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Pedro A. Batista Martins[1]

1. A justiça no liminar do século XXI

1. Muito tem sido falado, e discutido, sobre as prementes necessidades de viabilização do acesso à justiça. Contudo, infelizmente, mais poderia ter sido feito no sentido da concretização dessa relevante necessidade social.

2. A dificuldade no acesso à justiça e a complexidade na sua administração são fatos indiscutíveis e aceitos como verdadeiros no mundo contemporâneo.

3. Apaziguadora das tensões e inimiga dos êmulos de prontidão, a justiça é ponto vital nas satisfações do bem-estar e da harmonia social, razão pela qual, de há muito, o acesso a ela e sua efetiva realização tem sido matéria de discussão no Brasil e, com muito mais vigor, alhures. Para não sermos de todo injustos, poderíamos afirmar que, no Brasil, essa matéria vem sendo alvo de muitíssima discussão por alguns poucos verdadeiramente interessados e experientes juristas, com visão profunda dos mecanismos judiciais, de seus instrumentos legais e dos escaninhos e vielas mais profundas do aparato judiciário.

4. Vários são os fatores que obstruem o alcance à plena realização da justiça que, ao longo do tempo, vêm sendo, de certo modo, minimizados pelas reformulações introduzidas no sistema legal vigente.

5. Essas mudanças, ainda que tímidas, devem ser aplaudidas e incentivadas, pois objetivam realizar direito social dos mais importantes, pois essencial à sintonia do convívio comunitário.

6. Entretanto, não podemos esquecer que a busca pela Justiça é processo sem fim, e a melhoria dos sistemas necessários à sua concretização é de natureza emergencial.

7. Isto porque, em sentido amplo, o acesso ao judiciário (um dos meios de se alcançar a justiça) vem sendo negado, sistematicamente, a uma camada da população; e não pensem que estamos nos referindo, somente, à classe desprivilegiada ou de baixa renda, pois que tal privação já chega a atingir categorias mais abrangentes da população (v.g. aposentados; viúva; rendeiros), o que inclui microempresários.

8. Se é certo que a política econômica dos últimos anos contribuiu com razoável dose de culpa para a conjugação desse inferno astral, as responsabilidades finais recaem “não necessariamente com toda a razão” sobre o judiciário, órgão que traz em si o poder superior de promover justiça e, assim, satisfazer o bem-estar e a harmonia sociais.

9. Decantada, a Justiça, como valor supremo da sociedade, o acesso a ela, e a sua plena realização consagraram-se, naturalmente, como consectários de um direito social.

10. Contudo, os obstáculos à sua efetivação “para muitos intransponíveis” a burocracia e a complexidade na realização, como bem salientado pelo Prof. Bryan Garth, transfigurou aquele direito social em um assustador “problema social” que, sem sombra de dúvida, deve ser confrontado com perseverança e sem misoneísmo de qualquer matiz.

11. Senão, de que valem as normas constitucionais assecuratórias de direitos e garantias individuais e demais regras jurídicas positivas de ordenação social, se o exercício de direito subjetivo pelo cidadão, quando se faz necessário, torna-se inviável, sem possibilidade de obtenção do resultado prático almejado?

12. Assim, cabe ressaltar que, no acesso à justiça, o Prof. Mauro Cappelletti mostra-nos que, historicamente, os embaraços no setor litigioso civil redundaram em barreiras econômica, organizacionais e processuais cujo enfrentamento deu-se através do denominado movimento das três ondas.

13. Para enfrentar a barreira econômica que inviabilizava, de todo, o acesso à justiça da camada mais pobre da população, possibilitou-se dentre outras, a assistência judiciária e a utilização dos quadros do Ministério Público e da Procuradoria da Justiça, como forma de melhor atender a necessidade de uma representação satisfatória desse núcleo da sociedade.

14. De modo a suavizar os problemas organizacionais – “segunda onda” -, consubstanciados nas dificuldades de o indivíduo, isoladamente, buscar a tutela jurisdicional para satisfazer direitos que, por sua natureza, deveriam ser tratados coletivamente, procurou-se incrementar mecanismo de defesa de direito difuso ou coletivo, como meio de viabilizar a proteção de determinadas classes ou categorias. Daí as funções institucionais do Ministério Público e as proteções legais previstas no Código do Consumidor e na Lei de Abuso do Poder Econômico, dentre outras, como expedientes de enfrentamento da chamada “segunda onda”.

