típico caso de consolidação e, sem dúvida, de agrupamento, aceito pela doutrina e jurisprudência internacional como imperativo para a eficiente administração da justiça.

Pedro A. Batista Martins

Setembro de 2010.

  1. Enquanto no Procedimento de Arbitragem n. 1 as Demandantes Beta e Omega requerem a declaração de ausência de solidariedade entre elas (Beta e Omega), no Procedimento n. 2, as mesmas Demandantes almejam ver declarado o cumprimento integral ou substancial das obrigações contidas no Contrato, bem como a ocorrência de desequilíbrio econômico. No Procedimento de Arbitragem n. 3 o Demandante (CXY) postula condenação solidária dos Demandados no pagamento de todas as penalidades e indenizações previstas no Contrato, por força do inadimplemento do Consórcio (CC) e de seus membros – Beta, Omega e Alfa.
  2. Confira Gary B. Born, International Commercial Arbitration, Vol. II, The Hague, Kluwer, 2009, pp. 2069/2070; Fouchard, Gaillard e Goldman, International Commercial Arbitration, The Hague, Kluwer, 1999, p. 661.
  3. Cf., dentre outros, Gary B. Born, op. cit., p. 2071 e segs; Julian D. M. Lew, Loukas A. Mistelis e Stefan M. Kröll, Comparative International Commercial Arbitration, The Hague, Kluwer, 2003, pp. 400/401; e, Mauro Rubino-Sammartano, International Arbitration Law and Practice, 2nd edition, The Hague, Kluwer, 2001, pp. 297/305; Philippe Leboulanger, Multi-Contract Arbitration, Journal of International Arbitration vol. 13, n. 4, December 1996, Emmanuel Gaillard, The Consolidation of Arbitral Proceedings and Court Proceedings, in Complex Arbitration, Special Supplement 2003, ICC International Court of Arbitration Bulletin, p. 35 e segs.
  4. As aparentes inconsistências de Partes figurarem em polos distintos em alguns dos Procedimentos de Arbitragem podem ser sanadas com a adoção, no procedimento consolidado, de pedidos contrapostos e cruzados.
  5. Isto é, as pessoas que integram os Procedimentos de Arbitragem são as mesmas que firmaram o Contrato, não existindo, portanto, terceiro não vinculado ao pacto arbitral inserto no Contrato.
  6. Cf. nota 1 supra.
  7. Foi esse princípio que levou a Corte Internacional de Arbitragem da CCI, após decisão da Corte de Cassação francesa no clássico caso Dutco, a alterar seu Regulamento para introduzir o art. 10 (2). Essa alteração foi replicada mundo afora em grande parte dos regulamentos de arbitragem, inclusive no da Câmara (cf. art. @, parágrafo 2º).
  8. A relatividade do direito de indicar diretamente o árbitro é confirmado pela jurisprudência judicial francesa: “French courts require that all parties have equal rights regarding the designation of arbitrators and the parties` freedom in choice of arbitrators is not illimited”. (Philippe Leboulanger, op. cit., pp. 89/90).
  9. A análise da autorização implícita para se decidir pela consolidação é admitida e levada a efeito pela doutrina (cf. Gary B. Born, op. cit, p. 2083 e segs; Fouchard, Gaillard e Goldman, op. cit., p. 302; Julian D. M. Lew, Loukas A. Mistelis e Stefan M. Kröll, op. cit., p.394).
  10. Art. @. (…) parágrafo 2º. Na hipótese de arbitragem com pluralidade de partes requerentes e/ou requeridas, cada um dos pólos indicará, de comum acordo, 1 (um) árbitro. Na falta de acordo, competirá ao Diretor Executivo da Câmara a nomeação de todos os integrantes do tribunal arbitral.
  11. São essas premissas que decisões judiciais norte-americanas adotam nos casos da espécie: “(…) a number of U.S. courts have held that an agreement to consolidation can be implied – where the parties’ contract is silent – from contractual provisions and structure, as well as from considerations of efficiency and consistency of results.” (Gary B. Born, op. cit., p. 2083).
  12. O autor informa que Cortes de justiça norte-americanas decidiram pela consolidação em situações idênticas ou similares a do texto (op. cit., p. 2084).
  13. op. cit., p. 53.
  14. op. cit., p. 302. No mesmo sentido, cf. Julian D. M. Lew, Loukas A. Mistelis e Stefan M. Kröll, (op. cit., p. 394). Gary B. Born também entende ser apropriada a consolidação mesmo nos casos em que três ou mais Partes firmam contratos diferentes, mas correlatos, e, ainda que a cláusula compromissória não seja idêntica, mas, ao menos, substancialmente similar, como é comum nos contratos de construção e de compra e venda de mercadorias (op. cit., pp. 2084/2085).
  15. Caso n. 5989, 1989, Collection of ICC Arbitral Awards 1996-2000, p. 465.
  16. op. cit., pp. 661/662.
  17. Leale (dal latino legalis) é colui che mantiene le promesse fatte, si manifesta sincero ed è nemico delle finzioni”. (Manlio la Rocca, Profili di un Sistema di Responsabilità Processuale, Napoli, Morano editore, s/ data, p. 87.)