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1. Arbitragem e Administração Pública

A despeito de históricas reações ao instituto da arbitragem, o Brasil detém certa tradição em submeter seus conflitos à solução arbitral. Ao menos no século XIX e nas primeiras décadas do século seguinte, o país não se furtou a firmar tratados que dispunham sobre a arbitragem. Não bastasse, agregou prestígio com as atuações de importantes figuras nacionais como árbitros em questões de relevo internacional.

Nesse sentido podemos atestar as brilhantes participações como árbitros do Barão de Arinos, do Conselheiro Lafayette e do Barão de Aguiar d’Andrada nas respectivas reclamações mútuas franco-americanas por danos causados às partes por autoridades civis e militares dos respectivos litigantes, durante a guerra de secessão, a expedição ao México, a comuna e a guerra franco-prussiana de 1870 e nas reclamações da França, Alemanha, Grã-Bretanha, Itália e outros contra o Chile, por prejuízos sofridos por nacionais dos países reclamantes, como conseqüência de operações da guerra na Bolívia e Peru[1].

Outrossim, o Brasil não se furtou a resolver conflitos internacionais por arbitragem, tendo em José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, seu notório expoente.

Com efeito, em 1863, o Brasil resolveu por arbitragem divergência com a Grã-Bretanha resultante da prisão, no Rio de Janeiro, de oficiais da fragata inglesa Fort.

No ano de 1870, pendência com os Estados Unidos da América originada do naufrágio da galera norte-americana Canadá, nas costas do Rio Grande do Norte, resolveu-se por arbitragem.

Dois anos após, 1872, reclamação conjunta de Suécia e Noruega, em virtude do abalroamento da barca norueguesa Queen pelo monitor brasileiro Pará, foi solucionada por laudo arbitral.

Da mesma forma, pôs-se fim, em 1873, à reclamação formalizada pelo filho do Almirante Cochrane para recebimento de indenização devida a título de serviços prestados pelo Almirante à causa da independência do Brasil.

Várias questões de fronteira também foram submetidas à solução arbitral. Cite-se, com a Argentina (1900), Guiana Britânica (1904), e reclamações mútuas com o Peru (1910).

Ainda nesse particular, cabe também citar outras questões que o Brasil recorreu à arbitragem:

a) Reclamação formalizada pelo filho do Almirante Cochrane para recebimento da quantia que seria devida a seu pai em função dos serviços prestados à causa da independência do Brasil (laudo favorável ao Brasil – 1873);

b) Questões de limites com a Argentina (laudo favorável ao Brasil – 1900)e com a Guiana Britânica (o laudo proferido pelo Rei da Itália, Victor Emanuel III, foi tão injusto para o Brasil que, posteriormente, foi reexaminado e acordada outra saída amigável – 1904);

c) Questões do território do Acre com a Bolívia (1909);

d) Reclamações mútuas com o Peru, em virtude de problemas ocorridos no Alto Juruá e Alto Purus (1910);

e) Divergência com a Grã-Bretanha, resultante da prisão, no Rio de Janeiro, de oficiais da fragata inglesa Fort (laudo favorável ao Brasil – 1863);

f) Pendência com os Estados Unidos a respeito do naufrágio da galeria americana Canadá, nas costas do Rio Grande do Norte (laudo favorável ao Brasil – 1870); e

g) Reclamação da Suécia e da Noruega em virtude do abalroamento, no porto de Assunção, da barca norueguesa Queen, pelo monitor brasileiro Pará (o laudo declarou improcedente a reclamação – 1872).

No campo dos atos internacionais, relevam-se os tratados firmados pelo Brasil com o Chile (1899) e a Suíça (1924), onde as partes se comprometem a submeter os eventuais conflitos a Tribunal Arbitral.

No âmbito interno, é conhecido o conflito Dr. Werneck v. Estado de Minas Gerais (início do século XX), cujo cerne era o arrendamento da estância hidromineral de Lambari, e que se resolveu por arbitragem.

Pelo mesmo meio extrajudicial deu-se fim à disputa entre Companhia Siderúrgica Nacional e Batista Pereira pela exploração de mina de carvão no Estado de Santa Catarina.

Dessa singela retrospectiva percebe-se ser o Brasil razoavelmente simpático à arbitragem como meio eficaz de resolução de conflitos internacionais, bem como ser expressiva a participação da administração pública em processos arbitrais, alguns, inclusive, de viés comercial.

Nesse sentido, o de maior repercussão foi, sem dúvida, o chamado caso Lage, dada sua judicialização com decisão final do Supremo Tribunal Federal, em 1973[2].

A par de mostrar a face perversa do Estado – i.e., a União Federal -, o caso Lage foi, para os arbitralistas, a confirmação do entendimento de a administração pública poder, sim, submeter-se à arbitragem.

Em síntese, durante a Segunda Guerra Mundial, os bens dos irmãos Frederico e Henrique Lage (notadamente, embarcações) foram expropriados para fazer frente aos esforços de guerra. Posteriormente, lastreada no Decreto-Lei nº 9.521/46, a União Federal submeteu o pleito indenizatório a painel de árbitros, cuja decisão, que fixou o valor da condenação em favor dos Lage, não só deixou de ser cumprida como viu ser contestada a possibilidade de a União Federal resolver, por arbitragem, conflitos com particulares. Em suma, a questão do quantum debeatur não poderia ser, em hipótese alguma, decidida fora da esfera judicial, sob pena de violação à Constituição.

A decisão final da Suprema Corte, contrária aos argumentos da União Federal e à tese de inconstitucionalidade, proferida 30 anos após a perda do patrimônio, encontrou já falecidos os irmãos Frederico e Henrique Lage.

O lado perverso foi, por tudo, a conduta maléfica do Estado em reiteradamente não cumprir os compromissos assumidos, em total desprezo pelos direitos de seus cidadãos e daqueles que com ele travam algum tipo de relação. Justamente ele, o Estado, a quem compete, acima de tudo, dar o exemplo, é quem pratica atos e condutas em desconformidade com o Direito.

O lado positivo foi, exatamente, a decisão do Supremo Tribunal Federal, pois, a partir dela, a administração pública toma, de certa forma, um choque de realidade, que acaba por (i) refletir ao longo da década de 1970, (ii) avançar nos anos 80 – ainda que timidamente – para avaliar a arbitragem, (iii) digeri-la nos anos 90 e, finalmente, (iv) culminar com sua aceitação no início do século XXI.

Explico.

Vivia-se na década de 1970 o boom econômico brasileiro e a baixa na taxa dos juros internacionais, circunstâncias essas que incentivaram as empresas estatais (v.g. Nuclebrás, Eletrobrás, Furnas) a captarem empréstimos externos para alavancar os seus projetos e fazer frente aos investimentos necessários à expansão e melhoria de suas atividades.

Para tanto, o pool de bancos estrangeiros pactuava, contratualmente, com a tomadora do empréstimo e sua garantidora, União Federal, cláusula de resolução de conflitos por arbitragem.

No entanto, hesitavam os consultores jurídicos em emitir opinião legal aos bancos credores (seus clientes) atestando a validade e eficácia da cláusula compromissória, dada outra decisão do Supremo Tribunal Federal[3] e, notadamente, a conhecida relutância do Estado em reconhecer a arbitragem como meio eficaz de solucionar conflitos no território nacional.

Sem embargo, a pressão dos financiadores fazia-se presente e intensificava-se com a decisão do caso Lage.

Na primeira metade dos anos 80, permanece o interesse pelos empréstimos internacionais, do mesmo modo que aumenta a pressão por uma efetiva admissão da arbitragem.

Em sinal de flexibilização, o Banco Central do Brasil emite entendimento pelo qual, de forma não muito objetiva e clara, sinaliza a possibilidade de a União Federal submeter à arbitragem eventual conflito oriundo dos contratos de empréstimo, sem que tal significasse, contudo, renúncia à jurisdição nacional[4].

No entanto, diante do conteúdo não tão afirmativo da citada Resolução BACEN, os consultores jurídicos mantinham as mesmas reservas e ressalvas lançadas nas legal opinions anteriores.