15. Por fim, o movimento da “terceira onda”, preconizado por Garth e Cappelletti, representa a busca de instrumentos alternativos para a solução dos conflitos levados a efeito fora das arenas judiciais, através de sistema informal não contencioso, onde se busca o consenso ou qualquer forma amistosa que vincule as partes, arrefecendo os espíritos mais belicosos e reduzindo, assim, os argumentos plantados por emulação; o resultado, conseqüentemente, é bem mais palatável para o não vencedor.

16. A mediação, a conciliação e a arbitragem são alguns desses instrumentos legais utilizados, mundo afora, na composição de conflitos.

17. Não contássemos com a prática da arbitragem no âmbito do direito marítimo e a existência de algumas Comissões de Arbitragem (muito embora com tímida atuação), e outros tantos entusiastas desse instituto de solução pacífica dos conflitos, no Brasil, a “terceira onda” já teria encaixotado e batido, violentamente, nos arrecifes plantados ao largo da costa.

18. Na realidade, a cultura brasileira do paternalismo estatal, do Estado distribuidor de benesses, tem caráter atávico, o que inclui o entendimento de que é o Estado, através de seus órgãos jurisdicionais, que deve resolver toda e qualquer espécie de conflito.

19. Aliás não fosse essa arraigada cultura, teríamos, hoje, desenvolvimento marcante do instituto arbitral no Brasil, com precedentes históricos e relevante jurisprudência, já que as primeiras leis domésticas, relativas ao tema, datam de 1831 e 1837, as quais, respectivamente, e de forma obrigatória, impunham a solução arbitral às questões relativas a seguro e locação de serviços.

20. Instituto milenar, tem por virtude a informalidade e a opção de as partes envolvidas no conflito poderem estabelecer as regras do jogo e indicar, por sua livre vontade, a pessoa (ou pessoas) que deve decidir a matéria posta em questão.

21. Conhecida como “justiça dos experts”, consagra esta o desejo do povo de administração da justiça. Sistema apropriado de distribuição de custas, onde quem dele se vale arca com as despesas necessárias ao seu funcionamento.

22. Às portas do 3° milênio, é preciso flexibilizar o monopólio da Justiça pelo Estado, e pôr fim à cultura brasileira do paternalismo estatal, do Estado absoluto, centralizador e distribuidor de vantagens e benefícios, e de que a ele também incumbe resolver toda e qualquer pendência legal.

23. O acúmulo de processos que abarrotam o judiciário, as dificuldades no acesso, na administração e na realização da justiça e a própria desmistificação do Estado levar-nos-ão “cedo ou tarde” obrigatoriamente, a adotar um approach mais prático e informal dos aspectos que envolvem a administração da justiça, com tendência transparente e convergente para a utilização, e aprimoramento, dos instrumentos alternativos de solução de conflitos.

24. Mister se faz reavaliar a nossa “Justibrás” e, em sintonia com o contido no preâmbulo da Constituição Brasileira, isto é, o comprometimento das sociedades, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, implementar, de vez, o sistema arbitral que se coaduna, perfeitamente, com os princípios fundamentais do Estado Democrático Brasileiro.

2. A natureza jurisdicional da arbitragem

25. A precisa conceituação da natureza jurídica da arbitragem é elemento essencial para que se possa delinear a extensão e o alcance da autoridade do árbitro.

26. Esse tema, aparentemente de cunho acadêmico, é de vital importância na determinação dos efeitos que serão produzidos pela decisão proferida em juízo arbitral, seja ela de caráter parcial ou definitivo.

27. Salvatore Satta sintetiza a matéria como il problema fondamentale dell’ arbitrato.

28. Apesar de muito estudado e discutido pelos doutrinadores italianos, foi na França que a controvérsia acirrou-se em termos práticos, dada a necessidade de se fixar o real alcance dos poderes dos árbitros, para que fossem definidos os requisitos compulsórios de validade de uma decisão arbitral na jurisdição francesa.

29. Com a possibilidade do implemento da arbitragem no Brasil, certo que se decida sobre a sua natureza jurídica. Dívida não temos de que prevalecerá a teoria publicistas, que teve como aptos juristas da lavra de Mortara, Hugo Rocco, Bonfante, Galante e Pipia, só para citarmos alguns dos estrangeiros.

