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Pedro A. Batista Martins[1]

1. “O acionista é tolo e arrogante: tolo porque nos dá seu dinheiro; arrogante porque ainda deseja receber dividendo” (frase do banqueiro alemão Furstenberg).

2. As ações, títulos representativos do capital das sociedades anônimas, conferem ao seu titular direito de crédito contra a companhia. Ao detentor de ação assegurado o direito imediato à percepção dos dividendos periódicos e mediato e eventual, à participação no acervo social, na ocorrência da liquidação da sociedade. Trata este de direito patrimonial que é conferido ao detentor de ações de companhia, a par do direito de natureza pessoal, também consubstanciado neste título mobiliário[2].

3. O direito ao dividendo está sujeito a duas condições: uma de caráter suspensivo, de que o dividendo resulte de balanço devidamente aprovado pela Assembléia de Acionista; outra de caráter resolutivo, de que a Assembléia Geral não suspenda o pagamento de parte ou da totalidade do lucro distribuível[3].

4. A sociedade anônima, qualquer que seja o seu objeto, tem natureza mercantil e deve visar sempre, e forçosamente, a finalidade lucrativa. O objetivo pecuniário é requisito essencial à própria validade de sua constituição e características peculiar às companhias que, desde seus primórdios têm servido de instrumento aos interesses patrimoniais de seus fundadores. Tanto é que a doutrina e os tribunais têm entendido que se a Sociedade produz lucros mas não os distribui aos seus destinatários naturais – os acionistas – têm estes o direito de pleitear sua dissolução, com fundamento na inexeqüibilidade do seu fim social[4].

5. A perseguição de lucro é princípio legal imposto às sociedades anônimas e sua destinação periódica aos sócios, sob a forma de dividendos, é uma decorrência natural desse preceito. A personificação das sociedades é mera ficção jurídica, onde as pessoas dos sócios são sempre os seus destinatários finais. A função das sociedades anônimas, na expressão de Waldemar Ferreira, é a da máquina de distribuir lucros.

6. Nesse particular, cabe citar o professor A.C. Connell: “When moneys are invested in any business concern it is only natural that the shareholders should expect some recompense or reward for the loan some recompense or reward for the loan of the same. A company is carried on with an idea of making profit, and this profit is something which accrues to the company and increases it assets for the time being. The capital ought, as far as possible, to be kept intact, and employed solely for the purposes of the company. The profit gained (if any) is an additional advantage which is obtained for the shareholder’s by means of trading”[5].

7. Assim, fato é que a participação nos resultados sociais é da essência das sociedades anônimas e inerente ao sistema capitalista, que, indiscutivelmente, deve a elas parcela substancial de seu desenvolvimento e aprimoramento[6].

8. Aqui, uma vez mais, vale citar o renomado Waldemar Ferreira (in Compêndio de Sociedades Mercantis, vol. II, p. 359).

9. “Nada de economizar para enriquecer! Nada disso! A missão da sociedade anônima é distribuir dividendo e nada mais. Para que prever! Para que reter lucros, não incorporados, desde logo, ao capital, por via de seu aumento e distribuição das ações aos seus acionistas? Findo o ano social, ou o semestre, os lucros têm que ser entre eles rateados em dinheiro ou em ações! Cada vez que a sociedade tiver de fazer novas obras ou novas instalações, que aumente o seu capital! Abra subscrições” Angarie ela o dinheiro de que carecer, entre os seus próprios acionistas! Obtenha-o de terceiros enlevados pelas perspectivas dos seus dividendos.”

10. A finalidade lucrativa da companhia, corresponde um direito subjetivo de os sócios haverem para si parcela do lucro correspondente a sua participação societária.

11. Nessa linha, consta assente na doutrina a obrigatoriedade de distribuição de dividendo com recursos oriundos de empréstimo (excetuado o fato de acarretar ônus excessivo), levantado, exclusivamente, para o cumprimento deste dever legal.

12. Trata-se de direito inderrogável, preceito de ordem pública, que se insere no âmbito daqueles erigidos à categoria de essenciais[7].

13. Inderrogável pois não pode ser abolido ou afastado, definitiva ou indefinidamente, mediante estipulação estatutária que vinculará os sócios da Companhia, sujeitando-os ao longo da vida societária aos efeitos jurídicos da espécie[8].

14. A retenção de lucros, deliberadas pela maioria controladora ou qualificada, é, pois, regra de caráter restritivo e excepcional que somente pode ocorrer nos estritos termos legais.