Porém, não se podia negar o lado positivo dessa Resolução, cuja iniciativa encerrava conduta mais amistosa e proativa da administração pública com vistas a mitigar a distância negocial e, assim, reduzir o isolacionismo em que se encontrava o país frente à comunidade internacional. Foi, por certo, um passo adiante e conciliatório.

É dessa década, inclusive, que, a pedido do Ministério da Justiça, são elaborados três anteprojetos de lei dispondo sobre a arbitragem, exatamente de 1981, 1986 e 1988.

Conquanto nenhum deles tenha sido encaminhado ao Congresso Nacional, essa circunstância acentuava a preocupação do Poder Executivo em dotar o país de mecanismo de resolução de controvérsias utilizado com sucesso no exterior, e alinhado aos negócios internacionais.

Nessa linha, o Estado do Rio de Janeiro, em ato pioneiro, edita a Lei n. 1481, de 1989, admitindo o recurso à arbitragem em questões envolvendo a administração pública estadual.

Nos anos 90, a economia brasileira ganha relevância e acentua-se a inserção do país no mercado internacional, seara essa onde sintomaticamente se diz não existir contrato sério sem que dele conste cláusula compromissória.

Nessa esteira, a arbitragem insere-se na pauta governamental; mas é com o Programa de Privatização do governo Fernando Henrique Cardoso que passa a integrar, definitivamente, o cenário jurídico-econômico nacional.

Isso porque o sucesso do Programa de Privatização dependia, sobremaneira, da atração do maior número possível de players para o certame, de forma a aumentar a competição e, assim, incrementar o valor de venda dos ativos das empresas estatais inseridas no projeto.

Mais ainda, era preciso atrair empresas estrangeiras com sofisticado nível técnico e qualificações próprias para operarem o empreendimento. Para tanto, era imperativo que as regras do leilão e das concessões contemplassem termos e condições contemporâneas, em sintonia com aquelas adotadas no plano internacional.

É nesse momento que a arbitragem apresenta-se cristalinamente – ou, em outros termos, confirma-se – como fator essencial na captação dos recursos e na atração de players estrangeiros, posto ser um dos elementos chave na análise da equação econômico-financeira do contrato.

Registre-se, ainda, que a necessidade de vultosos investimentos e de empresas com qualificação técnica específica para operar o segmento em que a estatal atuava impunha a formação de consórcios, com o agrupamento de 3, 4 ou mais sociedades, não raro de origens distintas, sob a égide de um entrelaçamento de instrumentos jurídicos a regular as relações comerciais, financeiras, operacionais e societárias resultantes daquela união de interesses, claramente convergentes na finalidade, mas distintos em direitos, obrigações e deveres.

Nessas especiais circunstâncias, sublinhadas pela outra relação que as sociedades teriam que estabelecer com o poder concedente, as disposições sobre solução de conflitos – disputas essas que, por certo, surgiriam (e surgiram) –, eram de suma importância para as empresas investidoras, dado o impacto que encerram na avaliação dos custos de transação. Sob outro prisma, são tais regras de solução extrajudicial de controvérsias elementos capitais na mitigação do chamado Custo Brasil[5].

Daí porque, em 1995 – portanto, ainda antes da edição da Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307, de setembro de 1996) –, edita-se a Lei de Concessão e Permissão de Serviços Públicos (Lei n. 8.987, de fevereiro de 1995), que aponta a cláusula de arbitragem como essencial para a solução de litígios relacionados aos contratos de concessão.

Em 1997, menos de um ano após a entrada em vigor da Lei de Arbitragem, a Lei do Petróleo (Lei n. 9.478, de agosto de 1997) também indica a arbitragem como cláusula essencial nos contratos da espécie e, no setor de Telecom, a par de a Lei de Telecomunicações adotar a mesma premissa, os contratos de concessão vão além, ao preverem, expressamente, a adoção da arbitragem para a solução das disputas que tratem de matérias atinentes ao equilíbrio econômico-financeiro do contrato, a tarifas, à apuração de indenizações provenientes do término do contrato de concessão e à reversão dos bens utilizados na atividade.

Observa-se dessas iniciativas legislativas a evidente preocupação das autoridades públicas em sensibilizar os empresários internacionais e dar-lhes o adequado conforto para investirem e atuarem no país.

Contudo, não se pode afirmar que a integração da arbitragem no plano jurídico-econômico dos anos 90 deu-se por suas qualidades. Negativo. Conquanto ainda sub judice a constitucionalidade da Lei de Arbitragem, a cláusula compromissória era regularmente introduzida nos marcos regulatórios. Tal fato, surpreendente sem dúvida, deveu-se notadamente a uma necessidade do Estado em ceder às exigências externas para, em contrapartida, receber os recursos e a expertise indispensáveis ao pleno sucesso do Programa de Privatização. A arbitragem, portanto, ainda não era aceita puramente por suas vantagens, mas, sobretudo, por um juízo de conveniência para a administração pública.

É a partir do ano 2000 que o instituto desponta, não mais por meros interesses estatais e, sim, por suas virtudes e respeitabilidade.

Com efeito, em 2001, a Lei n. 10.233, que dispõe sobre a reestruturação dos transportes aquaviário e terreste, elenca a arbitragem dentre as cláusulas essenciais dos correspondentes contratos de concessão.

Mais adiante, a Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE determina que as controvérsias entre os seus associados sejam resolvidas por arbitragem e, para tanto, indica a Câmara FGV de Mediação e Arbitragem como entidade administrativa e seu Regulamento como norteador dos procedimentos envolovendo os agentes desse mercado.

Decisões do Superior Tribunal de Justiça admitem a validade e eficácia de cláusulas compromissórias insertas em contratos firmados pela administração pública indireta, firmando jurisprudência no campo do direito público[6].

O Estado de Minas Gerais, por força da Lei n. 19.477, de 2011, admite a sujeição à arbitragem das controvérsias envolvendo a administração pública estadual, direta e indireta.

Percebe-se desse breve registro jurisprudencial e legislativo a posição de destaque conferida à arbitragem no âmbito da administração pública, direta e indireta. Sem dúvida, afirma-se o instituto com mais vigor e pelas suas próprias virtudes como meio legítimo de resolução de conflitos em que entes públicos são partes.

Com efeito, perece a tese de que toda a atuação da administração pública pauta-se no supremo interesse público.

Conquanto o interesse público permeie os atos da administração, há que se verificar a natureza que lhes é subjacente.

Nas palavras de Diogo de Figueiredo Moreira Neto:

Em outros termos e mais sinteticamente: está diante de duas categorias de interesses públicos, os primários e os secundários (ou derivados), sendo que os primeiros são indisponíveis e o regime público é indispensável, ao passo que os segundos têm natureza instrumental, existindo para que os primeiros sejam satisfeitos, e resolvem-se em relações patrimoniais e, por isso, tornaram-se disponíveis na forma da lei, não importando sob que regime.

São disponíveis, nesta linha, todos os interesses e os direitos deles derivados que tenham expressão patrimonial, ou seja, que possam ser quantificados monetariamente, e estejam no comércio, e que são, por esse motivo e normalmente, objeto de contratação que vise a dotar a Administração ou seus delegados, dos meios instrumentais de modo a que estejam em condições de satisfazer os interesses finalísticos que justificam o próprio Estado.[7]

Entretanto, a despeito de toda essa marcante evolução, entendeu-se apropriado alterar a Lei de Arbitragem para introduzir um § 1º ao art. 1º com o seguinte teor: “§ 1º A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.”.

Tecnicamente, era de todo desnecessária essa inclusão, haja vista que o caput do art. 1º traduz, com outras palavras (“A pessoa capaz de contratar”), o mesmo comando do novo § 1º. Mas, ao que consta, parcela da administração pública sentia-se, ainda assim, desconfortável e receosa em firmar contrato com cláusula compromissória caso não houvesse previsão cristalina, expressa e afirmativa que a autorizasse afastar o Poder Judiciário e, assim, escolher outra jurisdição apta a solucionar as demandas. E tal foi feito.

Essa disposição, muito provavelmente, tramitou no Congresso Nacional sem maiores percalços em razão dos méritos que o instituto angariou na última década, inclusive no campo do Direito Público.