30. É esta a corrente que tem sido mais prestigiada e reconhecida, e a que mais, convenientemente, atinge os objetivos do instituto de arbitragem.

31. Adota o entendimento jurisdicional e atribui ao árbitro todos os poderes inerentes a jurisdição, exceto a potesta, privativa do Estado.

32. A jurisprudência estrangeira tem ressaltado o caráter jurisdicional da arbitragem, e legislações arbitrais têm sido modificadas, de modo a fortalecer a autoridade dos árbitros (cf. Lei Inglesa, em vigor a partir de 1997) e, assim, assegurar, eficazmente, o próprio interesse do Estado na resolução dos conflitos por esse meio alternativo.

33. Como já prelecionava Giuseppe Saredo, em 1887 (instituzioni di Procedura Civile, Firenze, Pellas Editore, vol. I, p. 131), “fli arbitri possono pronunciare su tutte lê questioni di qualunque specie che si colleghino allá controvérsia cui sono chiamati a risolvere. Si tratti di grandi valori o de piccole somme, gli arbitri hanno eguale facoltá di giudicare… cosi la legge, col dire quali sono i casi nei quali gli arbitri si astengono dal giudicare, rimettendo la causa all’autoritá competente, riconosce che per qualsiasi altro incidente, gli arbitri hanno piena facoltà di giudicare”.

34. É o árbitro juiz de fato “dada a natureza da sua investidura” e de direito, porque, neste caso, aplica as regras legais ao caso concreto. Tanto os julgadores estatais, quanto os particulares, são investidos de suas funções pelo povo, indiretamente, no primeiro caso e, diretamente, no que tange à arbitragem.

35. Ao ser investido na qualidade de árbitro, o indivíduo está conferindo ao julgador competência, prevista e admitida em lei, para apreciar e solucionar a questão posta em toda a sua latitude. Não importa o caráter momentâneo e privado da investidura, pois o exercício dessa atividade, e a assunção da função são do interesse estatal, sendo expressão de caráter público, o que imprime verdadeiro múnus publicum, a sua atuação.

36. Se o cidadão opta pela jurisdição privada e nomeia árbitro para dirimir a pendência, o faz com o pleno aval do Estado, que possibilita e põe à disposição do interessado “e não raro incentiva” essa forma de solução de conflito.

37. A convenção de arbitragem, uma vez firmada, derroga a justiça estatal em benefício da jurisdição privada e, constituído o juízo arbitral, passa a deter o árbitro o poder de “dizer o direito” a ser aplicado à controvérsia, e a dirimir todas e quaisquer questões relacionadas ao caso em exame, ressalvadas, obviamente, as matérias de direito indisponível.

38. A supressão da via judicial que se perfaz por acordo expresso na convenção de arbitragem é de natureza privada, enquanto os efeitos que dela se originam, e que se irradiam nos atos exercitados pelo árbitro, como conseqüência do pacto arbitral, são de caráter público.

39. São atos jurídicos distintos, de naturezas jurídicas opostas, sob o comando de diferentes partes e que se conformam entre si.

40. Os árbitros, apesar de indicados pelas partes, atuam em nome do Estado, pois buscam a pacificação social através da realização da justiça.

41. É direito legal do cidadão utilizar-se da arbitragem como via de solução dos seus conflitos e delegar ao árbitro esta tarefa que, ao assumi-la, obriga-se por desincumbir-se adequadamente da função que o Estado autoriza e chancela, exercitando todos os atos necessários ao seu efetivo desempenho, restando-lhe defeso, tão-somente, a prática do poder de império.

42. Detém, pois, o juízo arbitral anotio, a vocatio e o iudicium, síntese da jurisdição. O árbitro é nomeado pelas partes, para pôr fim ao conflito, aplicando o direito ao caso concreto, conforme autoriza e assegura o Estado, através da legislação arbitral.

43. A Lei n° 9.307/96 (Lei Marco Maciel), tornou flagrante o caráter jurisdição da arbitragem “em linha com a modernidade” como se denota do contorno jurídico conferido a esse instituto (v.g. art. 31) e o grau de liberdade e autoridade do árbitro perante as partes, e frente ao Poder Judiciário, cujas hipóteses de revisão da decisão final arbitral são diminutas e, ainda menores, quando se trata de determinações cautelares ou coercitivas, onde o juiz togado é acionado para praticar, unicamente, ato de império, cabendo-lhe indeferir, apenas, em caso de violação da ordem pública ou por ausência de formalidade essencial.