15. Existindo lucro, deve ser ele distribuído, em sua totalidade, aos seus destinatários de direito.

16. Foi este princípio que norteou a nossa lei societária de 1976.

17. Após um período de dois anos de extrema e irreal euforia do mercado bursátil, em 1973 o País conheceu o seu segundo encilhamento. Afora os prejuízos patrimoniais que desabaram sobre os investidores, dano imensurável e de conseqüência mais profundas impôs-se ao mercado de ações: o desencanto e a desconfiança do público investidor.

18. Era necessário reverter a posição e, para isso, inevitável uma reforma de modo a reestruturar, em base mais sólidas, o mercado de capitais. A onda psicológica negativa aos investimentos em ações era tão forte de tal modo arraigada no inconsciente coletivo que a remodelação do mercado de capitais tornou-se uma das metas do Governo Geisel[9]. Essa reconstrução calcou-se, fundamentalmente, na fixação de regras rígidas de proteção ao acionista minoritário, ponto crucial no fortalecimento do mercado primário de ações.

19. Dentre outras práticas utilizadas à época, e que a reforma buscou combater, estava o costume da reinversão sistemática dos lucros do exercício, sob o falso argumento da necessidade do autofinanciamento, o que gerava a incerteza do acionista quanto ao retorno regular do seu investimento e acabava por desestimular a aplicação de recursos pelo investidor.

20. Ao término do ano de 1976, a Lei n° 6.385, de 7 de setembro, estabeleceu novas diretrizes ao mercado de valores imobiliários e criou a Comissão de Valores Mobiliários e, em 12 do mesmo mês entra em cena a atual Lei das S.A., cuja espinha dorsal é a salvaguarda dos interesses do acionista não controlador.

21. No que concerne ao presente estudo, é de salientar que a Exposição Justificativa das principais inovações do projeto da atual Lei das S.A. atesta que a “proteção do direito dos acionistas minoritários de participar, através de dividendos nos lucros da companhia exige a definição de regime legal sobre formação de reservas, que limite a discricionariedade da maioria nas deliberações sobre a destinação dos lucros”[10].

22. Muito utilizada no passado, como meio de inviabilizar a distribuição dos dividendos aos acionistas, a constituição de reservas passou a ser submetida, na atual lei das companhias, a critérios mais rigorosos e transparentes, de modo que a sua criação sirva para os estritos propósitos de preservar a sobrevivência da empresa, e nunca para o intuito de tolher o direito do acionista ao percebimento de sua renda.

23. Óbvio que, se a criação de novo e fortalecido mercado de capitais tinha por pressuposto maior o estabelecimento de regras objetivas de proteção aos interesses do minoritário-aspecto crucial na alavancagem do mercado primário – nada mais justo e linear que o conceito de ação, como título de renda variável, fosse efetivamente reintroduzido.

24. A distribuição de dividendos atrai os poupadores, fortalece o mercado primário e favorece o alargamento do mercado como um todo, indo, pois, ao encontro da mens legis da nossa lei das companhias[11].

25. Sem dúvida que, para o acionista, o primeiro direito patrimonial a vislumbrar é o da participação nos lucros sociais.

26. A participação no acervo líquido, inobstante assegurado ao sócio. é por deveras relegado pelo investidor, em razão de a liquidação da sociedade, em condições normais de temperatura e pressão, se fato alheio ao presente e não cogitado para o futuro. O rendimento que o investidor pode obter em retorno ao capital aplicado é aquele advindo da distribuição de dividendos.

27. Tal pressuposto reforça-se ainda mais, se focalizarmos as companhias fechadas, onde o ganho de capital na alienação dos títulos participativos não oferece muito espaço pela quase inexistência de mercado de negociação.

28. Mormente, é de ressaltar que os recursos ingressados na sociedade, a título de capital social, em contrapartida à subscrição de ações, não pode retornar aos sócios (princípio de intangibilidade) exceto em caso de liquidação da empresa e após pagos os credores[12].

29. Uma vez mais, repita-se: as bases em que se estruturou a nova Lei das S.A. tiveram por fundamento maior a criação de um efetivo mercado primário de ações, com introduções de regras de proteção aos minoritários e de coibição dos poderes discricionários dos majoritários e administradores, bem como, de um amplo regime de distribuição de dividendos, onde a retenção dos resultados sociais é norma de exceção, cuja eficácia jurídica está condicionadas ao firme preenchimento dos requisitos legais.

30. Tem o dividendo, pois, na nova sistemática societária, importância crucial, inclusive como fator relevante de alavancagem do mercado de capitais nacional.

