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Pedro A. Batista Martins

  1. Breve retrospectiva.

A arbitragem como meio de solução das controvérsias societárias foi, pioneiramente, positivada no Código Comercial de 1850.

Portanto, há mais de 160 anos possibilitou-se aos empresários solucionarem os conflitos existentes no seio de sociedade comercial através de mecanismo próprio, ágil, célere e, mais marcante, fora da égide do Poder Judiciário.

Dessa forma, já àquela época, poderiam escolher os julgadores – pautados em suas especialidades e qualificações -, o local onde o procedimento teria curso, as regras procedimentais incidentes, os prazos e a lei aplicável. Nesta última hipótese, poderiam os comerciantes adotar conjunto de regras peculiares aos seus negócios, como os usos e costumes e as praxes comerciais[1].

Fundado na liberdade do cidadão frente ao Estado[2] e na convicção de inexistir monopólio do Judiciário acerca de direitos patrimoniais disponíveis, o legislador de 1850, sensível aos anseios da comunidade empresária de então, instituiu a arbitragem obrigatória para a solução das controvérsias havidas entre os sócios e as relativas à liquidação e partilha do acervo social, e deixou à livre escolha dos sócios e da sociedade a possibilidade de se utilizar a arbitragem para a resolução das demais controvérsias sociais.

Portanto, o comerciante tinha plena liberdade de optar pelo caminho da arbitragem para solucionar todos os conflitos que porventura surgissem no âmbito social, exceto aqueles que, compulsoriamente, deveriam ser solucionados pelo juízo arbitral.

Impende registrar a ousadia do legislador de 1850 ao impor o afastamento da justiça estatal nas controvérsias entre os sócios e naquelas oriundas da liquidação e partilha dos bens da sociedade, haja vista os calafrios que a arbitragem necessária ou compulsória ainda hoje – sem razão – causa na comunidade jurídica.

Digo isso pelo fato de o art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal não vedar a imposição, por lei, da via arbitral para a solução de determinados conflitos[3].

Isso porque esse comando constitucional, primeiramente, não foi obstáculo para a validade e eficácia da Lei n. 9.307/96 (Lei de Arbitragem) e, segundo, a teleologia desse dispositivo volta-se para outros fundamentos de Direito.

Impinge ressaltar a inexistência de previsão da espécie em constituições de países avançados, sem que tal ausência implique em ameaça aos jurisdicionados de vir a ter sonegado, a qualquer tempo, seu sagrado direito de acesso à justiça.

Historicamente, percebe-se que essa norma foi inserida na Constituição Federal de 1946, logo após o advento do Estado Novo, período em que não eram incomuns julgamentos sem a observância do devido processo legal. Pairavam os tribunais de exceção e os abusos na aplicação dos mais comezinhos direitos dos cidadãos, muitas vezes pautados em regras legais estabelecidas para respaldar práticas inadequadas.

À luz dessa realidade, e de forma a registrar que os abusos do passado não mais seriam tolerados, os constituintes de 1946, de forma didática e profilática, resolveram deixar expresso norma inerente a qualquer estado de Direito. Em outros termos, a regra de acesso à Justiça independe de registro constitucional, pois, ainda que não conste explícita em qualquer constituição, não há de ser olvidada nos países em que vige o pleno Estado de Direito, posto ser o acesso à justiça direito natural de todo cidadão.

Daí porque o art. 5º, inciso XXXV de nossa Constituição não deve ser analisado e interpretado de maneira isolada e destacada de suas causas históricas, ou de forma literal, a ponto de admitir-se a impossibilidade de o conflito ser resolvido sem o envolvimento do Poder Judiciário, até mesmo em razão de a qualquer um ser assegurado o direito de transacionar ou renunciar a direitos e pretensões.

De fato, o verdadeiro sentido do conteúdo normativo desse dispositivo não é o de propalar o monopólio da justiça pelo Poder Judiciário, e, sim, o de assegurar a todos um processo justo, fundado na ampla defesa e no contraditório. O que se quer, de fato, é garantir a todos os cidadãos que seus direitos, deveres e obrigações, uma vez controvertidos, sejam apreciados e julgados de forma imparcial, com a observância do devido processo legal. Destarte, atendidos os pressupostos de relevo, a arbitragem necessária pode ser manejada legalmente.

Feita essa digressão, e exatamente pelo entendimento enviesado que acabo de contestar, a arbitragem obrigatória estabelecida no Código Comercial de 1850 foi fulminada pela Lei n. 1.350, de 1866, por obra e graça de José Thomaz Nabuco de Araújo, pai de Joaquim Nabuco e integrante do Gabinete de Olinda, cuja posição no governo corresponderia hoje, de certo modo, a Ministro da Justiça.

No ano seguinte, também por iniciativa de José Thomaz Nabuco de Araújo, a arbitragem facultativa sofre enorme revés com a promulgação do Decreto n. 3.900, que acabou por gerar o entrave que inviabilizou a adoção da arbitragem por mais de 100 anos, ao criar a malfadada figura jurídica do compromisso.

Com isso, ainda que pactuada no contrato a cláusula compromissória, as partes deveriam, após a erupção da disputa, firmar novo instrumento – compromisso – para definir o escopo da controvérsia, pois somente com as questões conflituosas devidamente delimitadas é que as partes estariam aptas a afastar o Poder Judiciário.

Dito de outro modo, ainda que a disputa estivesse cingida aos direitos, deveres e obrigações contempladas no contrato em que inserta a cláusula arbitral, tal circunstância não era suficiente para que a manifestação de vontade fosse eficaz. Dependia ela de ser especificada no compromisso. Somente assim a cláusula compromissória produziria seus efeitos de direito.

Essa normativa, não resta dúvida, tornou impraticável o desenvolvimento do instituto da arbitragem no Brasil, como demonstrou a realidade fática, pois o consenso exigido para a fixação dos termos e condições do compromisso não se mostrava factível quando já disseminada a discórdia.

Após décadas e décadas perdidas e três anteprojetos de lei sem encaminhamento nos anos de 1980, finalmente o instituto é introduzido no Brasil em 1996 – não sem muitas e árduas batalhas[4] – com a edição da Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/96, também conhecida como Lei Marco Maciel).

  1. A arbitragem na panela de pressão.

Os anos 80 e 90 foram marcados pelo avanço da arbitragem no cenário internacional e pela sua inserção na agenda das autoridades nacionais dada a sua intercessão nas negociações dos financiamentos externos e, posteriormente, a própria convergência com os desideratos governamentais.