44. Hoje, os grandes processualistas propugnam por uma visão mais moderna da jurisdição, que não mais seja restrita ao seu escopo jurídico, mas revisitada sob os ângulos social e político, numa visão ampla e teleológica cujo denominador comum é a pacificação dos conflitos.

45. Claro está que não há como prosperar qualquer tentativa no sentido de ressuscitar a teoria privatística, já que não acatada em nosso sistema legal.

3. A arbitragem e o acesso ao poder judiciário (artigo 5°, XXXV, da Constituição Federal)

46. É com certa insatisfação que, ainda hoje, no apagar das luzes do século XX, vimo-nos forçados a revisitar tema que já deveria estar, há muito, sepultado e esquecido.

47. Entretanto, o pronunciamento do Ministério Público, requerido pelo Supremo Tribunal Federal, a respeito da constitucionalidade da Lei Marco Maciel, tendo em vista a desnecessidade de homologação do laudo arbitral, leva-nos a retornar o assunto, face as dúvidas levantadas.

48. Não obstante, trataremos de forma sintética do assunto, e remetemos os interessados em maiores detalhes, ao nosso estudo publicado nas Revistas de Direito Renovar n° 4, de Direito Civil n° 77 e Doutrina n° 1.

49. De início, podemos afirmar, sem medo de equívocos, que o contido no inciso XXXV, artigo 5° da CF “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” não vicia de inconstitucionalidade a arbitragem, tampouco a novidade introduzida pela Lei Marco Maciel da desnecessidade de homologação da sentença arbitral, infringe qualquer dispositivo legal.

50. Esse preceito, inserido pela primeira vez na Constituição de 1946, veio pôr fim a um período ditatorial, onde existiam tribunais administrativos com competência para apreciar era única e final, não podendo ser revista pelo judiciário, em hipótese alguma.

51. Ocorria uma efetiva vedação ao direito do indivíduo de buscar as vias da justiça estatal para dirimir a controvérsia.

52. Contudo, não é o que ocorre com a arbitragem, onde o interessado a ela se submete, por livre manifestação da sua própria vontade, e cuja decisão que vier a ser proferida poderá ser reexaminada pela justiça estatal, nos casos de nulidade elencados na lei em questão.

53. Não é o intuito desse dispositivo impor ao cidadão o monopólio da justiça no País, mas, apenas, assegurar-lhe a possibilidade de recorrer ao judiciário, em caso de necessidade.

54. O direito de o cidadão acionar a justiça estatal permanece intocado, pois a solução do conflito pela via privada é ato consensual, e a pessoa ajusta a derrogação da jurisdição estatal calcada na sua capacidade, liberdade e autonomia.

55. A norma constitucional não obriga as partes a solucionar todas as questões jurídicas através da justiça ordinária, tão somente procura assegurar.

56. A garantia de acesso é o que se protege, não podendo o Legislativo ou o Executivo “a quem a norma é endereçada” vedar o direito de qualquer pessoa de buscar o Poder Judiciário para a tutela do seu direito.

57. Contudo, o cidadão não está proibido de optar por dirimir suas controvérsias fora da arena judiciária.

58. E isto não é novidade, pois, não raro, as partes previnem ou põem fim a um litígio através da transação, renunciando, inclusive, a direitos com vistas a auto composição. Ato jurídico este que produz os efeitos de coisa julgada.

59. O destinatário da norma constitucional é o poder constituído – “a lei não poderá excluir” – e não o cidadão comum. Dirige-se ela ao Poder Legislativo e ao Executivo, que não podem suprimir, em caráter definitivo, a instância judiciária ou retirar o direito de o cidadão a ela recorrer.

60. Visa o preceito a coibir abuso, ato arbitrário ou ilegalidade por parte de qualquer autoridade estatal, e somente nesses casos deve ser acionado.

61. Por fim, não podemos esquecer que essa controvérsia já foi examinada no passado, tendo o Supremo Tribunal Federal (STF), por manifestação unânime do seu Pleno, decidido pela constitucionalidade do juízo Arbitral.