Efetivamente, com a introdução do §2º do art. 1º da Lei de Arbitragem, percebe-se maior aceitação – e conforto – da administração pública em submeter à arbitragem conflitos que surjam de suas relações contratuais.

Cabe ressaltar que, a partir de então, (i) o Executivo editou o Decreto n. 8.465, de 8 de junho de 2015, prevendo a arbitragem para dirimir litígios no âmbito do setor portuário, posteriormente substituído pelo Decreto n. 10.025, de 20 de setembro de 2019, aperfeiçoando-o e expandindo sua regência também ao setor de transporte odoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário; (ii) a Lei n. 13.867, de 26 de agosto de 2019, alterou o Decreto-Lei n. 3.365/41 para possibilitar a opção pela mediação ou pela via arbitral para a definição dos valores de indenização nas desapropriações por utilidade pública; (iii) a Advocacia-Geral da União constituiu Núcleo Especializado em Arbitragem, com a atribuição de representar a União no contencioso arbitral; (iv) o Ministério da Cultura baixou a Instrução Normativa n. 4/2015, de 7 de julho de 2015, pela qual aprova Regulamento de Mediação e Arbitragem em seu âmbito; e (v) os Estados do Rio de Janeiro e de São Paulo editaram decretos regulamentando as arbitragens envolvendo a administração pública estadual e suas autarquias (Decretos n. 46.245/2018 e 64.356/2019, respectivamente).

2004 – A Arbitragem e as Entidades de Direito Público

1. Sempre gerou muita polêmica, aqui e no estrangeiro, a submissão do Estado e de seus entes direto e indireto ao rito arbitral.

2. A questão é enfocada sob dois ângulos, quais sejam, o da arbitrabilidade objetiva e subjetiva.

3. A arbitrabilidade subjetiva corresponde a capacidade do Estado em contratar a convenção de arbitragem e, assim, afastar a jurisdição estatal. Para alguns o estado e, por vezes, seus entes beneficiam-se de imunidade jurisdicional e se sujeitam ao princípio estrito da legalidade. Quer isso dizer que, ou não poderiam deixar de resolver seus conflitos na jurisdição estatal e/ou para optarem pela via arbitral, é necessária prévia autorização legislativa.

4. A arbitrabilidade objetiva atinge o mérito da demanda para indagar se sua natureza é de caráter disponível ou não. Alguns conservadores, poucos a bem da verdade, enxergam na atuação estatal componente relevante e primordial de interesse público. Não importa se o Estado age ius gestionis ou, mais ainda, se as sociedades de economia mista e as empresas públicas sujeitam-se, por força constitucional, ao regime de direito privado. Todos atuam nas suas relações jurídicas sob o império do interesse público primário, daí a indisponibilidade de seus direitos e, consequentemente, a possibilidade de se submeterem à arbitragem.

5. Em linha com esses pressupostos, radicais com certeza, não é de se estranhar que segmentos ainda mais contundentes queiram suprimir, de todo, qualquer debate a respeito do tema inserindo na Constituição Federal proibição de submissão das “entidades de direito público” ao processo arbitral.

6. A par dos insensatos argumentos que fundamentam tal pretensão legislativa, fato é que o sucesso dessa iniciativa restará por retroceder o país em anos luz.

7. Mais, gerará um ambiente jurídico extremamente tumultuado e um grave desconforto ao discurso do atual governo. Tudo o que a agenda governamental não vislumbra e gostaria de evitar.

8. Primeiro, em hipótese alguma o debate sobre a participação estatal em arbitragem merecia ser aplacado por manus militaris de efeito constitucional. É preciso dar um basta na equivocada ideologia de que tudo no Brasil deve ser batizado em nossa robusta Constituição.

9. A Carta de Estado deve conter os princípios relevantes, éticos e morais que norteiam as relações de um povo através dos tempos independentemente da ideologia que o dirige. Seus dispositivos devem projetar-se de forma holística e futurista.

10. Aos governos eleitos, deixemos que as leis ordinárias materializem seu desiderato político, seu conteúdo programático e ideológico. A Constituição deve se manter a um só tempo impermeável e aderente aos matizes partidários. O momento político deve instruir, de forma mais flexível, a dinâmica social.

11. Segundo, a proposta almejada acarretará uma grave afronta aos investidores que o país, declaradamente, busca cooptar em auxílio ao pretendido desenvolvimento nacional. É sabido nos quadrantes das relações internacionais que a arbitragem é foro sério, justo e contemporâneo para a resolução dos conflitos. Ademais, é jurisdição neutra, flexível e amigável, enfim, propícia à solução de temas de natureza negocial.

12. Terceiro, a inserção de tal dispositivo em sede constitucional abrirá indesejável campo de especulação quanto aos diversos contratos já firmados pelo Estado brasileiro, direta ou indiretamente, ou como garantidor, onde se convencionou a cláusula de arbitragem. Não será de se estranhar o surgimento de questões de direito quanto a capacidade de o Estado ou seus entes submeterem-se à arbitragem, ao abrigo da pretendida regra constitucional. Por certo mentes extravagantes confrontarão o direito adquirido à vista de uma pseuda nova ordem constitucional.

13. Quarto, causa repulsa a inclusão de tal proibição em proposta de emenda constitucional (PEC) sobre a Reforma de Poder Judiciário, em parágrafo de artigo que dispõe sobre juizados especiais (§ 4º art 98). Pior ainda quando se sabe que o próprio Legislativo, horrorizado com a falta de critério e sistemática na elaboração de leis, inclusive medidas provisórias aprovou a Lei Complementar nº 95, de 1998, justamente para proibir que lei contemple matéria estranha ao seu objeto.

14. Por tudo isso, mas não só por isso, deve ser evitado malfadado dispositivo que ora se encontra inserido na PEC da Reforma do Judiciário, em tramitação no Senado Federal.

2004 – Debatedor no Seminário “Centro de Mediação do Conselho de Câmaras de Comércio do Mercosul”

7. O SR. PEDRO BATISTA MARTINS – Eu acho que a Selma tratou amplamente do tema. Eu teria só algumas observações a fazer. Repito, esse caso COPEL, para mim, não serve como paradigma, para praticamente nada, dada às circunstâncias subjacentes que cercam essa matéria.

8. Com relação à participação do Estado, eu dividiria entre Estado scricto sensu e empresas públicas e sociedades de economia mista. Estado scricto sensu, eu teria um pouquinho mais de ponderação no tocante à análise desse caso, mas não com o fim de entender que não seria passível de submissão a arbitragem aos conflitos ligados ao Estado stricto sensu, porém apenas para dar uma fundamentação, talvez mais forte, mais extensiva neste particular.

9. Com relação à autorização legislativa, a Lei de Arbitragem para mim é clara. As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir os litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Eu acho que essa autorização existe. Se essa autorização não serve, nós vamos cair na lei do petróleo, na lei das telecomunicações, lei de concessão e permissão de serviços públicos, a própria lei de licitação – queira ou não queira, reforçou a aplicabilidade do direito privado, supletivamente, – e temos a lei das concessões de regime aquaviários. Cada vez mais o Legislativo demonstra que quer o Estado participando de arbitragem.

10. A argumentação que se tinha era imunidade de jurisdição; “nós temos imunidade de jurisdição” . Em 1989 o Supremo pôs por terra a imunidade absoluta de jurisdição. Restou a imunidade relativa, que é relativa aos atos de império. O que for ato de império, existe imunidade de jurisdição; o que não for ato de império, ou seja, atos de gestão, não há problema nenhum. Aí os remitentes reforçaram o caráter da autorização legislativa.