De fato, durante a década de 1970 e até meados de 1980, o Brasil, aproveitando os baixos juros no mercado internacional, contraiu empréstimos externos para fazer frente à implementação e desenvolvimento das atividades executadas pelas estatais, tais como Furnas, Itaipu, Telebras, Nuclebras e Eletrobras.

Por seu turno, os contratos de empréstimo, normalmente executados por um pool de bancos, continham cláusula compromissória cuja eficácia, pela necessidade de formalização do compromisso, era ressalvada pelos advogados brasileiros das instituições financeiras no momento de concluir suas legal opinions nas quais registravam a validade e a exequibilidade, ou não, dos termos e condições dos Loan Agreements.

Conquanto fosse interesse dos bancos estrangeiros dirimir por arbitragem, em Londres ou Nova Iorque, eventual controvérsia surgida no âmbito desses contratos, os pareceres legais de seus advogados brasileiros não consideravam essa hipótese como factível, ressalvando-a em seu texto, dada a resistência do país ao instituto.

Nada obstante, ainda que extremamente frágil sua eficácia no país, os bancos financiadores pressionavam pela inserção da cláusula compromissória nos contratos de empréstimo – o que de fato ocorria – e buscavam ainda conferir-lhe, no limite do possível, um contorno mínimo de segurança que propiciasse aos banqueiros transitar em uma zona mediana de conforto.

Para tanto, mas não sem muita relutância, a União Federal, enquanto garantidora das tomadoras dos financiamentos, aceitava a inclusão da cláusula arbitral amparada em Parecer da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, pelo qual, e nos limites nele contidos, permitia a introdução da cláusula de arbitragem nos contratos de empréstimo. No entanto, não concordava em renunciar à sua jurisdição, apesar da insistência dos bancos estrangeiros[5].

Com isso, chegou-se a um meio termo que atendesse, de certo modo, aos interesses das partes contratantes[6].

De outro lado, à medida que o país se torna mais atuante no plano do comércio internacional, e nosso mercado mais cobiçado, aumentam a pressão e a insistência na utilização da arbitragem para a resolução de conflitos e, logicamente, na implementação de arcabouço jurídico que validasse a arbitragem no perímetro nacional[7].

Nessa época, década de 1980, a pedido do Ministério da Justiça, são elaborados três anteprojetos de lei dispondo sobre arbitragem (dois na primeira metade e o último, bem deficiente, ao final desse período), os quais sequer foram encaminhados ao Congresso Nacional.

Sem embargo, já se prenunciava a importância do instituto e sua premente necessidade de inserção no âmbito legal, dada a crescente participação do país nos negócios internacionais, cuja comunidade demandava método célere e neutro de solução de conflitos. O apoio e a inserção da arbitragem nos contratos de comércio internacional eram tão presentes que se chegou a afirmar “não existir contrato sério sem que dele conste cláusula compromissória”.

Com o incremento do uso da arbitragem pelos países mais desenvolvidos e com forte presença econômica, a pressão faz-se sentir e, justamente nessa ocasião – início da década de 1990 –, projeto de lei sobre arbitragem inicia sua tramitação no Congresso Nacional (junho de 1992) para ser convertido, quatro anos após, na Lei de Arbitragem, também conhecida como Lei Marco Maciel.

Interessante observar que, antes mesmo de sua promulgação, a Lei de Concessão e Permissão de Serviços Públicos (Lei n. 8.987/95) já tratava a arbitragem como cláusula essencial dos contratos de concessão, e no período em que a constitucionalidade da Lei de Arbitragem esteve sub judice no Supremo Tribunal Federal o legislador continuou prestigiando o instituto, dada a edição das Leis do Petróleo (Lei n. 9.478/97) e das Telecomunicações (Lei n. 9.472/97).

Do mesmo modo que a Lei de Concessão e Permissão de Serviços Públicos, a Lei do Petróleo incluiu a arbitragem como uma das cláusulas essenciais dos contratos de concessão. Já a Lei das Telecomunicações foi mais adiante: não só conferiu a mesma essencialidade à cláusula compromissória, como também estabeleceu que as disputas atinentes ao equilíbrio econômico-financeiro dos contratos, à revisão das tarifas e à fixação da indenização devida ao final do prazo da concessão (incluindo a reversão dos bens utilizados na exploração dos serviços) deveriam ser resolvidas por arbitragem.

Observa-se dessas práticas legislativas, claramente, ter o Estado percebido a arbitragem como instrumento de atração para os investimentos necessários ao implemento e incremento das atividades de infraestrutura que viriam a ser privatizadas.

Nessa área, sabidamente de vultosos investimentos e partícipes sofisticados, sobrelevam a segurança jurídica e os custos de transação, seara em que a arbitragem responde positivamente, dado favorecer a análise econômico-financeira dos contratos.

Assim, a admissão da arbitragem no sistema legal nacional não ocorreu pelas suas conhecidas vantagens, mas pela necessidade de atração de investimentos e de players que pudessem energizar e alavancar o processo de privatização levado a cabo pelo governo Fernando Henrique Cardoso.

Em outras palavras, a arbitragem não foi, à época, assimilada pelo seu natural valor, mas, sim, por mero interesse. Essa percepção só foi alterada a partir do ano 2000, com a entrada em vigor de novas leis incentivando a sua utilização e com a crescente difusão do instituto da arbitragem, inclusive nas Escolas de Direito, o que tornou possível a sua assimilação no inconsciente coletivo.

Também cumpriu papel relevante para a alavancagem da arbitragem a consolidação da jurisprudência judicial favorável ao instituto, e, agora, com o Código de Processo Civil de 2015, regras importantes restaram codificadas, a denotar o maciço apoio a esse meio extrajudicial de solução de conflitos.

  1. A arbitragem volta a atender os anseios empresariais.

Com a conscientização dos benefícios e vantagens da arbitragem pelo empresariado nacional e pelos advogados, sua utilização amplia-se para a solução dos conflitos no seio das sociedades anônimas e, com isso, é alterado o art. 109 da Lei n. 6.404/76, que passa a constar com mais um parágrafo de seguinte redação:

“§ 3º – O estatuto da sociedade pode estabelecer que as divergências entre os acionistas e a companhia, ou entre acionistas controladores e os acionistas minoritários, poderão ser solucionadas mediante arbitragem, nos termos em que especificar.”[8]

Denota-se da simples leitura desse dispositivo inexistir ressalva quanto ao quórum para a introdução de cláusula compromissória estatutária.

Outrossim, percebe-se do conteúdo do art. 1º da Lei de Arbitragem (“As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis”) que, ainda que inexistente o referido § 3º do art. 109 da Lei n. 6.404/76, os conflitos interna corporis eram passíveis de submissão à arbitragem. Afinal de contas, essas disputas tratam de direitos patrimoniais disponíveis.