4. Aspectos relevantes da Lei n° 9.307/96

62. Preliminarmente, para ilustração, cumpre-nos informar que o Projeto gênese da Lei n° 9.307/96 surgiu de uma pesquisa levada a efeito pelo Instituto Liberal de Pernambuco, junto a diversos segmentos produtivos de nossa sociedade, com o intuito de avaliar a receptividade da utilização da arbitragem, como forma alternativa de realização da justiça no País.

63. Constatada a necessidade de ser revisto o ordenamento jurídico e de se implementar via eficaz de solução de conflitos, foi constituída uma Comissão Relatora, em novembro de 1991, com a incumbência de elaborar Anteprojeto de Lei que dispusesse sobre a arbitragem no Brasil.

64. Após debate e discussão pelos integrantes da Comissão e do exame e inserção de várias sugestões apresentadas por renomados juristas, professores, advogados, membros de Poder Judiciário e de organismos internacionais de arbitragem, o esboço final foi encaminhado, formalmente, à apreciação do Congresso Nacional, em junho de 1992, pelas mãos do então Senador Marco Maciel.

65. De ressaltar que, na fase de preparo e discussão do Anteprojeto de Lei, pôde a Comissão Relatora, através das diversas sugestões e comentários recebidos, conferir os desejos das comunidades em imprimir e assegurar efetiva celeridade ao processo arbitral e o de afastar, ao máximo, a interveniência do Judiciário no campo de atuação da arbitragem.

66. No Congresso Nacional, o Projeto de Lei, sofreu duas pequenas emendas, que não desnaturaram sua essência, e, após aprovação das duas Casas, foi convertido, finalmente, na Lei n° 9.307, em 23/9/96.

67. Feito esse introito, passaremos a tratar, a seguir, de alguns dos aspectos relevantes da Lei Marco Maciel.

68. 4.1 Mantendo-se a cultura e tradição brasileira, a escolha da arbitragem somente pode recair sobre matéria que diga respeito a direitos patrimoniais disponíveis.

69. Aplica-se, pois, o instituto, a um sem-número de conflitos, incluindo aqueles resultantes das relações de consumo e trabalhistas.

70. No campo do direito do trabalho, preleciona Márcio Yoshida, com sua peculiar objetividade, serem passíveis de arbitragem os seguintes direitos: (a) os relativos a salários e a jornada de trabalho; (b) os decorrentes de contrato de trabalho já extinto; (c) os complementares às disposições convencionais e legais mínimas, hoje atribuídos à Justiça do Trabalho; (d) aqueles de natureza coletiva e decorrentes da aplicação, em tese, de leis ou convenções e acordos coletivos; (e) aqueles ligados ao artigo 7° da Lei de Greve e (f) os relativos a contratos de trabalho em vigor, que se constituíram anteriormente à arbitragem (in A Arbitragem no âmbito do Direito do Trabalho, a ser publicado em livro coordenado por J.M. Rossani Garcez).

71. 4.2. Foram prestigiados, em toda a sua plenitude, os postulados da autonomia da vontade e da liberdade de contratar. Esse são os princípios que prevalecem e estão de forma clara assegurados na lei de arbitragem, sendo ampla a liberdade das partes na escolha das normas de direito substantivo e adjetivo que melhor se adaptem aos seus interesses, podendo, inclusive, optar pela realização da arbitragem com base nos usos e costumes comerciais, nos princípios gerais de direito e nas normas internacionais de comércio. De ressaltar, também, que os contratantes poderão indicar solução por equidade (ex bono et aequo), tradicional e mundialmente aceita. No tocante ao procedimento, será válido às partes reportarem-se às regras de uma entidade arbitral ou delegar ao árbitro, ou ao tribunal arbitral, o direito de governa-lo.

72. Releva anotar que a arbitragem congrega o fim que processualistas de escol, comprometidos com a justiça, têm pregado nos últimos tempos: a deformalização do contencioso.

73. A arbitragem consubstancia a própria deformalização das controvérsias, pois é meio de solução dos conflitos, fora da arena judicial e é, também, instrumento propício para a deformalização do processo, pois as regras procedimentais podem ser estabelecidas pelos interessados.

74. Toda atenção é pouca para não se deixar levar pela tentação de processualizar a arbitragem, pois contrário aos pressupostos que regem o juízo arbitral e que atraem seus usuários e entusiastas.