11. Quanto à sociedade de economia mista a empresa pública acho que não há o que se discutir com relação a possibilidade delas se submeterem a arbitragem. Elas se equiparam aos demais entes privados, até por força da Constituição, porque a elas se aplica o regime privado do direito. Se elas estão intervindo na economia… a Constituição repudia tudo que não seja isonômico. Não pode o Estado, através de uma empresa pública ou sociedade de economia mista, participar no segmento econômico, competindo com as empresas privadas, e ter qualquer tipo de privilégio ou benefício. Tanto é que a elas, repito, se aplica o regime privado. E tanto é fato que se nós formos ver o artigo 100 da Constituição, que veda a constrição patrimonial em execução às autarquias e aos entes estatais stricto sensu, essa restrição não se aplica às sociedades de economia mista e as empresas públicas. Não se aplica às empresas públicas e às sociedades de economia mista. Quer dizer, mais uma vez o constituinte reforça a condição isonômica desses entes enquanto atuando no regime econômico, enfim, no sistema econômico. Quando a Carmen menciona que o TCU tem sido coerente, não tem sido coerente, não no meu modo de ver. Nós tivemos o caso da Ponte Rio-Niterói, que foi vedado; o TCU buscou o contrato de concessão da Ponte Rio-Niterói, invalidando a cláusula compromissória. Ato contínuo, a Lei 9.307 é publicada, entra em vigor, e o consórcio volta ao TCU pedindo que ele reconsiderasse a decisão. E o TCU reconsiderou a decisão naquele momento. No caso em que o TCU, posteriormente, negou a validade à cláusula compromissória num contrato com uma empresa de saneamento de água e esgoto de Brasília – quer dizer, um ente estatal contratou uma outra empresa privada para atuar nesse segmento, prestar esse serviço – o TCU cancelou, invalidou a cláusula compromissória. O consórcio (ou é a empresa, não me recordo) foi ao judiciário do Distrito Federal, através de um mandado de segurança e, por unanimidade, no Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, deu ganho de causa à empresa, validando a cláusula compromissória. Num caso onde hoje a ministra, Nancy Andrighi foi à relatora. Então, veja bem. O Poder Judiciário está dando todo o resguardo possível à validade dessas cláusulas no tocante ao Estado.

12. Eu não vou me estender mais, porque eu acho que nós temos uma série de outros temas. O Carmona também ainda tem que se manifestar, mas, basicamente, acho que é isso. Nós temos aqui o doutor Ricardo Perin, que está cuidando lá na Procuradoria do Município do caso do Guggenheim, e eu tenho certeza que ele vai conseguir sucesso, ganho de causa, não só nos outros temas que estão lá sendo debatidos, mas, especificamente, é para esse do Museu o que eu torço mais, por compreender questões com a validade da cláusula compromissória e do problema do sigilo, da publicidade. E também apenas fazer aqui um comercial porque na quinta e sexta-feira agora se realizará aqui nesta casa, neste auditório, um seminário internacional, e vamos ter a presença do professor Diogo de Figueiredo, que a Selma Lemes já mencionou, juntamente advogados, juristas internacionais, tratando de temas ligados à arbitragem, como nas sociedades anônimas, o problema da confidencialidade, o problema da Convenção de Nova Iorque, Convenção do Panamá. Vamos ter questões constitucionais da arbitragem, e então quem não tiver sido avisado, quinta e sexta agora realizaremos na casa esse seminário de dia inteiro, e até para mostrarmos aos paulistas que carioca trabalha também sexta-feira na parte da tarde. (…)

26. O SR. PEDRO BATISTA MARTINS – Deixa eu só para terminar…(risos).

27. Para mim, é algo inadmissível que o Estado assine um contrato, assuma a obrigação de submeter o conflito a uma arbitragem, induz a outra parte de boa-fé a acreditar que aquilo vai ser eficaz; quando surge a controvérsia, o Estado – no mínimo, um ente que deve dar o exemplo para todos nós – foge daquela obrigação assumida e vai bater à porta do Poder Judiciário dizendo que ele era hiposuficiente, que não tinha condição de contratar a cláusula, que não tinha uma lei etc. Ora, empresas, com corpo jurídico amplo, com advogados externos etc., você vai alegar isso? Isso para mim é um furto jurídico que o estado pratica contra a outra parte, no mínimo, para não ser deselegante. (…)

30. O SR. PEDRO BATISTA MARTINS – Vamos voltar àquele exemplo do caso Lage, que é clássico. O Henrique Lage, que era um sujeito milionário, na época da Segunda Guerra Mundial, a União expropria os bens dele todo para fazer frente à Segunda Guerra Mundial. Tira os navios, tira tudo dele. O que é que acontece? Obviamente, em contrapartida – o Estado é muito bonzinho – dá “isso assim” de indenização para o Henrique Lage, que da noite para o dia fica pobre. Quem é que vai para a Justiça? Não é o Henrique Lage, porque ele já morreu, não é? É o que o Carreira Alvim menciona: “o problema não é de acesso à Justiça, o problema é de saída da Justiça” . Ninguém sai da Justiça. Entrar, todo mundo entra. (risos). Aí morre o Henrique Lage, e os herdeiros dizem “olha, vocês me devem uma indenização” . O Estado, a União Federal diz “então vamos nos submeter a uma arbitragem” . Submete-se a uma arbitragem, o árbitro determina o pagamento de uma quantia x; não satisfeita, a União vai ao Poder Judiciário dizer que a arbitragem é inconstitucional, que o ato assinado pela união é ilegal e vai até o Supremo Tribunal Federal, já com os herdeiros do Henrique Lage – quiçá que geração de herdeiros. Quer dizer, você tem que brigar com a União Federal para que o Supremo diga “não, você tinha sim a obrigação; você assumiu a obrigação, você tem que cumprir sua obrigação” . Porque nada mais foi a decisão do que isso: “você assumiu a obrigação, você cumpra” . Então, para mim, o princípio da boa-fé, da ética, está acima de todos esses princípios. Então o Estado diga “Eu não me submeto à arbitragem. Eu não posso”.

31. Agora, submeter-se e depois fugir; isso é um furto jurídico, no mínimo, que se pratica contra a outra parte.

2001 – Soluções Amigáveis no Campo das Concessões

23. Já que o tema proposto se deita no leito da arbitrabilidade dos litígios, eu acho que seria conveniente relembrar que somente os Direitos patrimoniais disponíveis podem ser objeto de arbitragem. E aí tem sido o ponto nevrálgico enfrentado pela doutrina e jurisprudência quando o assunto é a arbitragem no setor público.

24. A área pública sempre foi avessa a se submeter à arbitragem, não obstante o leading case do Supremo Tribunal, marco no direito arbitral, que é o caso ” Lage “, que foi analisado pelo Pleno do Supremo, na década de 60, e por duas vezes o plenário se manifestou favoravelmente à possibilidade de a Fazenda Nacional se submeter à arbitragem.

25. Na verdade, os entes públicos sempre se esconderam um pouco na chamada imunidade absoluta. Diziam: existe imunidade absoluta, logo não podemos submeter-nos à arbitragem. Ora, o Supremo Tribunal, ainda nos momentos de instalação do Superior Tribunal de Justiça, no final da década de 80, num voto do relator Ministro Sidney Sanches, acompanhado por um outro voto do Ministro Resek , acabou por derrogar a chamada imunidade absoluta que imperava entre nós no seio do Supremo Tribunal. Passou-se, então, a admitir a imunidade relativa. Com isso, os entes públicos passaram a se esconder atrás de uma presunção de que seria necessário para eles se submeterem à arbitragem, alguma regra clara autorizadora que lhes permitisse, efetivamente, resolver as disputas oriundas de contratos administrativos pelo rito arbitral.

26. Ora, essa regra nós poderíamos já naquela época extrair sistematicamente do nosso sistema legal. A Ordem Jurídica Nacional, fundada na livre iniciativa, impunha às empresas públicas e às sociedades de economia mista que explorassem atividade econômica, o regime próprio das empresas privadas.

27. Por um outro lado, os entes públicos não poderiam falar em imunidade à jurisdição ou renúncia à jurisdição, porque a imunidade era relativa. E relativa, tão-somente, aos atos de Império. Logo, para os atos de gestão do Estado, não havia qualquer imunidade; não havendo imunidade, não há o que se falar em renúncia à jurisdição.

28. Mesmo assim, o tema era controvertido, e não somente no Brasil, como também mundo afora. Daí por que recentemente, de uns anos para cá, as legislações novas nesse segmento público, basicamente em função das Concessões, começaram a permitir expressamente a resolução de disputas originadas em contrato administrativo por meio de arbitragem, mediação ou conciliação.