31. Como bem salientou Lacerda Teixeira e Tavares Guerreiro, “…hoje, mais do que nunca, os lucros devem ser distribuídos, tanto quanto possível. O autofinanciamento das empresas mediante a reaplicação de seus resultados positivos torna-se, a bem dizer excepcional, no regime agora vigente…”[13].

32. O princípio da participação nos lucros e nos prejuízos é da essência das sociedades comerciais.

33. Tanto que qualquer disposição contratual ou deliberação assemblear que viole esse preceito é crivada de nulidade.

34. Em sintonia com esse princípio de ordem pública, a Lei n° 6.404/76 fez inserir, na seção dos direitos essenciais, a participação dos acionistas nos lucros sociais.

35. O problema que aflora, quando da distribuição dos lucros é o eterno conflito sociedade X sócios, onde os tutores da doutrina do autofinanciamento discorrem sua ideologia[14].

36. Podemos alinhar algumas das vantagens anunciadas pelos defensores da acumulação dos lucros na sociedade: a) sendo próprio o capital evita-se a ingerência de credores em assuntos sociais assegurando-se, assim, ampla liberdade de ação da sociedade; e b) com o autofinanciamento, a produção expande-se sem a necessidade de aumento dos financiamentos externos e sem o risco das taxas de juros.

37. Em oposição às teses antes expostas, apresentam-se os seguintes argumentos: a) a retenção de lucros pode gerar poderio excessivo aos administradores que controlam a utilização dos fundos; b) retenção dos fundos sociais desencoraja os aplicadores que direcionam suas poupanças para outros investimentos; c) a não distribuição de lucros ocasiona diminuição do consumo; d) o reinvestimento pode servir para fortalecer as tendências de concentração econômica indesejáveis sob o ponto de vista da defesa econômica; e)o reinvestimento pode, também, dar azo ao aparecimento das multinacionais, empresas quase públicas que, não raro, se sobrepõem aos Estados, cuja atuação tem sido motivo de multa controvérsias e preocupação[15].

38. Vale salientar que, nos idos de 1971, o Prof. Alfredo Lamy Filho, em estudo encomendado pela IPEA (A Reforma da Lei das Sociedades Anônimas), afirmava que no aperfeiçoamento do sistema legal imposto às sociedades anônimas, deveria ser levada em consideração a obrigação de pagar dividendo, a fim de evitar a autofinanciamento abusivo.

39. Nota-se que, inobstante o princípio que impera de distribuição da totalidade dos lucros, a Lei das S.A. não se opõe à retenção dos resultados sociais. Apesar de direito essencial, inderrogável, este caracteriza-se por sua renunciabilidade. Pode a maioria, em determinadas situações, – desde que plenamente justificadas de forma conscienciosa – e em benefício da sociedade, sacrificar direito da minoria e abdicar a parte do resultado da empresa que faria jus[16].

40. Note-se que o interesse social é o fator preponderante a justificar a não distribuição dos lucros sob pena de caracterizar-se o abuso de direito ou desvio de poder (expressão esta preferida por alguns estudiosos), pela privação indevida dos acionistas minoritários aos lucros existentes.

41. Nesse sentido, é autorizada sua retenção para os firmes propósitos de utilização em empreendimentos futuros vinculados à atividade social (art. 196), para cobrir perdas prováveis (art. 195) e para preencher reservas específicas já previstas no estatuto. Podem, também, os acionistas, deixar de perceber dividendos mínimos no caso extremo de incompatibilidade com a situação econômica da empresa (art. 202, § 4°) ou, em se tratando de companhia fechada, quando a assembléia por deliberação unânime dos presentes, assim o decidir.

42. Cabe ressaltar que a política de manutenção das atividades sociais, via autofinanciamento, é assegurada, em parte e indiretamente, com a utilização dos fundos das contas de depreciação, amortização e exaustão e daqueles provenientes das provisões expressas nas contas retificadoras do ativo.

43. De todo modo, a deliberação da assembléia geral sobre a retenção de parte ou totalidade dos lucros, há que ser sempre precedida de um sem número de informações e dados apresentados aos acionistas pela administração.

44. Por outro lado, as regras de proteção a direito tão fundamental do acionista são bastante rigorosas. Assim, a manutenção de fundos na sociedade para constituição das reservas estatutárias e para fazer frente a planos de investimento não poderá ser aprovada em prejuízo ao dividendo mínimo obrigatório, além de estar sujeita a limite legal. A constituição das reservas previstas na lei, exceto a legal, não prejudicará o direito ao dividendo a que os preferencialistas tenham prioridade.