75. No que diz respeito, ainda, ao artigo 2° da lei em questão, cabe frisar que a liberdade de escolha é plena e ampla, não incidindo, nesse particular, o contido no artigo 9° da Lei de Introdução ao Código Civil e, tampouco, os princípios de conexão que imperam no direito internacional.

76. 4.3. A cláusula compromissória ou arbitral não mais poderá ser tida como mero pactum de contrahendo ou pactumde compromittendo, desprovida de força obrigacional. O seu descumprimento produzirá efeito jurídico prático para o prejudicado, qual seja, o direito de a parte adimplente obter em juízo a execução específica da cláusula arbitral, com a conseqüente sujeição da controvérsia ao juízo arbitral.

77. A Lei Marco Maciel, ao adotar o instituto da execução específica, assegurou o meio legal de tornar válida a cláusula arbitral e, assim, desobstruir um dos graves obstáculos ao desenvolvimento da arbitragem no País.

78. É esse o sistema que impera nos demais ordenamentos jurídicos, sendo possível, em caso de recusa em instituir a arbitragem, que organismo arbitral institucional supra a vontade da parte recalcitrante, se previsto no Regulamento ao qual os contratantes da convenção vincularam-se.

79. Nesse sentido, em linha com a independência e a autonomia que norteiam o juízo arbitral, a ida ao Poder Judiciário, para a execução específica da cláusula compromissória, e tem caráter supletivo e deve ser utilizada na ausência de outros mecanismos legais similares.

80. 4.4. Seguindo as melhores doutrinas, jurisprudências da espécie e as legislações modernas, a Lei Marco Maciel traz em seu bojo o conceito “kompetenz-kompetenz”, pelo qual toda e qualquer dúvida ou controvérsia com relação à validade, existência e eficácia do contrato e/ou da cláusula arbitral que dele conste, cabe ao árbitro resolver.

81. Assim sendo, a cláusula arbitral é autônoma e independente dos demais dispositivos contratuais, razão pela qual a eventual nulidade ou ineficácia do ajuste não produz efeito negativo quanto à validade da cláusula arbitral e, conseqüentemente, mantém o árbitro ou tribunal arbitral competência para analisar e decidir essa especial questão.

82. 4.5. Clientes de que a arbitragem funda-se, rigorosamente, na fidúcia e que, apesar de ser desenvolvido fora da arena judicial, os árbitros estão em posição análoga a dos juízes estatais, necessário que o instituto seja rigidamente protegido por regras que assegurem, às partes envolvidas, plena confiança na idoneidade do processo arbitral.

83. Devido à reduzida interferência do Poder Judiciário no rito convencional, cresce, sobremaneira, a importância da atuação dos árbitros “baluartes do sucesso da arbitragem” razão pela qual, a Lei n° 9.307/96 impôs a esses julgadores deveres e responsabilidades, de modo a imprimir lisura e imparcialidade no julgamento.

84. Aplicam-se, assim, aos árbitros, os mesmos casos de suspeição e impedimento impostos aos juízes togados; e, no campo moral e ético, devem os juízes privados, acima de tudo e contra todos, manter total imparcialidade, independência, diligência, competência e discrição no exercício do seu ofício.

85. Por outro lado, no âmbito do processo, encontram-se os contratantes amparados pelas garantias processuais do contraditório, da igualdade das partes e da livre convicção do árbitro.

86. Dada a amplitude e a imperatividade das regras de conduta impostas aos árbitros, não entendemos factível adotar-se, entre nós, a figura do árbitro não-neutro (“arbitre-partie”), bastante difundida nos Estados Unidos.

87. Os árbitros dessa categoria atuam como defensores dos interesses da parte que o indicou. No nosso sistema legal, o árbitro é juiz de fato e de direito e exerce múnus publicum e, na qualidade de julgador, deve exercitar seu ofício em estrita conformidade com as regras de conduta fixadas na lei: imparcialidade e independência.

88. Não deve, pois, tomar partida ou defender os interesses pessoais de quaisquer das partes.

89. 4.6. Acatando os clamores dos estudiosos do assunto, não mais será necessária a homologação do laudo arbitral para produzir-lhe os efeitos de sentença judicial, reduzindo-se, assim, etapa desnecessária e burocrática que obsta a celeridade do rito extrajudicial. Logo, tem o laudo, per se, força obrigacional e produz os mesmos efeitos da sentença judicial, inclusive o condenatório.