29. Podemos mencionar a Lei de Concessão e Permissão de Serviço Público, a Lei de Telecomunicações, a Lei de Petróleo – que foi mais clara, fala em arbitragem – e a Lei de Licitações, que, nesse particular, apenas deixou claro o que a Doutrina já vinha admitindo no tocante à Supletividade do Direito Privado no campo dos contratos administrativos.

2001 – O Poder Judiciário e a Arbitragem. Quatro anos da lei n. 9.307/96 (Parte III)

7. Capacidade para se Comprometer dos Entes de Direito Público

10. Com a intensificação da atuação dos Estados no campo das atividades econômicas, diretamente ou através de seus entes personalizados, tem sido freqüente nos contratos resultantes do pretendido negócio, principalmente na área internacional, a disposição de solução da controvérsia por arbitragem.

11. A cláusula arbitral tem sido o remédio para o particular evitar a submissão da disputa aos domínios territoriais e legais do Estado interessado, ou mesmo para afastar possível conflito de jurisdição.

12. Apesar de ainda gerar polêmica, esta disposição de vontade, na verdade, já foi acolhida pela grande maioria dos sistemas jurídicos.

13. O debate ao redor do tema sobrevive pelo empenho descomedido em se transportar para o novo milênio doutrina do século XIX, baseada em princípios originados no feudalismo. Àquela época os senhores feudais não admitiam submeter-se a quem lhes fosse inferior ou igual; par in parem non habet judicium era o princípio que lhes aplicavam.

14. E se a eles, senhores feudais, era dada a oportunidade de recurso de competência originária de instância superior, com toda a razão deveriam alegar os soberanos imunidade pessoal. E foi o que aconteceu.

15. Posteriormente, tal favorecimento se ampliou a ponto de orientar a tese territorialista da soberania do Estado sobre seus bens e súditos e, mais ainda, para firmar o princípio do imperium de modo a afastar a sujeição do Estado soberano a um sistema legal estrangeiro.

16. Daí a modificação do brocardo para “par in parem non habet imperium”. Por essa tese a imunidade tem caráter absoluto.

17. Dado o forte apelo político e a segura sustentação jurídica, essa proposição, ao longo dos anos, se transformou em dogma dos Estados e, pelas mãos de Marshal, assentou jurisprudência nos E.U.A. (leading case The Schooner Exchange v. M’Faddon), com a afirmação de que apenas o próprio Estado pode impor restrição a sua jurisdição.

18. Esse entendimento foi seguido pela Inglaterra, em 1820, no caso “The Prinz Frederik”, quando a Corte afirmou não poder exercer jurisdição pela adoção irrestrita da tese da plena imunidade.

19. Calcada no princípio da independência e da igualdade dos Estados, a doutrina da imunidade reinou absoluta até o início da Primeira Guerra Mundial, vergando seus alicerces após a Segunda Grande Guerra, quando se faz presente a intervenção estatal na atividade econômica.

20. Nesse momento, surgem reações contra os privilégios e o tratamento desigual. Enfim, passando o Estado a agir no setor do direito privado, negociando, e por vezes competindo com particulares, justo o afastamento de prerrogativas de forma a conferir segurança às relações jurídicas.

21. O notável desequilíbrio de forças em desproveito do particular abranda-se pelo justo afastamento do beneplácito das normas de direito público.

22. Frente a essa nova realidade, surge a teoria da imunidade relativa, ou restrita, que assegura o privilégio quando o ato praticado for, unicamente, de cunho soberano ou público. Como corolário, desponta a dicotomia: atos de império e atos de gestão.

23. Assim, o emprego dos efeitos legais contratuais passa a depender da determinação da natureza do negócio jurídico concluído pela administração pública.

24. Conquanto essa distinção entre ato jure imperii e jure gestionis não raro impõe o exame à luz do caso concreto, Diogo de Figueiredo Moreira Neto, ao refletir sobre a questão, assim deduz conceitualmente:

Certos interesses, porém, são considerados de tal forma relevantes para a segurança e para o bem-estar da sociedade que o ordenamento jurídico os destaca, os define e comete ao Estado satisfazê-lo sob regime próprio: são os interesses públicos.

Destarte, ao definir esses interesses públicos a lei os coloca fora do mercado, submetendo-os, distintamente dos demais, ao princípio da supremacia, como força jurídica vinculante, e ao princípio da indisponibilidade, em regra, absoluta e, por vezes, relativa.

A indisponibilidade absoluta é a regra, pois os interesses públicos, referidos à sociedade como um todo, não podem ser negociados senão pelas vias políticas de estrita previsão constitucional. A indisponibilidade relativa é a exceção, recaindo sobre interesses públicos derivados, referidos às pessoas jurídicas que os administram e que, por esse motivo, necessitam de autorização constitucional genérica e, por vezes, de autorização legal.

Em outros termos e mais sinteticamente: está diante de duas categorias de interesses públicos, os primários e os secundários (ou derivados), sendo que os primeiros são indisponíveis e o regime público é indispensável, ao passo que os segundos têm natureza instrumental, existindo para que os primeiros sejam satisfeitos, e resolvem-se em relações patrimoniais e, por isso, tornaram-se disponíveis na forma da lei, não importando sob que regime.

São disponíveis, nesta linha, todos os interesses e os direitos deles derivados que tenham expressão patrimonial, ou seja, que possam ser quantificados monetariamente, e estejam no comércio, e que são, por esse motivo e normalmente, objeto de contratação que vise a dotar a Administração ou seus delegados, dos meios instrumentais de modo a que estejam em condições de satisfazer os interesses finalísticos que justificam o próprio Estado”.

25. Essa vertente de qualificação do ato manifestado pelo ente público foi assimilada pelos nossos tribunais ao confirmarem o repúdio manifestado pela doutrina e legislação internacional à sobrevivência da doutrina da imunidade absoluta.

26. Durante a década de 70 grassou no Supremo Tribunal Federal a orientação de que a jurisdição brasileira somente se aplicava em caso de renúncia expressa por parte do Estado estrangeiro. A recusa de jurisdição importava no trancamento do feito.

27. Esse entendimento se cristalizou em aplauso à idosa e arraigada regra costumeira do Direito das Gentes.

28. Entretanto, esse vetusto preceito, ainda mesmo na década de trinta, já havia sido alvo de reformulações pelo próprio direito internacional. Nesse rastro, a Convenção Européia sobre Imunidade do Estado, firmada na Basiléia, em 16.05.1972, operou modificações na teoria absolutista da imunidade, para nela fixar parâmetros de excludência. O mesmo se pode dizer do Foreign Sovereign Immunities Act, promulgado pelos Estados Unidos, em 21.10.1976, e do State Immunity Act, do ano de 1978, a produzir efeitos no Reino Unido.

29. Essa tendência não passou despercebida no Brasil, fazendo-se sentir anos após no Supremo Tribunal Federal, quando o Min. Francisco Rezek, acompanhando o voto do Min. Relator Sydney Sanches, explorou esse viés e restou por reverter a, até então, mais essa orientação da mais alta corte, verbis:

“Independente da questão de saber se há hoje, maioria numérica de países adotantes da regra da imunidade absoluta, ou daquela da imunidade limitada – que prevalece na Europa ocidental e que já tem fustigado, ali, algumas representações brasileiras -, uma coisa é certíssima: não podemos mais, neste Plenário, dizer que há uma sólida regra de direito internacional costumeiro, a partir do momento em que desertam dessa regra os Estados Unidos da América, a Grã-Bretanha e tantos outros países do hemisfério norte.

Portanto, o único fundamento que tínhamos – já que as convenções de Viena não nos socorrem a tal propósito – para proclamar a imunidade do Estado estrangeiro em nossa tradicional jurisprudência, desapareceu: podia dar-se por raquítico ao final da década de setenta, e hoje não há mais como invocá-lo”.

“O quadro interno não mudou. O que mudou foi o quadro internacional. O que ruiu foi o nosso único suporte para a afirmação da imunidade numa causa trabalhista contra Estado estrangeiro, em razão da insubsistência da regra costumeira que se dizia sólida – quando ela o era -, e que assegurava a imunidade em termos absolutos”.

30. Sob essa nova ótica e dada a competência assegurada pela Constituição de 1988, o Superior Tribunal de Justiça passou a enfrentar a matéria firme na convicção de que a imunidade é passível de temperamentos, nos termos das decisões que ora trazemos à colação.