Daí resulta que a alteração levada a cabo visou, muito mais, a induzir as companhias e acionistas a resolverem seus conflitos de forma mais célere, confidencial e por especialistas, em prol da boa governança corporativa, do que a efetivamente viabilizar o uso da arbitragem na seara societária.

Essa indução ou persuasão para a resolução dos conflitos sócio-sócio e companhia-sócios, funda-se no fato de serem as sociedades anônimas a mola propulsora dos grandes investimentos, assim como instrumentos mundiais de avanço econômico e social. São, sem dúvida, peças fundamentais da globalização e do tráfego comercial, chegando o faturamento de algumas delas a superar o produto interno bruto de vários países.

Por essas e outras razões, são parceiras do Estado em projetos de grande porte, e também são chamadas a unir esforços, via consórcio, de maneira a viabilizar a concentração de vultosos recursos voltados a empreendimentos de alta complexidade e de relevância nacional.

Com efeito, o desenvolvimento dessas atividades pelas sociedades anônimas implica em complexa relação comercial e jurídica, toda ela amarrada em extenso feixe contratual a demandar rápida resposta em caso de divergências, pois, mais do que nunca, tempo é dinheiro; e tempo perdido encerra perdas de oportunidades irrecuperáveis.

Por certo, é impensável, no contexto atual, em que competição é cada vez mais intensa e se revela sem fronteiras, diante da regionalização, da globalização e das infindáveis facilidades de comunicação, que uma disputa comercial se prolongue por dois, três ou quatro anos. A dinâmica exuberante do mercado e a agilidade empresarial, aliadas aos avanços frequentes e intermitentes da tecnologia e às atividades a elas correlatas, demandam uma solução ágil para os conflitos que resultam das múltiplas relações negociais, inclusive, se possível, que permita aos demandantes, não obstante, manter o diálogo comercial que a parceria exige; que as controvérsias, diante dessas circunstâncias, sejam tratadas como ruptura temporária, sem maiores impactos nas relações comerciais[9].

Não por outra razão que a Câmara de Arbitragem do Mercado, constituída pela Bovespa, agrega mais de 130 companhias abertas com cláusula compromissória estatutária.

  1. Ausência de excepcionalidade na deliberação assemblear para inserção de cláusula estatutária.

Considerando a alegada generalidade do comando contido no § 3º, art. 109 da Lei das S.A., e por nada tratar do quórum para a deliberação de inclusão de cláusula compromissória estatutária, o debate sobre o tema se instaurou a ponto de se arguir a incompatibilidade da arbitragem com o parágrafo imediatamente precedente que estabelece: “§ 2º – Os meios, processos ou ações que a lei confere ao acionista para assegurar os seus direitos não podem ser elididos pelo estatuto ou pela assembleia-geral.

Essa incompatibilidade dar-se-ia também, como sustentaram, pelo fato de o estatuto social ser instrumento de adesão e, desse modo, incidir na espécie o § 2, art. 4º, da Lei de Arbitragem, que contempla a seguinte redação:

“Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a sua assinatura ou visto especialmente para essa cláusula”.

Entretanto, não procedem esses entendimentos, pois a arbitragem não elide direitos processuais de acionistas ou o seu acesso à justiça, estando prevista em lei e seu procedimento assegurando aos demandantes julgamento imparcial e pautado nos ditames do devido processo legal.

Tampouco impera na sociedade anônima a restrição prevista no § 2º, art. 4º, da Lei de Arbitragem, pois tal regra excepcional dirige-se aos típicos contratos de consumo. Era essa, e sempre foi, a inclinação do legislador, tanto é que constava do projeto de lei que resultou na atual Lei de Arbitragem a revogação do art. 51, inc. VII, do Código do Consumidor, haja vista o tratamento dado a essa matéria pelo referido § 2º do artigo 4º.

Por certo, contratos de prestação de serviços e de fornecimento de produtos voltados ao consumidor divergem, conceitual e instrumentalmente, dos contratos de sociedade, seja pela hipossuficiência e interesse egoísta, seja pela predeterminação de seu conteúdo e cláusulas uniformes.

O contrato de sociedade não é de índole comum, posto não haver reciprocidade de direitos e obrigações ou antagonismo de posição contratual. Reversamente, as partes têm obrigação para com todas as outras e a cooperação encerra a relação social, dado o interesse comum que impera. Conforme Ascarelli, o contrato de organização não termina com o cumprimento da obrigação da parte, antes premissa de atividade ulterior.

Daí a afirmação de Vivante de que o contrato de sociedade transforma interesses individuais e divididos dos sócios em interesse coletivo.

A relutância em se admitir a arbitragem no campo das sociedades anônimas chegou ao ponto de se sustentar a necessidade de o adquirente de participação acionária aceitar, formalmente, submeter-se à arbitragem, caso incluída essa cláusula no estatuto social.

Nada mais equivocado, pois ao comprar ações é pressuposto que o adquirente tenha conhecimento das regras dispostas no estatuto da companhia, e que dessa aquisição resulte a assunção pelo novo titular dos direitos e obrigações até então detidos pelo cedente-vendedor.

Quanto ao quórum de deliberação, o debate se acirrou independentemente de a matéria não tocar direitos patrimoniais ou políticos dos acionistas e, tampouco, contrariar o interesse social.

Nada obstante, e sem fundamento legal, sustentou-se a necessidade de a inclusão de cláusula arbitral estatutária demandar quórum qualificado e/ou direito de recesso, relegando a segundo plano o fato de prevalecer o quórum majoritário para uma gama enorme de decisões substantivas, dada a excepcionalidade do quórum qualificado, e, muito mais, do exercício do direito de retirada.

Não há dúvida de a deliberação por maioria ser a regra, e a submissão da minoria dissidente não implicar renúncia a direito. Aprovada a deliberação é dever do acionista observá-la, sob pena de subversão da ordem social.

Isso, porque, a posição jurídica do acionista é a de sujeição, e não a de renúncia. A regra geral é a de a maioria ditar a solução para os interesses e questões da companhia, desde que não haja abuso ou desvio, com a consequente aceitação pela minoria, pois o efeito jurídico daí advindo, reitere-se, é o de sujeição.

Não há, portanto, abandono do direito pela minoria ou sua desistência. A deliberação assemblear aprovada de acordo com os ditames legais e contratuais produz eficácia potestativa, notadamente no que toca aos dissidentes, pois dela emana direta subordinação do acionista aos interesses do grupo.