45. Como se depreende, a não distribuição de lucros aos acionistas conflita como direito subjetivo e essencial que este tem de participar nos fundos sociais e como próprio sistema legal da nossa lei do acionariato. É, pois, regra especial, de caráter excepcional, que somente tem eficácia se a deliberação tiver sido, devida e previamente, fundamentada pelos administradores e vier revestida dos requisitos legais apropriados.

46. Assim, para os casos de necessidade de acumulação de lucros, o que está a lei a exigir, de forma coerente, é que a deliberação não seja decidida, discricionariamente, pelo controlador, em flagrante desrespeito ao minoritário.

47. Nos casos do art. 196 (i.e., financiamento de investimentos), os órgãos da administração estão obrigados a apresentação de detalhado orçamento de capital, onde conste, dentre outros, especificado cronograma das diversas etapas do investimento, discriminação minuciosa das origens e custos dos recursos, suas aplicações, estimativas, dos valores a serem empregados na execução do negócio e eventuais comprometimentos de lucros futuros.

48. Por ser o único documento no qual os acionistas se baseiam para discernir a viabilidade da proposta da administração, torna-se este o fiel da balança numa eventual discussão sobre a necessidade de se capitalizar a companhia em detrimento do direito inalienável dos acionistas ao percebimento dos dividendos.

49. No regime da lei societária anterior (art. 130, § 3°), a criação dessa espécie de reserva era livre, não se subordinava a pré-requisito legal, bastando, para sua constituição, de tranquila deliberação majoritária.

50. O sistema atual prova que o alijamento do acionista do resultado social é fato de sumo relevo, que deve ser tratado de modo consciencioso, a fim de assegurar os interesses da minoria. Neste sentido, afirma Fran Martins (in Comentários à Lei das S.A., vol. 2, tomo II, p. 703) que, “a retenção arbitrária dos lucros colide com o impostergável direito do acionista em receber dividendos. Sem regramento legal específico, pode a maioria compelir a minoria a ceder suas ações por valores ínfimos ou mesmo simplesmente nominais, em correspondente enriquecimento indébito da maioria controladora”.

51. Quando da destinação de parte do lucro líquido para constituição de reservas de contingências (reserva de natureza assemblear), em detrimento patrimonial do acionista, os órgãos da administração devem apresentar proposta indicativa da causa da perda prevista e justificar as razões que recomendam a retenção da parcela do lucro correspondente[17].

52. Necessariamente, “os fundamentos da proposta deverão ser objetivamente expostos, de modo a afastar qualquer decisão subjetiva baseada apenas em receios não fundados em fatos comprováveis ou em simples opiniões… Todo esse cuidado se explica porque a reserva para contingência pode reduzir, substancialmente, o lucro disponível para distribuição como dividendo”[18].

53. Na eventualidade de a companhia necessitar reter a totalidade dos lucros sociais a conta de reserva especial, por ser a distribuição incompatível com a situação financeira em que se encontra a empresa, é condição sine qua non para a tomada da decisão seja apresentada aos acionistas pelos administradores, exposição justificativa das razões e fundamentos da retenção.

54. Caso em funcionamento, curial a formulação de parecer pelo Conselho Fiscal, no tocante às informações apresentadas pela administração.

55. Já no caso das reservas estatutárias, a sua criação está subordinada a requisitos preliminares e de vital importância na salvaguarda dos direitos dos acionistas: a) indicação precisa e completa de sua finalidade; b) fixação dos critérios de determinação da parcela anual dos lucros líquidos que serão a ela destinados; c) previsão do seu limite máximo.

56. O Decreto-Lei n° 2.627/40 (art. 130, § 1°) não cogitou delimitar o poder da maioria quando da constituição dessa reserva. Pontes de Miranda, ao contrário, sempre sustentou, fervorosamente, que o estatuto deveria precisar o fim de tais reservas, como forma de anular o poder exacerbado e, eventualmente, arbitrário, da maioria controladora[19].

57. Cabe ressaltar, ainda que nas companhias fechadas, a deliberação assemblear que aprova a distribuição de dividendo em montante inferior ao obrigatório ou a retenção de todo o lucro social, somente será válida e eficaz se não houver oposição de qualquer acionista presente à assembléia, incluindo, nesse caso, os não votantes[20].

58. Outrossim, fato é que também neste caso, independentemente de previsão legal expressa a deliberação deve ser sempre fundamentada em minuciosa justificativa[21].