Estado estrangeiro – Reclamação trabalhista – Imunidade de jurisdição.

O princípio da imunidade de jurisdição de Estados estrangeiros era entre nós adotado, não por força das Convenções de Viena, que cuidam de imunidade pessoal, mas em homenagem a costumes internacionais. Ocorre que esses tendo evoluído não mais se considera essa imunidade como absoluta, inaplicável o princípio quando se trata de litígios decorrentes de relações rotineiras entre o Estado estrangeiro, representado por seus agentes, e os súditos do país em que atuam. Precedente do Supremo Tribunal Federal.

Jurisdição. Imunidade. Reclamação Trabalhista contra Estado estrangeiro.

A moderna doutrina do Direito Internacional Público não mais admite como absoluta a regra da imunidade jurisdicional de Estado estrangeiro. Exceção dos feitos de natureza trabalhista, dentre outros.

Imunidade de jurisdição. Reclamação trabalhista intentada contra Estado estrangeiro.

Sofrendo o princípio da imunidade absoluta de jurisdição certos temperamentos em face da evolução do direito consuetudinário internacional, não é ele aplicável a determinados litígios decorrentes de relações rotineiras entre o Estado estrangeiro e os súditos do país em que o mesmo atua, de que é exemplo a reclamação trabalhista.

Precedentes do STF e do STJ.

Estado estrangeiro. Imunidade de jurisdição. Inocorrência. Precedentes. Competência da Justiça brasileira. Recurso desprovido.

O Direito Internacional Público atual não tem prestigiado como absoluto o princípio da imunidade de jurisdição de Estado estrangeiro, impondo-se à confirmação a erudita decisão que deu pela competência da Justiça brasileira.

Direito Internacional Público – Imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro – Evolução da imunidade absoluta para a imunidade relativa – Atos de gestão – Aquisição e utilização de imóvel – Impostos e taxas cobradas em decorrência de serviços prestados pelo Estado acreditante.

Agindo o agente diplomático como órgão representante do Estado estrangeiro, a responsabilidade é deste e não do diplomata. A imunidade absoluta de jurisdição do Estado Estrangeiro só foi admitida até o século passado.

Modernamente se tem reconhecido a imunidade ao Estado Estrangeiro nos atos de império, submetendo-se à jurisdição estrangeira quando pratica ato “jure gestiones” quando adquire bens imóveis ou móveis.

O Egrégio Supremo Tribunal Federal, mudando de entendimento, passou a sustentar a imunidade relativa.

Também o Colendo Superior Tribunal de Justiça afasta a imunidade absoluta, adotando a imunidade relativa do Estado Estrangeiro.

Não se pode alegar imunidade absoluta de soberania para não pagar impostos e taxas cobrados em decorrência de serviços específicos prestados ao Estado Estrangeiro.

31. Vê-se que nossa jurisprudência favorece a tese da imunidade relativa da jurisdição, tendo o Superior Tribunal de Justiça imposto esse regramento desde o início de suas atividades, mantendo-o vivo até o presente momento.

32. Entendeu o STF que a matéria não era de ordem estritamente privada. Conforme registrou o Min. Ilmar Galvão:

“Diversamente do que entendeu a agravante, não se afastou, ali, de uma vez por todas, a imunidade de jurisdição do Estado estrangeiro, perante o Poder Judiciário brasileiro, como ficou demonstrado no julgamento do AgRg 139.671, cujo acórdão foi acima transcrito.

A hipótese dos presentes autos, conforme percebido pela própria agravante, não cuida de feito decorrente de “interação do Estado estrangeiro e o meio local desvestido de oficialidade”, mas de litígio que se trava entre o próprio Estado estrangeiro e o Estado brasileiro, o que é coisa absolutamente diversa, acrescentando a circunstância especial de estar-se diante de processo de execução. Dizer que, também nessa hipótese, prevalece a jurisdição brasileira, valeria não pela afirmativa de que a imunidade de jurisdição, entre nós, tem caráter simplesmente relativo, mas de que já não subsiste ela no sistema jurídico brasileiro, conseqüência que não se pode colher de nenhum dos precedentes jurisprudenciais mencionados.”

33. A ementa ficou assim consolidada:

“Execução fiscal movida pela Fazenda Federal contra Estado Estrangeiro. Imunidade de jurisdição.

A imunidade de jurisdição não sofreu alteração em face do novo quadro normativo que se delineou no plano do direito internacional e no âmbito do direito comparado (cf. AgRg 139.671, Min. Celso de Mello, e a AC 9.696, Min. Sydney Sanches), quando o litígio se trava entre o Estado brasileiro e o Estado estrangeiro, notadamente em se tratando de execução” (RTJ 167/161).

34. Destarte, a capacidade do Estado e de suas pessoas jurídicas de se submeterem ao crivo da justiça estrangeira deve ser analisada sob o prisma ratione materiae e não ratione personae. Com efeito, praticando ato de gestão não poderá alegar o Estado imunidade jurisdicional para desconsiderar o acordado ou não cumprir com os ditames legais.

35. Esse posicionamento se aplica, também, em sede de juízo arbitral.

36. Sendo o ajuste contratado no desempenho de atividade do Estado com preponderância do seu poder político, agindo, pois, com causa de utilidade pública, impõe-se às cláusulas e condições acordadas no ordenamento de direito público, cujo conteúdo não é passível de transação. Estamos, nesse caso, frente ao ato jus imperii, ao qual se curva o particular e, a reboque, a cláusula compromissória.

37. Contudo, se a relação entabulada pelo Estado ou por um de seus entes de direito público refletir ato de natureza privada, estão estes atuando no cenário comercial, desprovidos das prerrogativas do direito público, equiparando-se, pois, aos particulares contratantes. Assim, ao praticar atos jus gestionis, podem comprometer-se em sujeitar-se à solução arbitral e, inclusive, aplicar lei estrangeira à própria controvérsia.

38. Tratando-se de contrato jure gestione, legítima e válida a cláusula arbitral, tanto no trato das relações de direito interno quanto internacional.

39. Por sinal, nos contratos internacionais em que a administração pública é parte, essa reserva de jurisdição não tem recebido guarida, mesmo se manifesta como norma de seu sistema interno legal. Isso porque sua eficácia não se origina de um conteúdo de conduta ética ou moral que assegura a existência de um sistema de direito integrado, consistente e rígido.

40. Ao contrário, é mera manifestação de natureza política a exprimir o desejo do Estado em negar curso à jurisdição alheia. Sendo expressão de poder do Estado, é nas relações de império que os efeitos dessa norma se tornam inflexíveis, haja vista a igualdade de forças das soberanias.

41. E é, com base nesses pressupostos, que deve ser analisada a capacidade da administração pública em se comprometer com a solução arbitral.

42. Sendo disponível a natureza do negócio jurídico, pouco importa preceito de reserva de jurisdição. Válida a cláusula compromissória porquanto impera a boa-fé nas relações. Por sinal, este princípio consta elevado, na seara internacional, a categoria de ordem pública.

43. Assim, a visão moderna desconsidera a alegação de falta de capacidade, apresentada por uma contratante que busca escapar aos efeitos da cláusula compromissória em virtude de dispositivo impeditivo de sua legislação nacional, pois deve prevalecer, nesse aspecto, o princípio de ordem fundamental que prepondera nas relações internacionais: a boa-fé.

44. Como indicam W. L. Craig, W.W. Park e J. Paulson:

“this principle of good faith has been applied by ICC arbitrators as an imperative norm perceived without reference to any specific national law. A leading precedent in this connection is a 1971 award dealing with a claim by a State not to be bound by the arbitration clause, where the Tribunal stated that: international order public would vigorously reject the proposition that a State organ, dealing with foreigners, having openly, with knowledge and intent, concluded an arbitration clause that inspires the co-contractant’s confidence, could thereafter, whether in the arbitral proceedings invoke the nullity of its own promise”.

45. Ilegítima, pois, a pretensão da parte que negocia e acata a solução arbitral para, posteriormente, invalidar seus efeitos em pretensa argüição de reserva de jurisdição doméstica. O direito não compactua com aleivosias desse padrão. E, se esse entendimento grassa na cultura dos negócios internacionais, internamente também há de proliferar.