Daí se falar em sujeição do acionista frente à deliberação majoritária, sujeição essa que se traduz, na expressão de Carnelutti, na impotência da vontade para a tutela de um interesse. Destarte, percebe-se que a decisão assemblear produz efeitos potestativos que implicam para os minoritários o dever de observar e cumprir o comando majoritário.

No mais, no confronto entre princípios – consenso e maioria -, prevalecerá o que governa as companhias, pilar de sua existência.

Outrossim, não vislumbro razão para se ampliar o quórum na aprovação de cláusula compromissória estatutária quando várias decisões que tocam interesses patrimoniais de acionistas são tomadas sem que haja previsão de quórum qualificado e, nua e cruamente, a arbitragem atinge o desiderato social, no mínimo, por impedir que uma disputa entre sócios ou entre esses e a companhia perdure por anos, em grave desproveito da empresa, demais sócios, colaboradores, fornecedores e outros tantos.

  1. Aprovação assemblear de cláusula compromissória estatutária. Visão inadequada do legislador.

Com o intuito de pacificar o debate, por meio da alteração legislativa de 2015 (Lei n. 13.129) modificou-se a Lei das S.A. para introduzir o seguinte dispositivo:

“Art. 136-A. A aprovação da inserção de convenção de arbitragem no estatuto social, observado o quorum do art. 136, obriga a todos os acionistas, assegurado ao acionista dissidente o direito de retirar-se da companhia mediante o reembolso do valor de suas ações, nos termos do art. 45.

§ 1º A convenção somente terá eficácia após o decurso do prazo de 30 (trinta) dias, contado da publicação da ata da assembleia geral que a aprovou.

§ 2º O direito de retirada previsto no caput não será aplicável:

I – caso a inclusão da convenção de arbitragem no estatuto social represente condição para que os valores mobiliários de emissão da companhia sejam admitidos à negociação em segmento de listagem de bolsa de valores ou de mercado de balcão organizado que exija dispersão acionária mínima de 25% (vinte e cinco por cento) das ações de cada espécie ou classe;

II – caso a inclusão da convenção de arbitragem seja efetuada no estatuto social de companhia aberta cujas ações sejam dotadas de liquidez e dispersão no mercado, nos termos das alíneas ‘a’ e ‘b’ do inciso II do art. 137 desta Lei.”

Observa-se, de uma simples mirada, o rigoroso tratamento dado ao instituto arbitral em segmento de mercado no qual sua utilização é de enorme valia, inclusive, e no extremo, para a própria sobrevivência da empresa.

Com efeito, a insegurança e as incertezas de uma acirrada e longa disputa societária podem acarretar, no mais das vezes, a saída de executivos e colaboradores chaves, perdas de oportunidades e de market share, impacto no balanço, aperto na obtenção de financiamentos e crédito, a par de outras tantas situações negativas para companhia e colaboradores.

O rigor adotado pelo legislador para a viabilização da arbitragem societária não se coaduna – pela dificuldade imposta pela lei – com as modernas práticas corporativas, nas quais a arbitragem apresenta-se como instrumento eficaz de melhoria da governança das companhias.

Basta, para tanto, ver o exemplo da Bovespa, que exige a inserção de cláusula arbitral estatutária como pré-requisito para a companhia, com ações negociadas na Bolsa de Valores, se alçar aos maiores níveis de governança do mercado.

Outrossim, os meios extrajudiciais de resolução de conflitos societários encerram tamanha relevância a ponto de sua utilização já ser considerada como elemento inerente aos deveres de cuidado e diligência atribuíveis aos administradores.

Ademais, é cediço que tais meios são saudados por vários órgãos, internacionais e nacionais, que estudam e divulgam os melhores procedimentos de boas práticas corporativas.A título de exemplo, consta do Código das Melhores Práticas de Governança Corporativa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC), em seu item 1.4 – que trata de mediação e arbitragem – ser “fundamental prever formas ágeis e eficazes de resolução de controvérsias e divergências entre sócios e administradores e entre estes e a própria organização, para evitar prejuízos ao desempenho ou redução do valor da organização”. O mesmo dispositivo aduz que “os conflitos entre sócios, administradores e entre estes e a organização devem, preferencialmente, ser resolvidos mediante a negociação entre as partes[10].Caso isso não seja possível, o referido Código recomenda a resolução da divergência por meio de mediação e/ou arbitragem. Nesse sentido, as boas práticas demandam, segundo o mesmo Código, a inclusão desses mecanismos no estatuto/contrato social ou em compromisso a ser firmado entre as partes.Do outro lado do atlântico, na África do Sul, o King Code of Governance for South Africa 2009, elaborado pelo Institute of Directors Southern Africa, entidade amparada por várias instituições independentes desse país, dispõe:

“International bodies such as the International Finance Corporation have started to recognise that alternative dispute resolution (ADR) clauses are needed in contracts. (…) It is accepted around the world that ADR is not a reflection on a judicial system of any country, but that it has become an important element of good governance. Directors should preserve business relationships. Consequently, when a dispute arises, in exercising their duty of care, they should endeavor to resolve it expeditiously, efficiently and effectively. (…) The board should adopt formal dispute resolution processes for internal and external disputes.”[11]

Nessa toada, causa espécie exigir-se quórum qualificado para aprovação e assegurar direito de recesso aos dissidentes das deliberações que chancelem a inclusão de arbitragem nos estatutos sociais das companhias. Qual a razão para tanto obstáculo se a solução arbitral não impacta direito patrimonial ou político dos acionistas, tampouco prejudica os interesses sociais e, como visto, é considerada pelos estudiosos como instrumento saudável e fundamental para os fins das boas práticas de governança corporativa?

De outro lado, fosse o consenso a razão dos empecilhos para a aprovação da arbitragem societária, a unanimidade deveria ser o caminho, pois o recesso, no caso, não encerra qualquer acordo ou concordância; muito ao reverso, conduz ao dito popular “os incomodados que se mudem”.

Não é demais realçar que a criatividade e a engenhosidade poderão, ao fim e ao cabo, resultar na introdução da arbitragem nos estatutos sociais em momento e circunstâncias desfavoráveis ao exercício do direito de retirada, em subversão à teleologia da norma legal. E, nessas circunstâncias, irrelevante o princípio do consentimento ou o direito de recesso, pois o dissidente nada poderá fazer.

Do que se extrai, o recesso foi concedido casuisticamente, posto, ao meu sentir, sua ratio estar descolada dos efeitos jurídicos que dele – direito de retirada – emanam, haja vista não se tratar de deliberação que afete, sobremaneira, pilar basilar da sociedade e, muito menos, afronte direitos elementares e marcantes dos acionistas.