59. Denota-se que a não distribuição dos lucros sociais aos acionistas é fato relevante, de extrema importância, e, por isso, deve ser sempre precedida de amplas e detalhadas informações à Assembléia Geral, da forma mais transparente, de modo a que o minoritário, especialmente, possa formas o juízo adequado a respeito da matéria. Impera, pois, o princípio maior do full disclosure, em prol da tutela dos acionistas aos dividendos sociais.

60. Meio de alijar o minoritário de direito patrimonial essencial forçoso admitir que os preceitos que impingem a apresentação de transparentes e adequados orçamentos, propostas e demais informações, são de ordem pública.

61. Segundo Modesto Carvalhosa, analisando o § 4° do art. 202, “se não apresentado esse relatório ou se o mesmo for omisso, reticente, incompleto ou não fundamentado, pode o acionista requerer a nulidade formal da declaração da assembléia por violação do preceito legal ora comentado”[22].

62. A deliberação assemblear que aprovas a retenção de parte ou totalidade dos lucros sociais, nos casos dos arts. 194, 195, 196 e 202, tem efeito resolutivo, operando por si, de pleno direito. Caso não se faça necessária a utilização dos fundos provisionados nas reservas de contingência e especial, ou se verifiquem inconsistente (quiçá simuladas!) com o propósito apresentado no orçamento ou especificado no estatuto, o seu saldo deve, necessária e prontamente, destinar-se a imediata distribuição aos acionistas.

63. Isto porque a lei em questão, neste particular, criou sérios embaraços à acumulação de riquezas pela sociedade.

64. Nesse sentido, impôs a legislação do acionariato limites máximos às reservas de lucros, devendo ser capitalizado ou distribuído o montante que exceder o capital social, exceção feita às reservas de contingência e de lucros a realizar.

65. É mais uma regra de proteção dos interesses da minoria. Como bem sustenta Ascarelli (ob. Cit. P.446), “este limite visa a tutela do acionista à distribuição dos lucros. Esta tutela é frisada quando as reservas excessivas devam ser distribuídas. Caso, ao contrário, possam ser capitalizadas, a tutela do acionista assenta nas maiores dificuldades da capitalização decorrente do quórum necessário para uma alteração do capital”.

66. E é, inclusive, em razão dessa tutela assenta no quórum, referida por Ascarelli, que podemos concluir que o aumento de capital por deliberação do Conselho de Administração não se aplica aos casos de capitalização de lucros ou de reservas.

67. O aumento de capital por deliberação do órgão societário, em virtude de prévia autorização estatutária, contida no art. 168 da Lei das S.A., não se aplica a incorporação de lucros e reservas sociais. Para a capitalização de tais fundos deve ser ouvida a voz dos sócios, convocados a deliberar em assembleia geral.

68. Enquanto reservas, acumulam-se na Companhia, e não obstante muitas vezes correspondidas por maquinários, mercadorias e outros bens, os fundos a elas correspondentes encontram-se disponíveis, o que não acontece quando da sua conversão ao capital social.

69. Neste caso, os montantes das reservas e lucros transferidos ao capital-cifra de retenção – passam a integrar, definitivamente, o patrimônio social, não podendo reverter para os bens pessoais dos acionistas senão, a rigor, no caso incomum de liquidação da companhia.

70. Isto porque, o capital social corresponde a um mínimo de riqueza no ativo da sociedade em prol dos direitos daqueles credores que com ela negociam. Visa a proteger os credores contra o indevido esvaziamento do patrimônio social, através do retorno aos acionistas das entradas realizadas em aumento de capital que, em consonância com os atributos da realidade e fixidez, devem manter-se na sociedade.

71. Assim, com a capitalização, as reservas e lucros até então disponíveis, passam a sujeitar-se à disciplina jurídica do capital social, aumentando, pois, o limite da responsabilidade dos acionistas[23].

72. Tratando-se de direito inderrogável, é inaplicável a outorga de cláusula estatutária, a ser aplicada indiscriminadamente, e de forma definitiva, a todos os casos de espécie, competência ao Conselho de Administração para aumentar o capital social mediante a capitalização de lucros ou de reservas.

73. A renúncia a esse direito e, conseqüentemente, a decisão de efetivamente reter os recursos provenientes desses fundos na sociedade, ampliando, dessa forma, a responsabilidade dos acionistas, deve ser proferida pela maioria, se outro quórum não for especificado, reunidos em assembleia geral devidamente convocada.