46. Com efeito, as relações internas em que pessoa de direito público é parte conformam-se, igualmente, com a boa-fé. Preceito de extrema grandeza, funciona como sustentáculo da segurança jurídica e, assim, deve ser vivificado em cada ato jurídico. É a boa-fé que norteia o negócio jurídico.

47. E esse valor não pode ser desconsiderado impunemente pela simples ausência de regra expressa autorizadora da jurisdição arbitral ou pela pretensa existência de imunidade.

48. A uma, porque a ordem jurídica nacional, além de fundada na livre iniciativa, impõe à empresa pública e à sociedade de economia mista que explore atividade econômica, o regime próprio das empresas privadas (arts. 170 e 173, CF). Nesse particular, a supremacia da igualdade na ordem econômica repudia privilégios, inclusive a de jurisdição.

49. A duas, porque inexiste imunidade se o acordo tem por objeto matéria abraçada pelo jure gestione. Como já vimos, a imunidade é relativa aos atos de império e só a ele pode ser posta a exceção. É de caráter restrito e exclusivo. Os demais atos praticados pela administração pública a ela não se sujeitam. E, inexistindo imunidade, não há que se falar em impossibilidade de renúncia da jurisdição estatal.

50. Seja na exploração empresarial da atividade econômica, ou na prestação de serviço público afeta a atos de gestão patrimonial, é legal e recomendável valer-se (e sujeitar-se) o Estado aos efeitos da cláusula compromissória.

51. Outra não foi a tese adotada unanimemente pelos membros do Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, convertida na decisão sob comento.

52. É notória a indisponibilidade do interesse público. E a possibilidade de questões ou discordâncias contratuais, que não possam ser solucionadas amigavelmente, serem discutidas por juízo arbitral não afeta dita indisponibilidade.

53. Veja-se que os contratos visam a adaptação e a ampliação da Estação de Tratamento de Esgotos de Brasília. Este é o fim público almejado. Para sua consecução, há o fornecimento de diversos bens, prestação de obras civis, serviços de montagens eletromecânicas, pagamento e etc., conforme pactuado.

54. No caso, havendo dúvidas atinentes a tais disposições, podem perfeitamente ser solucionadas ante o juízo arbitral, tudo visando a eficiente consecução do objeto do contrato.

55. Registre-se, por fim, não se aplicarem às pessoas jurídicas de direito público, nos atos jure gestionis em que há eleição da cláusula compromissória, as regras de competência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça previstas nos artigos 102, f, e 105, II, “c” da Constituição Federal, pois de efeitos processuais e de caráter ancilar.

56. A bem da verdade, o Supremo Tribunal Federal já admitiu, por unanimidade do seu Plenário, ser válida a arbitragem contra a União. Essa decisão foi baseada no acórdão do TFR, verbis:

“Juízo Arbitral – Na tradição do nosso direito, o instituto do Juízo Arbitral sempre foi admitido e consagrado, até mesmo nas causas contra a Fazenda. Pensar de modo contrário é restringir a autonomia contratual do Estado, que, como toda pessoa sui juris, pode prevenir o litígio pela via do pacto de compromisso, salvo nas relações em que age como Poder Público, por insuscetíveis de transação”.

57. Sinteticamente, em se tratando de Estado, a capacidade em se comprometer deve ser vista não só pelos ângulos da arbitrabilidade da matéria (objetivo) e da aptidão pessoal, mas também pelo foco da natureza jurídica do ato subjacente, sobretudo nas suas intervenções não empresariais.

8. A Administração Pública e a Solução dos Conflitos por Arbitragem no Direito Positivo.

58. Acompanhando a tendência legislativa mundial e frente à comercialização do direito administrativo, a legislação brasileira atinente às relações de direito público passou a deixar expressa a possibilidade de utilização da arbitragem na solução de disputas envolvendo o ente estatal e o particular.

59. Esse objetivo didático do legislador foi incentivado pelas incontáveis discussões que o tema havia gerado anteriormente.

60. Conquanto louvável, pela segurança jurídica que transmite, tecnicamente essa expressa introdução não era imperativa dada a legalidade da arbitragem em nosso sistema legal e não existir, por outro lado, vedação a essa prática no âmbito administrativo, exceto a construção doutrinária e jurisprudencial quanto aos atos soberanos praticados pelo Estado.

61. Até porque, a escolha da arbitragem não denota negligência do Estado com a coisa pública. Ao contrário, a utilização de rito jurisdicional especializado, imparcial e célere, sujeito ao due process of law, traduz-se em administração de qualidade, atributo, por sinal, em falta no cenário estatal.

62. Como afirma Adilson Abreu Dallari:

“O interesse público não se confunde com o mero interesse da Administração ou da Fazenda Pública; o interesse público está na correta aplicação da lei e se confunde com a realização concreta da justiça. Inúmeras vezes, para defender o interesse público, é preciso decidir contra a Administração Pública”.

63. Por sinal, ao escolher a arbitragem, o ente público não renuncia a direito natural (direito de ação); exerce-o em outra jurisdição, cuja decisão, nos termos da lei (tanto a antiga quanto a atual), é passível de revisão judicial.

64. Esse conjunto de leis se torna ademais irrelevante após a edição da Lei Marco Maciel, que passou a admitir, claramente, e com eficácia jurídica, as pessoas capazes louvarem-se em árbitro para dirimir questões de direito patrimonial disponível.

65. Se a tão discutida previsão legal já poderia ser extraída do contexto de nosso ordenamento jurídico, dada a interpenetração dos ramos público e privado do direito e a supletividade das normas privadas aos contratos administrativos, o limite da legalidade encontrou amparo geral na Lei n° 9307/96.

66. De qualquer modo, as legislações específicas relativas (I)ao regime de Concessão e Permissão dos Serviços Públicos previsto no artigo 175 da Constituição Federal (Lei n° 8987/95), (II) às Telecomunicações (Lei n° 9472/97), (II) a Política Energética – “Lei do Petróleo” (Lei n° 9478/97), e (IV) às Licitações (Lei n° 8666/93) deram um basta à infrutífera discussão da submissão dos entes estatais à arbitragem cristalizando no direito administrativo, assim, o melhor entendimento dentre os existentes.

67. Enquanto a Lei de Licitação, ainda no início da década de 90, procurou deixar expresso o pensamento arraigado na doutrina administrativa da aplicação supletiva das regras de direito privado aos contratos administrativos, as leis de concessão de serviços públicos e a de telecomunicações avançaram no sentido de impor aos contratantes cláusula de foro e modo amigável de solução das controvérsias.

68. Já a Lei do Petróleo foi mais longe ainda ao prever expressamente a opção arbitral. Estabelece como cláusula essencial do contrato de concessão “as regras sobre solução de controvérsias relacionadas com o contrato e sua execução, inclusive a conciliação e a arbitragem internacional” (art. 43, X). Do teor dos últimos textos legais retromencionados extraímos a certeza do pouco trato do legislador com o instituto arbitral.

69. Nossa crítica, contudo, não vai a ponto de reclamar menção expressa à arbitragem, por pretenso descabimento da inclusão desse instituto na definição de meio amigável de solução de disputa. Ao contrário, esse conceito, lato sensu, comporta a arbitragem a despeito de sua natureza jurídica publicista.

70. A crítica tem outro alvo. Não foi de boa técnica legislativa impor aos contratantes, conjuntamente, a disposição do foro e do modo de solução amigável das controvérsias.

71. E, nesse ponto, discordamos da ilustre Selma M. Ferreira Lemes quando afirma ter sido sábio o legislador e que “nenhuma contradição se verifica em eleger as duas vias de soluções de controvérsias: judicial e extrajudicial”.

72. Por certo, esse amálgama é de todo indesejável e sofre censura severa dos estudiosos. A fixação de foro não se coaduna com a cláusula arbitral, exceto se ressalvada expressamente sua finalidade: casos de revisão da decisão arbitral; imposição de medidas cautelares ou coercitivas; análise das questões contratuais inarbitráveis.