90. Mero giudizio di delibazione, que visa a apreciar unicamente, as formalidades necessárias à validade da sentença arbitral, é a homologação ato inócuo e descartável, pois defeso ao juiz reexaminar o mérito da questão.

91. Não configura qualquer ilegalidade a dispensa de homologação, pois contribui para acelerar o cumprimento da decisão arbitral, mantém a confidencialidade da questão e conserva, ainda, a parte insatisfeita, o direito de argüir, no judiciário, eventual nulidade da arbitragem, de conformidade com o artigo 33 da Lei Marco Maciel.

92. Suprimido esse ato burocrático, natural que a lei viesse a atribuir, ao laudo arbitral, os efeitos legais de uma sentença judicial, inclusive o condenatório.

93. Importante ressaltar que o legislador nacional, coerentemente, também acabou com a necessidade da dupla homologação, nos casos de laudo estrangeiro.

94. Basta, tão-somente, a homologação do laudo estrangeiro pelo Supremo Tribunal Federal, para que a sentença arbitral seja “nacionalizada”, e, assim, passe a irradiar plena eficácia no território nacional. Desnecessária, pois, a homologação pelo Poder Judiciário do país de origem, ressalvados os casos em que a legislação local venha exigir.

95. Por outro lado, não há vício de inconstitucionalidade na competência do STF para reconhecer ou executar sentença arbitral estrangeira, pois esta é espécie do gênero “sentença estrangeira”, prevista no artigo 102, da Constituição Federal, com são a sentença judicial e as proferidas por órgãos administrativos, não-judiciais, e acatadas estas pelo Supremo Tribunal, dada a semelhança de eficácia com as decisões proferidas pela Justiça ordinária.

96. E é o que ocorre hoje, no Brasil, dado ao fato de ter a lei de arbitragem equiparado para todos os fins de direito, de forma expressa e intencional, os efeitos da sentença arbitral àqueles produzidos pelas decisões judiciais.

97. 4.7. Em consonância com o direto constitucional de petição, e com o princípio basilar que rege o instituto da arbitragem “autonomia da vontade” a Lei n° 9.307;96 confere aos compromitentes, a opção de serem representados por advogado perante o Juízo arbitral.

98. Outrossim, a ausência do advogado no processo arbitral não contraria o Estatuto das OAB, que impõe a presença do profissional apenas perante os órgãos do Poder Judiciário, e, mesmo assim, com as exceções relativas à Justiça do Trabalho, às revisões de penas criminais e aos juizados Especiais Cíveis e Criminais.

99. Na verdade, raríssimos são os casos em que o processo arbitral desenvolve-se sem a presença do advogado. Nesse particular, vale um alerta! É tempo de mudança para o profissional da advocacia; e, para melhor, pois o campo de trabalho foi ampliado. Contudo, devem ser alterados os padrões de conduta e os hábitos desse profissional.

100. Na arbitragem, não deve prosperar a cultura que visa a “destruir” ou “arrasar” o adversário. Não há rival, pois não há litígio e, sim, mero conflito de interesses. Não prevalecem, nos meios alternativos de solução de controvérsias, os modelos tradicionais da advocacia contenciosa.

101. O clima deve ser ameno, a atitude a pontificar é a da cooperação, pois o desejo comum é o de solucionar a questão. E, para isso, a informalidade e a deformalização do processo arbitral são fatores inerentes ao instituto e ajudam na implementação dessa cultura.

102. A missão principal do advogado não é litigar, que deve ser exercitado, unicamente, em última instância. Cabe a ele prevenir litígios, prover o cliente com aconselhamentos extrajudiciais, de modo a evitar o conflito e, se este vier a ocorrer, deve o advogado buscar a solução do problema de forma a manter, a todo custo, as relações comerciais do seu cliente com a outra parte.

103. Nesse aspecto, de suma relevância a busca pela resolução do conflito via justiça coexistêncial ou reparadora, corolária dos meios alternativos do qual a arbitragem é espécie.

104. 4.8. No que tange ao rito arbitral, o aspecto que revela apontar é o amplo poder conferido ao árbitro para adotar as medidas cautelares ou coercitivas, necessárias à efetiva realização da justiça.