74. É esse, inclusive, o entendimento esposado por J.E. Tavares Borba, verbis: “Conquanto haja autorização para aumento de capital, a incorporação de reservas e lucros transcende à competência do conselho de administração, inserindo-se nos poderes da assembléia geral, único órgão habilitado a deliberar sobre a destinação do lucro da sociedade (arts. 132, 192 e 199). Ademais, como a incorporação retira aos acionistas a possibilidade de distribuir, como dividendos, as reservas e lucros incorporados, unicamente os próprios acionistas poderão decidir da conveniência ou não de consumar a capitalização”[24].

75. No mesmo sentido, Mauro Rodrigues Penteado, quando afirma que, “a capitalização de lucros e reservas, por importar em reforma do estatuto social, quer para alterar o valor nominal das ações ou elevar o seu número (art. 169 caput) quer para aumentar a cifra do capital, depende de deliberação da assembléia geral extraordinária…”[25].

76. Sem dúvida, a exegese do artigo 168 da Lei n° 6.404/76, aproxima-se do aumento de capital com entrada de recursos externos, até porque a razão básica de a autorização ser outorgada a órgão administrativo, no entender da communis opinio doctorum é a de agilização na tomada da decisão, com subtração de entraves burocráticos na captação de investimentos de terceiro[26].

77. A sociedade anônima somente pode vir a ser constituída se tiver por finalidade a obtenção de resultados. Gerar lucros, distribuir dividendos é imposição de ordem pública. E, por ser mera ficção jurídica, o seu resultado, a riqueza angariada, deve sempre abastecer os cofres dos seus destinatários finais, até mesmo como forma de fortalecer e desenvolver o mercado primário de ações.

78. A retenção indevida de lucros, mediante artifício, há quem sustente, é forma clara de estelionato. Saliente-se, como agravante, que, nestes casos, o crime estaria sendo praticado contra centenas de milhares de investidores.

79. A prática tem comprovado, em vários casos, que o majoritário, no ímpeto de manter o poder e a influência que a acumulação da riqueza social lhe assegura e, ainda consubstanciado no fato, deveras flagrante, de tratar a companhia como se fora o único proprietário atua, freqüente e deliberadamente, no sentido de bloquear o acesso dos minoritários aos importes que lhes são de direito.

80. Nesse particular, vale trazer à luz o entendimento de Fábio Konder Comparato: “Já salientamos que o desvio de poder difere do ato contra legem, pelo fato de, naquele, o agente procurar respeitar a legalidade formal ou meramente aparente. Assim, o acionista que vota deliberação conflitante com o interesse social procura sempre justificar seu voto com razões de aparente benefício para a sociedade, ou, pelo menos, de inelutabilidde de outra decisão, por imposições inderrogáveis de ordem econômica.

81. É o caso, notadamente, do clássico problema do autofinanciamento. O controlador pode obter satisfação do seu interesse econômico pessoal, na sociedade, sem a distribuição de dividendos, sobretudo quando ocupa postos de direção na companhia e se atribui elevados honorários, além de gozar de outras vantagens inerentes ao cargo.

82. Pode acontecer, mesmo que a sistemática retenção de lucros líquidos constitua uma política deliberada de “congelamento” da minoria, como se diz no jargão societário norte-americano, compelindo-a a desfazer-se de suas ações a baixo preço”[27].

83. Ante o entendimento exposto ao longo deste estudo, correto, afirmar que, nas companhias impera o princípio da distribuição da totalidade dos lucros sociais.

84. O acionista, proprietário de uma parcela do patrimônio da empresa, tem legítimo interesse em haver para si o montante dos resultados apurados pela sociedade para satisfação de seu direito patrimonial, de caráter inderrogável e, consoante alguns, irrenunciável.

85. Assim, não dispõe a maioria de poder soberano e discricionário de reter na companhia, parcial ou totalmente, lucros que, de direito, devem integrar o patrimônio pessoal do investidor.

86. Nesses casos, o controlador sujeita-se a normas imperativas de transparência. Seu campo de manobra foi delimitado e não pode resistir a artimanhas, sob pena de violar direito essencial e de ordem pública

87. E, como todo o direito corresponde uma ação que a assegura, tem o acionista insatisfeito legitimidade para promover a competente medida judicial assecuratória de seus reais interesses[28].

88. Patente, pois, que a mens legis, corretamente, visou tutelar os justos anseios e receios do minoritário, parte vulnerável nas relações de ordem societária. É com esse enfoque, de direito, que se deve interpretar e dirimir os conflitos da espécie.