73. Mas isso o legislador não fez! E, ao não usar da boa técnica, com certeza acabará por induzir os entes públicos a estabelecer cláusulas compromissórias de conteúdos conflitantes a merecer interpretação pragmática por parte dos julgadores.

74. Aliás, essa incoerência contratual é origem do “favor arbitral” adotado pela jurisprudência judicial e arbitral, inclusive a brasileira, quando defrontado o julgador com situações dessa espécie.

75. Essa imprecisão legislativa é também fonte de dúvidas nos contratos de exploração de petróleo dado que a Lei 9478/97 somente se reporta à arbitragem internacional.

76. Temos, entretanto, que essa incerteza não se sustenta: a arbitragem interna também vale na solução de disputas oriundas de contratos administrativos que tenham por objeto a exploração de petróleo.

77. Se não por outras razões factíveis, pelo simples fato de que a política de abertura de nossas fronteiras jurídicas interna (admissibilidade expressa da arbitragem nas relações com os entes estatais) e externa (quebra da tese da imunidade absoluta) não autoriza interpretação que permita o mais (arbitragem internacional) e vede o menos (arbitragem interna).

78. O intérprete há de convir que o legislador, a par da possibilidade de se resolverem as controvérsias por arbitragem interna, optou por deixar expressa, também, a validade da arbitragem internacional, até mesmo pela natureza peculiar do negócio e da qualificação de seus partícipes. Entendimento reverso consubstanciaria subversão da ordem jurídica que hoje, como vimos, se assenta a doutrina e a jurisprudência.

  1. Cf. BATISTA MARTINS, Pedro A.. Aspectos jurídicos da arbitragem comercial no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1990, pp.8,9.
  2. 1 – Legalidade do Juízo Arbitral, que o nosso Direito sempre admitiu e consagrou, até mesmo nas causas contra a Fazenda. Precedente do Supremo Tribunal Federal. 2 – Legitimidade da cláusula de irrecorribilidade de sentença arbitral, que não ofende a norma constitucional (…)Não tem, ao nosso ver e permissa venia do autorizado mas isolado pronunciamento de LUÍS MACHADO GUIMARÃES, qualquer procedência a argüida inconstitucionalidade do Juízo Arbitral. Na Carta de 1937, então vigente ao tempo da expedição do increpado Decreto-lei nº 9.521, não existia qualquer disposição que vedasse, de modo expresso, ou mesmo implícito, a instituição de um Juiz Arbitral nos moldes estabelecidos pelo referido diploma e cuja decisão fosse irrecorrível e exequível independentemente de ‘exequatur’ judicial. Igualmente, a Constituição vigente não contém qualquer disposição que vede a criação desse instituto, tradicional no direito brasileiro, desde as antigas ordenações. Já o Código Civil o consagra nos seus arts. 1.037 e seguintes. CASTRO NUNES, em notável parecer junto às fls. 145 (doc. nº 12), refutou, cabalmente, todas as objeções levantadas contra a sua irrecu´savel constitucionalidade. Ao tempo do Império, assinala o parecer, muitas controvérsias levantaram-se contra a possibilidade da extensão do instituto, então disciplinado pelo Decreto 3.900, de 26.7.1867, às causas da Fazenda Nacional, prevalecendo, no sentido afirmativo, os autorizados pronunciamentos, dentre outros, de LAFAYETTE, VISCONDE DE OURO PRETO e do CONSELHEIRO SILVA COSTA. E acrescenta não ser possível a interdição do Juízo Arbitral, mesmo nas causas contra a Fazenda, o que importaria numa restrição à autonomia contratual do Estado que, como toda a pessoa sui juris, pode prevenir o litígio pela via transacional, não se lhe podendo recusar esse direito, pelo menos na sua relação de natureza contratual ou privada, que só estas podem comportar solução pela via arbitral, dela excluídas aquelas em que o Estado age como Poder Público que não podem ser objeto de transação. A hipótese para qual se instituiu o Juízo Arbitral pelo Decreto-lei nº 9.521 entra na primeira categoria (…)De resto, no entendimento dos nossos mais autorizados civilistas, a cláusula compromissória guarda estreita afinidade com a transação, tanto que o art. 1.048 do Código Civil lhe manda estender o disposto acerca da transação, que é, também, como está expresso no art. 1.025, um instrumento de que se podem utilizar os interessados em prevenirem ou solucionarem o litígio mediante concessões mútuas. E foi essa natureza contratual do compromisso acentuada no parecer do Senador FERREIRA DE SOUZA (fls. 148): ‘A União assumiu um compromisso obrigatória e tal laudo deve ser examinado como uma peça de fundo contratual e não como uma sentença.’ E conclui pela perfeita constitucionalidade do Juízo Arbitral, ao opinar pela concessão dos créditos pedidos pelo Poder Executivo. (…)Argúi-se, por outro lado, a incompatibilidade do ato legislativo em causa com a Constituição vigente, violando, entre outros, o preceito contido no parágrafo 26 do art. 141, pelo qual não haverá foro privilegiado nem juízes e tribunais de exceção. A alegação não tem qualquer procedência, pois, como afirma a sentença, a instituição do Juízo Arbitral não importou em constituir foro privilegiado nem tribunal de exceção. Afirma-se a inconstitucionalidade, por se revestir o Juízo Arbitral do caráter de tribunal de execção não previsto na Carta de 37 e não permitido pela Constituição de 1946. Todavia, basta atentar para a natureza consensual do juízo arbitral que, não integrando os órgãos permanentes do Poder Judiciário, de natureza institucional, é criação contratual, nascida do compromisso das partes, ainda que regulada em lei especial, para concluir-se que a alegada inconstitucionalidade não tem o prestígio da doutrina dominante na matéria (…)” (STF, AgIn n. 52.181, j. 14.11.1973).
  3. Cláusula compromissória (pactum de compromitendo) ainda não é o compromisso constitutivo do Juízo Arbitral, mas obrigação de o celebrar. Trata-se de uma obrigaçã ode fazer, que se resolve em perdas e danos e que, como pacto de ordem privada, não torna incompetente o juiz natural das partes, se a êle recorrem.” (STF, RE n. 58.696, j. 02.06.1967).
  4. Em 10.01.1984, é publicado no Diário Oficial da União parecer da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional em que rebate argumentos de inconstitucionalidade da arbitragem face a requerimento do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em que sustentava a incompatibilidade do instituto com o art. 7º da Constituição vigente à época.
  5. Dados publicados em 2014 atestam que o Brasil ocupava, no mundo, o 101º lugar no ranking de eficiência do aparato legal na resolução de litígios. Em 2000, pesquisa demonstrou que 91% dos empresários avaliavam como ruim a morosidade da justiça brasileira e, ainda, que uma melhora acentuada da performance do Poder Judiciário levaria a: (i) aumento de 18,5% no volume de negócios, (ii) alta de 13,7% nos investimentos, (iii) aumento de 12,3% na contratação de trabalhadores, (iv) 13,9% de aumento na proporção de atividades terceirizadas e (v) 13,7% mais negócios com o setor público (PINHEIRO, Armando Castelar. A Justiça e o Brasil. Revista USP, n. 101, março/abril/maio 2014, pp. 146 e 154).Reportagem publicada em fevereiro de 2006 menciona que estudo do Banco Central estima que 20% da composição do spread bancário cobrado no Brasil correlacionam-se à taxa de inadimplência e, por conseguinte, à dificuldade dos credores recuperarem judicialmente os créditos devidos. Ademais, o mesmo estudo aponta que quanto menor o crédito, mais difícil recuperá-lo. A execução judicial de R$500,00 demanda 5 anos e o credor nada recebe; a cobrança de R$ 50 mil resulta, em média, no ressarcimento de R$ 12 mil (Uma Justiça cada vez mais Abarrotada de Processos. Jornal Valor Econômico).
  6. Ver STJ, Recurso Especial n. 612.439, j. 25.10.2005; STJ, Recurso Especial n. 606.345, j. 17.05.2007; STJ, Mandado de Segurança n. 11.3089, j. 09.04.2008; STJ, Recurso Especial n. 904.813, j. 20.10.2011.
  7. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “Arbitragem nos contratos administrativos”. In: Revista de Direito Administrativo, jul/set. 1997, pp.84-85.