Por certo, as razões que emergem do direito de retirada impõem que seu exercício seja assegurado em caráter restritivo, pontual e excepcional. O arcabouço legal em cujo sistema esse direito extraordinário se insere funda-se, sobretudo, no princípio majoritário. Sistema jurídico esse muito peculiar, de administração de patrimônio alheio, e em cujo princípio majoritário se sobrepõe, e torna-se exceção, pelas suas particularidades, ao livre consentimento que norteia o direito das obrigações.

Com efeito, se o quórum qualificado, por si só, é irrelevante para fins do consenso, por não abarcar toda a comunidade de acionistas, o direito de recesso não se harmoniza com os benefícios da arbitragem societária – que, repita-se, não viola direitos dos acionistas ou o interesse social – e, por isso, é inaplicável à espécie.

Como bem pontua Diego Franzoni:

“Somente o legislador, portanto, tem a função de decidir o mérito das hipóteses de recesso. No entanto, isso não significa que se possa admitir a invenção de hipóteses de recesso, mesmo pelo legislador, despidas de qualquer critério, justificadas apenas pela vontade política do momento. É preciso que haja o mínimo de coerência histórica e sistemática entre as hipóteses de recesso legalmente previstas. Mais do que isso, é necessário que seja respeitado o fundamento, a função do instituto do recesso (…).”[12].

Consentâneas, pois, com os ditames societários todas as jurisdições que permitem a inclusão de cláusula compromissória estatutária, sem apelo a quórum qualificado e, muito menos, a direito de retirada.

Isso porque, como já expus:

“A substituição da jurisdição judicial pela arbitral para a análise e solução de controvérsia societária, desde que preservado o livre acesso e os pressupostos do devido processo legal, não viola ordem pública ou é matéria inderrogável pela assembleia geral e, menos ainda, qualifica-se como ato abusivo. Dessa forma, pode-se afiançar, insere-se na lista de direitos que podem ser modificados pelo voto majoritário.

A arbitragem amalga-se com o próprio interesse social e não atinge direitos patrimoniais ou políticos dos sócios. Preserva os interesses e, quiçá, a sobrevivência da sociedade e, consequentemente, o patrimônio dos minoritários.

A inserção de cláusula compromissória estatutária não gera obrigações novas aos titulares das ações ou quotas, ou alterações substanciais em direitos de sócio; enfim, não implica em diminuição ou garantias dos acionistas ou quotistas. Muito menos atenta contra pilares relevantes do pacto social; seu efeito é, portanto, neutro, haja vista, inclusive, que a arbitragem é instituto contemplado em lei, cujo fim maior é cooperar com o Estado na administração e acesso à justiça, e cujo processamento encerra todos os pressupostos do devido processo legal.

Destarte, não prejudica o direito de ação de qualquer acionista ou sócio, mas, tão somente, com a arbitragem, altera-se a jurisdição em que a demanda será apreciada e julgada, reitere-se, de conformidade com os princípios maiores da imparcialidade, ampla defesa, contraditório e livre convencimento.

Conforme assenta o ilustre jurista António Sampaio Caramelo, ‘É inquestionável que, quando os direitos que integram o status de sócio são alterados através de modificação estatutária regularmente deliberada, os sócios que não votaram a seu favor ficam vinculados por tal modificação. Ora, se o efeito da cláusula compromissória inserida nos estatutos é o de dar outra configuração à dimensão processual dos direitos dos sócios perante os outros sócios, a sociedade ou os titulares dos seus órgãos, bem como dos direitos daquela perante estes ou os sócios, há que concluir que o que vale para a modificação da dimensão material dos direitos dos sócios vale também para a da sua dimensão processual. (…) Por outro lado, sendo o efeito da cláusula compromissória supervenientemente inserida nos estatutos o de configurar o direito de acção inerente aos direitos subjectivos dos vários intervenientes na vida interna da sociedade, direcionando-o para a jurisdição arbitral, essa configuração não pode deixar de vincular todos os sócios, mesmo os que hajam votado contra essa alteração estatutária. Também aqui o princípio maioritário tem de prevalecer, como é regra nas sociedades comerciais”[13]

Enfim, desperdiçou o legislador nacional excelente oportunidade de prestigiar o instituto da arbitragem e moldá-lo, adequadamente, ao sistema jurídico da sociedade anônima, peça marcante e imprescindível na captação de poupança pública e geração de empregos, e imperiosa ao desenvolvimento de atividades produtivas e, consequentemente, para o desenvolvimento econômico e social dos países.

  1. Vinculação dos administradores à cláusula compromissória estatutária.

Uma vez inserta nos estatutos sociais, questiona-se a possibilidade de os administradores, no momento em que tomam posse em cargos na Diretoria estatutária e no Conselho de Administração, vincularem-se automaticamente aos efeitos jurídicos da cláusula de arbitragem, independentemente de manifestarem expressamente sua concordância.

Entendo que sim. Como integrantes de órgãos da sociedade, a existência de dispositivo estatutário da espécie vincula automaticamente seus membros.

Afinal, a companhia, enquanto ficção jurídica, “vocaliza-se” por intermédio de seus órgãos, os quais, ao se manifestarem juridicamente por intermédio de seus membros para assegurar direitos e contrair obrigações no mundo das relações, restam por dar-lhe vida – à companhia – no plano da realidade.

Ressalte-se que o vínculo do administrador com a companhia não se traduz em contrato de locação de serviços ou em outorga de mandato, como aceito pela doutrina no passado. Claramente, os administradores não representam a sociedade pautados em procuração, pois inexiste o liame outorgante e outorgado. Não há duas figuras distintas uma da outra. Há, sim, um amálgama indissociável entre sociedade e administrador, sendo este último quem expressa a vontade daquela enquanto membro do seu órgão social e, com isso, chancela existência da sociedade.

Daí não se distinguirem duas pessoas, sociedade e administrador, ou representada e representante. Por essa razão, Pontes de Miranda pontua que o administrador não representa mas, sim, presenta a sociedade, posto inserir-se no seio da própria companhia, e, sendo dela parte integrante – via o órgão social do qual é membro -, encerra uma particular junção de pessoas.

Eis, a título de exemplo, a razão para a procuração outorgada por diretor manter-se vigente ainda após o seu falecimento; afinal, foi outorgada em nome da pessoa jurídica, e não da pessoa física do diretor. Do mesmo modo, a alteração de membros da diretoria não resulta na revogação das procurações por eles assinadas.