  1. Advogado, Professor e Consultor em Arbitragem.
  2. Direito pessoal: participar das AGs; nomear administradores; fiscalizar a gestão social. É o direito que tem o sócio de cooperar na vida social (Cf. J.X. Carvalho de Mendonça, in Tratado de 
  3. Direito Comercial Brasileiro, Freitas Bastois, vol III, p.72, 1945). Esse direito condicional é afirmado por Cesare Vivante in Tratado di Diritto Commercialle, 4ª ed., Casa Editrice Douttor F. Vallardi, vol. II, p.404. De acordo com Ap. Cível n° 67568-1, 4ª C, Cível 9SP)”os dividendos somente podem ser distribuídos após deliberação da Assembléia Geral” (Nelson Eizirik, Sociedades Anônimas – Jurisprudência, Rio de Janeiro, Renovar, 1996, p.172).
  4. Art. 206, II, (b) da Lei das S.A. Nesse sentido, R.Requião, in Curso de Curso de Direito Comercial, 8ª ed., Saraiva, p.128, e W.Ferreira, in Tratado de Sociedade Mercantis, 5ª ed. Ed Nacional de Direito vol. IV, p.1.378. Cf. decisões transcritas por W. Ferreira na Ver. Dir. Mercantil, Ind. e Fin. e Ec., 1954, vol IV, p.360, e decisão da justiça de São Paulo (RT 433;313), citada por Osmar Brina Corrêa Lima, in Responsabilidade Civil dos Administradores de S.A., p. 58. 
  5. Companies and Company Law, 2ª ed. p.140.
  6. A Companhia, com sua estrutura participativa, pulverização da propriedade por centenas de milhares de investidores é, sem sombra de dúvida, elemento basilar da moderna economia capitalista. A sociedade anônima tem uma função econômica mais importante: é o veículo de financiamento dos médios e grande empreendimentos. O investidor canaliza recursos próprios na subscrição das ações: passa em decorrências, a participar do empreendimento social e dele se desvincula, a qualquer momento, via alienação dos títulos de que é possuidor. Nesse particular, a livre negociabilidade das ações e sua liquidez são de fundamental importância na captação da poupança pública. 
  7. Art. 109 da Lei n° 6.404/76 e art. 78 da antiga Lei das S.A. (Decreto-lei n° 2.627, de 1940).
  8. Segundo Manuel Antonio Pita, “nem por acordo de todos os sócios poderá ser incluída no contrato uma cláusula que afaste a regra de repartição anual do lucro, precisamente porque aquela regra se destina a proteger não só os atuais sócios, como os que futuramente adquiram essa qualidade” (in Direito aos Lucros, Coimbra, Livraria Almedina 1989, p.112). Conforme a lição de Tullio Ascarelli, “cabe ao acionista um direito individual aos lucros, que não pode ser derrogado nem seque no estatuto originário” (in Problemas das Sociedades Anônimas e Direito Comparado, São Paulo & Cia, 1945, p.442). 
  9. “O Projeto visa, basicamente, a criar a estrutura jurídica necessária ao fortalecimento do mercado de capitais de risco no País, imprescindível à sobrevivência da empresa privada na fase atual da economia brasileira” (trecho da Exposição de Motivos n° 196, de 24.6,79 da atual Lei da S.A.)
  10. Note-se que a constituição de reservas por deliberação da Assembléia deverá ser, sempre, precedida por justificativas amplas por parte da Companhia através dos seus órgãos de administração. Às reservas estatutárias são também impostos limites e critérios que determinem sua criação.
  11. É de se notar que, em termos macroeconômicos, a S.A. é mecanismo da melhoria da distribuição de renda. 
  12. Ressalve as hipóteses de redução do capital social por exercício do direito de retirada ou por ser ele excessivo, vis-à vis os fins colimados pela sociedade.
  13. Das Sociedades Anônimas no Direito Brasileiro, São Paulo, José Bushatsky Editora, vol.2, p.578. Em decisão marcante na ação movida pela Dolge contra a Ford para que esta fosse obrigada a distribuir uma parcela mais substancial dos lucros, o Tribunal de Michigan pontificou que, “uma sociedade não é constituída e não existe senão em favor de seus acionistas”. Nesse litígio, apesar de um capital social de US$ 2 milhões e reservas de US$ 112 milhões de lucro do exercício totalizando US$ 59 milhões, desejava a Ford distribuir, como dividendo, apenas US$ 1,2 milhão; foi obrigada a distribuir US$ 19 milhões (cf. Waldírio Bulgarelli, A Teoria Jurídica da Empresa, São Paulo, Ed Revista dos Tribunais, 1985, p.277). 