105. Nesse sentido, pode o árbitro tomar o depoimento das partes, ouvir testemunhas e determinar a realização de perícias e, ainda, outros remédios que julgue necessários, seja por requerimento das partes ou de ofício.

106. Todas essas medidas devem, obrigatoriamente, ser requeridas ao juízo arbitral que as analisará e decidirá, ou não, pelo seu deferimento. Caso o pedido cautelar ou coercitivo não seja acatado pelos árbitros, não pode a parte requerente buscar a via judicial visando a atingir o que já lhe foi indeferido pelo juízo privado.

107. Nesse caso, faltará competência ao juiz togado, face a existência de convenção de arbitragem, e a parte estaria infringindo cláusula contratual derrogatória da Justiça Estatal.

108. Duas exceções podem ocorrer: a primeira, quando a medida se faça necessária antes da instituição da arbitragem, e, a segunda, após constituído o juízo arbitral, o remédio legal seja imperativo e impossível a reunião dos árbitros, em temo hábil, de modo a garantir a eficácia da medida requerida. Contudo, em ambos os casos, é forçoso comprovar a urgência do provimento legal.

109. Caso o juízo arbitral determine a adoção da medida requerida, pode o interessado, diretamente, e munido dessa decisão cautelar arbitral, requerer ao juízo ordinário a imposição da medida, através do exercício do poder de império a este conferido pelo Estado. Pode, também, se for o caso, o próprio juízo arbitral requerer à justiça Estatal a efetivação da sua medida legal.

110. 4.9. Dispositivo relevante introduzido pela lei de arbitragem no nosso sistema legal é o que determina deva ser a sentença arbitral estrangeira reconhecida ou executada no País, de conformidade com os Tratados Internacionais e, somente na sua ausência, de acordo com as regras da Lei Marco Maciel.

111. Flagrante a intenção do legislador em conferir supremacia ao direito internacional vis-à-vis o doméstico, em linha com o entendimento que prepondera entre os comercialistas e internacionalistas de escol, de apoio à teoria monista radical. Assim, no campo internacional, a Lei Marco Maciel somente há de ser aplicada quando não haja Tratado com eficácia no nosso ordenamento jurídico.

112. Os acordos multilaterais da espécie devem ser sempre adotados, exista ou não lei posterior que trate da mesma matéria, pois as regras contidas no Capítulo VI da lei de arbitragem são de aplicação supletiva.

113. 4.10. Por fim, no âmbito do procedimento estabelecido na lei em exame, a citação da parte residente ou domiciliada no Brasil não mais precisará ser efetivada através da expedição da carta rogatória, podendo ela ser citada de acordo com o, espontaneamente, acordado no compromisso arbitral, ou conforme dispuser a legislação processual do país onde se realizar a arbitragem, inclusive via postal; contudo, é imperativo haja prova inequívoca do recebimento da citação e que a parte brasileira tenha tempo hábil para elaborar sua defesa. São esses os pontos primordiais da Lei Brasileira que dispõe sobre Arbitragem que mereciam os breves apontamentos acima delineados.

114. Concluindo, e, desde logo, contrariando alguns pessimistas e outros tantos desconfiados da efetiva celeridade que o rito arbitral seria capaz de imprimir às matérias a ele submetidas, devemos mencionar que dados publicados pela “Triple A” – “American Arbitration Associaton” em 1992 (os anos posteriores não fogem de todo a essa regra), indicam que 4.452 questões comerciais foram apreciadas e julgadas por essa entidade no referido ano. As que demandaram mais tempo foram aquelas que envolviam valores superiores a US$ 1,000,000.00, que duraram, em média, 503 dias, a contar da instauração do juízo convencional até o laudo decisivo.

115. Para um País como o nosso, onde uma pendência de pouca ou nenhuma complexidade jurídico-factual, dificilmente, é resolvida em menos de 3 anos, nem mesmo se submetida ao processo sumário (“o mais ordinário de todos”), os dados da AAA são avassaladores e deveriam servir para balizar os pensamentos mais conservadores, e flexibilizar o misoneísmo de alguns quanto às novas técnicas da justiça convencional que, cedo ou tarde, terá ampla utilização no Brasil, como meio prático e ligeiro de atender à crescente demanda e clamor pelo acesso à justiça.

  1. Advogado, Professor e Consultor em Arbitragem.

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