Diante dessa realidade, fortaleceu-se a teoria organicista da administração, posto a vida da sociedade derivar da atuação de seus órgãos. Ajam os seus membros eleitos bem ou mal, quem responde é a sociedade. Direitos, obrigações, deveres e responsabilidades, conquanto pactuados pelos integrantes dos órgãos sociais, são atos imputáveis à sociedade.

De fato, a sociedade somente tem existência enquanto funcionarem seus órgãos sociais. É através deles, e de conformidade com as suas regras de competência, que os administradores exprimem os interesses sociais e vinculam a sociedade para todos os fins e efeitos jurídicos. São eles, enquanto membros dos órgãos sociais, a boca, os olhos, os ouvidos e o cérebro da sociedade.

Como já expus em trabalho específico:

“[c]omo parte integrante desses órgãos, os administradores estão obrigados a observar e a respeitar a lei e, também, o estatuto social da companhia da qual são partes integrantes. Essa concepção orgânica confere aos administradores uma dimensão jurídica que os imbricam e os amálgamam ao seio da sociedade e a todo o feixe que compõe a relação interna social.

Com efeito, os administradores se ligam, umbilicalmente, à sociedade de tal modo que não lhes podem escapar os vínculos e a subordinação da disciplina societária e das regras máximas que compõem o estatuto social. A eles cabe zelar pelo correto funcionamento da companhia. De tal sorte que, ao aceitarem o encargo de administrador, então, ipso facto, afirmando fiel obediência ao estatuto social e à lei. Estão, outrossim, integrando-se ao interior da empresa como membros de um órgão que é pura expressão da própria sociedade. Passam a ser uma única pessoa para fins orgânicos, mas com deveres e responsabilidades que lhes são próprios.

Ao afirmarem respeito e observância aos termos e condições do estatuto social, e, ademais, por serem responsáveis pelo fiel cumprimento do contido na carta magna societária, e assentarem-se como ‘órgãos’ da sociedade, seria uma incongruência que os administradores não fossem alcançados pelos efeitos da cláusula compromissória estatutária, com o fim de solucionar questão que impacta a sociedade e de cujos órgãos são partes integrantes. Isso porque integram seu corpo social e, assim, com ele se imbricam.

O administrador se subordina à sociedade e sua eleição pela assembleia geral, ou pelo Conselho de Administração, resulta no seu enquadramento ao corpo social da companhia. Se esta, em seu estatuto social contempla uma cláusula de arbitragem, assim como devem os administradores impor a sua observância à companhia e seus acionistas, como resultado dos deveres que ostentam, do mesmo modo a ela se submetem, enquanto ‘órgão’ da sociedade.

A função e a atuação do administrador pressupõem a observância dos interesses maiores da companhia que representa, tal qual deve por eles zelar os seus acionistas que, por força da obediência ao estatuto social, também se vinculam aos efeitos da cláusula compromissória estatutária.

Ao se integrar ao órgão social, o administrador perde sua autonomia no plano individual para se vincular aos ditames da sociedade. Exercem os administradores a representação orgânica da companhia. Sua função, típica do feixe de relações societárias, impacta no acordo social. Impacta, por certo, no feixe de relações e vinculações sociais. Justamente na esfera jurídica em que a cláusula compromissória estatutária opera eficácia. Campo esse denominado pacto social. (…)

Frente a essa realidade, e do direito subjetivo que passam a ser titulares no âmbito do feixe das relações sociais, e, ainda, da incorporação orgânica que o cargo lhes reconhece, creio que os administradores de sociedade anônima restam alcançados pelos efeitos de uma cláusula compromissória estatutária, mesmo que a ela não tenham consentido formalmente, ressalvadas as peculiaridades do conteúdo de dita disposição estatutária.”[14]

Em suma, ao ingressar no órgão social, o administrador vincula-se e sujeita-se ao feixe das relações jurídicas daí derivadas, com direitos, deveres e responsabilidades, e passa a deter direito subjetivo no exercício de função orgânica da sociedade, sendo sua expressão física no mundo real.

Nessa toada, as funções exercidas pelo administrador originam-se das regras estatutárias e daquelas estabelecidas pela assembleia geral, bem como daquelas estampadas na lei societária. Portanto, eximir-se da sujeição a dispositivo estatutário ao qual deve observância não encontra eco na lógica ou na razoabilidade, exceto eventual particularidade da cláusula compromissória estatutária ou fatos atestados no caso concreto.

  1. Jurisdição arbitral para decidir impasses de natureza puramente negocial.

Poderão ocorrer situações em que haja impasse nas deliberações do Conselho de Administração ou da Assembleia Geral e cujo objeto não seja de natureza eminentemente jurídica como, a título de exemplo, a abertura de subsidiária no exterior, a adoção de nova estratégia nos negócios correntes da empresa ou a mudança mais radical nas suas atividades.

Essa circunstância implica na análise da possibilidade de a controvérsia que gerou o impasse ser arbitrável, dado que sua solução não demanda a pura aplicação da lei ao caso concreto. Assim, por não haver pretensões de direito em si, mas de cunho empresarial, alguns poderão sustentar que o árbitro estaria despojado de jurisdictio para solucionar a controvérsia.

Entretanto, se a cláusula estatutária apenas dispuser que todas e quaisquer disputas oriundas ou relacionadas ao estatuto social serão resolvidas por arbitragem, como proceder?

É meu entender que, muito embora a arbitragem não seja a primeira ou mesmo a terceira opção de resolução desses tipos de conflitos, caso todos os demais meios restem frustrados ou não sejam possíveis de manejo (por falta de convenção contratual, regra impositiva ou acordo), aos árbitros caberá essa função, sob pena de o impasse conduzir à dissolução da sociedade, como pregam alguns, pela impossibilidade de preencher a finalidade para a qual foi constituída.

Por certo, a dissolução e liquidação da companhia é o pior caminho, e contrário aos pressupostos contemporâneos da preservação da empresa. Pressupostos esses fundados nos ditames da função social da empresa, dos quais ecoam nítidos deveres para com seus colaboradores e fornecedores, para além de outras tantas pessoas e setores que na órbita da empresa restam beneficiados.

Conforme já exposto em outro texto, é minha convicção:

“que a função do árbitro, de natureza jurisdicional, é bastante ampla e, por isso, capaz de atender a uma gama enorme de questões conflituosas.

Como assinala Bruno Oppetit, ‘L’appréciation du juge, lorsqu’elle s’exerce sur les contrats ou dans le cadre du droit des affaires donne au juge un rôle d’expert’.