  14. Segundo J.L. Bulhões Pedreira e A. Lamy Filho “… o novo regime é instrumento justo e indispensável para proteção dessas minorias contra abusos da maioria, pois há exemplos no Brasil de sociedade anônima que, não obstante realizarem lucros vultosos há mais de 30 anos não contribuem um centavo de dividendo em moeda, o que equivale à expropriação de todo o valor econômico das ações dos acionistas minoritários…” (in A lei das S.A.., Rio de Janeiro, Renovar, 1992, p.166). 
  15. A respeito das vantagens e desvantagens, L.G.P. de Barros Leães, in Direito do Acionista ao Dividendo, São Paulo, 1989, pp. 17-22
  16. A não distribuição do dividendo obrigatório, foge ao âmbito da maioria (cf. art. 202 §§ 3° e 4°, da Lei das S.A.)
  17. Cf. 6° do TJRJ, Ap. n° 3.312 – RT, vol. 610, p.179.
  18. M. Carvalho e N. Latorraca, in Comentários à Lei dos S.A., vol, 6, p.88.
  19. Apud Fran Martins, ob, cit, p.694.
  20. Cf. M.Carvalhosa, ob.cit, p.109. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro já ceidiu que a ausência do acionista não lhe assegura o direito de, posteriormente, vir a questionar a deliberação, bem como não cabe, nos casos do § 3° do art. 202, aplicar as regras dos §§ 4° e 5° do mesmo artigo (Ac da 8ª CC, de 31.3.81, na Ap. n° 15.729, Rel. Dourado de Gusmão, in Dicionário Jurisprudencial da Sociedade por Ações, de D. Arruda Miranda Jr., p.707).
  21. Nesse sentido tb. M.Carvalho, ob.cit., p.108.
  22. Ob. Cit, p.108. 
  23. Ascarelli, comentando o artigo 113 do Decreto-Lei n° 2.627, que tratava da capitalização de reservas, ressaltou que a discussão vivida na França dizia respeito à possibilidade desse aumento ser deliberado por AGO.AGE ou tão-somente, por aprovação “unânime de todos os acionistas”. Nesse particular, o eminente comercialista apoiou esta última tese como se infere do seguinte texto, verbis: quando, ao contrário, a sociedade capitaliza as reservas, o acionista necessariamente participa do aumento; aumenta, por isso, a sua responsabilidade social, independentemente do seu consentimento individual e, apenas em virtude da deliberação por maioria, ao passo que os poderes da maioria não podem abranger a possibilidade de um aumento da responsabilidade do acionista. Era, por isso, justa a preocupação de Houpin & Bosvieus e a hostilidade à capitalização das reservas, a não ser por deliberação unânime de todos os acionistas da sociedade ou quando cada acionista possa optar entre a capitalização e a distribuição, no que respeite à sua parcela nas reservas” (ob.cit, p.472). A unanimidade, para tais defensores, sempre foi necessária, pois o crédito dos acionistas originados no direito às reservas, com o aumento, era compensado pelo seu débito resultante da subscrição de ações; assim, se todas a subscrição de ações exige o expresso consentimento do adquirente, que adere a proposta em caráter irrevogável e irretratável, nem a assembléia geral, por maioria, pode obrigar qualquer sócio aumentar suas entradas de capital e o número de suas ações (cf. Assis Tavares. As Sociedades Anônimas, Lisboa, LCE Ed., 1969, p.94). 
  24. Direito Societário, Rio de Janeiro, Freitas Bastos, 1995, p.368.
  25. Aumentos de Capital das Sociedades Anônimas, São Paulo, Ed. Saraiva, 1988, p.98.
  26. Cf. Modesto Carvalhosa., ob.cit., 5° vol., p.274; Miguel J. Pupo Correia, in Comentários à Lei das Sociedades Anônimas, São Paulo, Ed. Resenha Universitária, p.226; Waldério Bulgarelli, in Comentários à Lei das S.A., São Paulo, Ed. Saraiva, p.18 e J.E. Tavares Borba, ob.cit., p.370.
  27. O poder de Controle na S.A., 2ª ed, p.295
  28. Ação de nulidade ou de anulação da deliberação assemblear, ação de responsabilidade civil e criminal de diretor, fiscal e controlador (cf. Paes Leães, ob.cit.) Ver W. de S. Campos Batalha, in Direito Processual Societário e Mauro Rodrigues Penteado, ob.cit.

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