Por seu turno, a atividade jurisdicional vem ampliando seu escopo com o crescente exercício de funções de natureza menos jurídicas, do ponto de vista estrito de ditar o direito posto, e mais equânimes. Como exemplos dessas atividades temos o reequilíbrio econômico financeiro do contrato, a redução de penalidades excessivas, as questões relacionadas ao direito de família, a definição de conceitos indeterminados ou de dispositivos em aberto (operabilidade do direito) e a determinação e invalidação das cláusulas abusivas.

Essa tendência leva o intérprete a uma amplificação do conceito restritivo de litígio para assentá-lo em alcance mais amplo e flexível. O exercício da jurisdição deve ser ponderado sob o prisma da pacificação social. Pacificação em seu sentido lato de solução dos impasses, pendências, dúvidas, divergências, demandas, conflitos e controvérsias. A jurisdição é mero instrumento para o atendimento e solução das angústias conflituosas. Deve, como instrumento de pacificação social, atender e resolver um conflito de direito stricto sensu, mas, também, atuar na tutela de uma pretensão. Como instrumento para atingir a paz social deve se prestar a satisfazer os questionamentos ou qualquer diferença que postulem as pessoas ou grupos contrapostos. Deve, portanto, satisfazer pretensões controvertidas, seja de que natureza forem.

Inclui-se, portanto, na atividade arbitral a competência para interpretar e suprir lacunas contratuais, cada vez mais presentes nos contratos de longa duração, tidos como contratos incompletos por força da escolha das próprias partes, dada a impossibilidade de previsão de todas as circunstâncias, fatos e eventos que possam ocorrer no futuro e, consequentemente, pelo custo que essa atividade de futurologia acarretaria à transação.”[15]

Portanto, imperativo que o retrato não reflita o preto e branco conservador ou a cor em impressão tradicional, e, sim, que o plano da fotografia jurisdicional seja retratado em panorâmica cuja foto não abranja, única e exclusivamente, o seu viés estritamente jurídico.

Nessa toada, vale refletir sobre o que dizem Bruno Opetit, Charles Jarrosson e Olivier Caprasse, respectivamente:

“El criterio del litigio, a menudo utilizado para diferenciar el arbitraje contractual del arbitraje jurisdiccional y para negar al primero la caificación de verdadero arbitaje, no serviría tampoco como una guía segura en la materia, ya que la noción de controversia arbitral ha sufrido evolución que le haría adquirir un contenido original: La realidad suele ser compleja y entre la disputa abierta y la misión de carácter puramente contractual, pueden hallarse toda clase de desacuerdos de mayor o menor intensidad, que justificarían la intervención de un árbitro sin que tengamos derecho de negarle a este último su verdadera calidad. Finalmente, en lo que concierne a la naturaleza del poder que implicaría la función arbitral para merecer dicha calificación, resulta interesante observar que existe en el propio juez estatal una alteración de los que sería la función jurisdicional pura. En efecto, desde hace algunos años el legislador ha multiplicado las hipótesis en las cuales le confia al juez el papel de un verdadero experto económico, ya sea que se trate de la determinación de la tasa normal de una prestación, o de la apreciación de los intereses implicados en la gestión o en la división de un patrimonio. Ahora bien, en todos estos casos el juez se esfuerza, de la misma forma, por hacer una evaluación o proponer un modus vivendi mediante un acto creador, como por resolver entre las pretensiones antagónicas (…) de forma cada vez más frecuente, el juez se halla investido de la misión, ya no de decir el derecho o de pronunciar una condena de derecho estricto que resuelva entre dos pretensiones antagónicas, sino de determinar entre las partes un modus vivendi mediante apreciaciones de oportunidad o de equidad. Es en este orden de ideas que el juez, en muchos casos deberá entrar a apreciar los intereses en juego, para matizar la aplicación de la norma jurídica y, así, solucionar la situación en cuestión: atribuición preferencial, cambio de régimen matrimonial, conflictos familiares relativos al ejercicio de prerogativas, etc.”[16]

“Hors du temps, c’est surtout l’objet du jugement qui caractérise le mieux l‘extension des pouvoirs du juge. Le litige apprecié au sens strict n’est plus le seul objet du jugement. Le juge intervient non seulement pour résoudre un litige, il intervient aussi accessoirement ou meme indépendamment de la resolution d’un litige et se montre tour à tour expert en ecónomie, contrôleur en gestion, censeur des époux, défenseur de l’enfant, creature de dispositions contractuelles. Certes le juge appliqué la règle de droit, mais cela lui demande d’apprecier tel intérêt, de dire ce qui est opportun, de relever ce qui est utile, de sanctionner ce qui est abusif, de donner un sens et un contenu aux notions de circonstances exceptionnelles, de cas graves (…).”[17]

“Des actionnaires se disputent sur l’opportunité d’augmenter le capital, de distribuer des bénéfices, de lancer un nouveau plan d’investissement (…) Incontestablement, on ne se situe pas ici dans le cadre classique de l’intervention du juge dans la mesure où des questions d’opportunité, de choix économiques sont en cause. Y-a-t-il place pour une intervention jurisdictionnelle dans ce conteste? Aujourd’hui, la réponse à cette question est clairement affirmative tant en doctrine qu’en jurisprudence (…) Notons au passage que le législateur lui-même donne parfois au juge la mission d’intervenir dans ce type de contentieux (…) Il nous paraît très éclairant de reprendre ici quelques considerations du Professeur Jarrosson. ‘Le droit des sociétés, écrit-il, offre avec la notion d’intérêt social, un exemple parfait du pouvoir d’appréciation du juge. La notion d’intérêt social est particulièrement fuyante, elle n’est pas unique (…) L’intérêt social est, comme l’écrit très justement M. Sousi, le ‘vecteur de l’intervention des tribunaux dans la gestion des sociétés.”[18]

Nessa toada, de forma a prevenir a paralisação da companhia por longo período de tempo e sua consequente dissolução, deve-se pensar em prover instrumentos úteis e apropriados ao tribunal arbitral e ao procedimento, de forma a mitigar as dificuldades que os árbitros possam encontrar para chegar a uma conclusão.

A título de exemplo, nomear árbitros com larga experiência no tema central da questão controvertida e/ou valer-se de assistentes e opiniões técnicas independentes, e fixar regras próprias para o procedimento. Nesses peculiares casos, criatividade é da essência e pode ajudar o tribunal arbitral a proferir uma razoável decisão, que vá ao encontro dos interesses da empresa, e, quiçá, propicie ou induza as partes a um acordo no curso do procedimento.

Por fim, saliente-se que o § 2º, art. 129 da Lei das S.A. estabelece que, em caso de empate e ausente procedimento de arbitragem, os acionistas devem debater novamente a matéria em assembleia geral, após o decurso de 2 meses e, permanecendo o impasse e não sendo possível que a resolução do conflito seja submetida a terceiro, caberá ao Poder Judiciário decidir, no interesse social.

Por sua vez, o § 2º, art. 1.010 do Código Civil determina que o empate (votação pelo número de quotas) seja decidido pelo maior número de sócios e, se ainda assim persistir, que a questão seja decidida pelo juiz.

Portanto, até mesmo pela ótica legislativa as disputas empresariais, ao fim e ao cabo, inserem-se na competência do juiz togado e, havendo cláusula arbitral, na jurisdição do árbitro.

  1. Para os comerciantes, a autonomia na escolha da via de resolução de conflitos era fundamental ao correto implemento dos seus negócios jurídicos. A práxis era muito particular e de conhecimento restrito. Qualquer intervenção visando solucionar suas controvérsias de forma distinta dos seus usos e costumes, inclusive pela adoção da via estatal, restaria por desestabilizar o sistema comercial e, dessa forma, gerar uma enorme insegurança nas relações e tratativas dos mercadores. Seus usos e costumes, pioneiros do direito, deveriam ser preservados. Para isso, fundamental a autonomia privada.Sem o exercício da liberdade, por certo, os comerciantes estariam em apuros e suas relações sofreriam grave insegurança se adotada a justiça comum, não afeita ao ramo, e às leis existentes, bem atrasadas em relação à prática comercial.” (BATISTA MARTINS, Pedro A.. Arbitragem no Direito Societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012, p.37).
  2. E, justamente aqui, retorno ao ponto central da questão do monopólio do Poder Judiciário. Não há, a meu ver, exclusividade desse poder do Estado no que tange à concretização da justiça. Os indivíduos são livres para solucionarem suas divergências por todas as formas lícitas, inclusive (mas, nunca, exclusivamente), através do Poder Judiciário.O monopólio que o Estado deve perseguir é o da salvaguarda e proteção da justiça, visto este sob o prisma do devido processo legal substantivo. Sob o prisma da observância plena dos direitos fundamentais do cidadão. Sob o prisma garantista do Direito.Nesse sentido, o que o Estado não pode abrir mão é da concretização da justiça, no que toca seus elementos primários, essenciais e fundamentais. Explico: o verdadeiro monopólio do Estado diz com o controle de uma adequada realização da justiça. Diz com a plena sujeição, de todo e qualquer processo de solução de conflitos, aos princípios e garantias fundamentais dos jurisdicionados.O monopólio é o da justiça, e não do Judiciário, visto sob sua ótica deontológica em que os valores relevantes da sociedade e o devido processo legal são preservados. O que o Estado deve assegurar a todos é uma tutela jurisdicional justa. E essa pode ser conduzida tanto por particulares, investidos de autoridade, quanto por servidores públicos concursados.A escolha do modelo de solução dos conflitos não há de ser aquele imposto pelo Estado e, sim, aquele manifestado pelo interessado.Em outros termos, o indivíduo é que detém o poder de definir a opção que melhor atenda seus interesses pessoais. Sua vontade, no particular, é soberana. Aqui, estamos com Rousseau quando afirma que ‘la soberania del cuerpo politico sobre los ciudadanos se asemeja al ‘poder absoluto’ que el hombre ejerce sobre sus miembros. A Estado soberano, individuo esclavo’.A exclusividade da atuação estatal deve se dirigir ao controle dos vícios que violem os direitos fundamentais do cidadão e da coletividade, nomeadamente, a ordem pública relevante.” (BATISTA MARTINS, Pedro A.. Arbitragem no Direito Societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012, pp.32-33).
  3. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (…)XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
  4. R.G. MUNIZ, Petrônio. Operação Arbiter: a história da Lei nº 9.307/96 sobre arbitragem comercial no Brasil. Recife: Instituto Tancredo Neves, 2005.
  5. BATISTA MARTINS, Pedro A. “Arbitragem e atração de investimentos no Brasil”. In: II Dia Gaúcho da Arbitragem. Porto Alegre: Lex Magister, 2017, pp.124-125.
  6. BATISTA MARTINS, Pedro A. “Arbitragem e atração de investimentos no Brasil”. In: II Dia Gaúcho da Arbitragem. Porto Alegre: Lex Magister, 2017, p.125.
  7. BATISTA MARTINS, Pedro A. “Arbitragem e atração de investimentos no Brasil”. In: II Dia Gaúcho da Arbitragem. Porto Alegre: Lex Magister, 2017, p.125.
  8. Incluído pela Lei n. 10.303, de 2001.
  9. BATISTA MARTINS, Pedro A. “Arbitragem e atração de investimentos no Brasil”. In: II Dia Gaúcho da Arbitragem. Porto Alegre: Lex Magister, 2017, pp.127-128.Nos dias de hoje, quando imperativa a submissão dos conflitos ao Poder Judiciário, os empresários não buscam mais uma decisão judicial que ponha fim à disputa; brigam unicamente por obter, manter ou revogar um provimento de urgência. O rumo do investimento e as oportunidades de negócio são, nesses casos, mantidos ou redirecionados de acordo com o resultado da disputa travada em sede de liminar.
  10. Disponível em <http://www.ibgc.org.br/userfiles/2014/files/codigoMP_5edicao_web.pdf>, p.27.
  11. Disponível em<http://www.ngopulse.org/sites/default/files/king_code_of_governance_for_sa_2009_updated_june_2012.pdf>, pp.13,48.
  12. FRANZONI, Diego. Arbitragem societária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p.149.
  13. BATISTA MARTINS, Pedro A.. “Cláusula arbitral estatutária e sua aprovação por voto majoritário: por que resistir?”. In: Agostinho Pereira de MIRANDA et. al. (orgs.) Estudos de direito da arbitragem em homenagem a Mário Raposo. Lisboa: Universidade Católica Editora, 2015, pp.219-220.
  14. BATISTA MARTINS, Pedro A.. Arbitragem no Direito Societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012, pp.136,137,139.
  15. BATISTA MARTINS, Pedro A.. Arbitragem no Direito Societário. São Paulo: Quartier Latin, 2012, pp.189-190.
  16. OPETIT, Bruno. Teoría del arbitraje. Eduardo Silva ROMERO, Fabricio Mantilla ESPINOZA e José Joaquín Caicedo DEMOULIN (trads.). Bogotá: Legis, 2006, pp.175-177.
  17. JARRONSSON, Charles. La notion d’arbitrage. Paris: Librairie generale de droit et de jurisprudence, 1987, p.99.
  18. CAPRASSE, Olivier. Les sociétés et l’arbitrage. Bruxelas: Bruylant, 2002, p.175.